quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Há vocábulos e vocábulos

Há palavras que são mais fortes em outras línguas do que na nossa e vice-versa. Quando comecei a estudar alemão, logo entendi porque a Alemanha estava sendo tomada por turcos enquanto o governo local fazia de tudo para que os seus "arianos" fossem para a cama (ou a cozinha, o banheiro) e procriassem loucamente. Mas não dá. É um problema lingüístico. Ninguém sentiria tesão ou a mais singela vontadezinha de fazer um filho ao ouvir Ich liebe dich.

Tudo bem que Seni seviyorum, seu similar em turco, não ajuda muito, mas ambas estão muito longe do poder que tem um “Eu te amo”. Principalmente dito na hora certa e com o olhar certo. “I love you” também tem sua força claramente amplificada pelo cinema. E dita com sotaque britânico então, nem se fala. Já “Je t'aime”, o similar francês, faria nove entre dez mulheres desmaiarem diante de você. Principalmente se você souber dizer mais do que essa frase na língua de Rousseau.

Indo ao extremo oposto nessa conversa, sempre defendi que “disgusting” fizesse parte do nosso português. Isso porque disgusting é muito mais nojento e repugnante do que o próprio nojento e repugnante. Nojento pode ser um rato morto, por exemplo, todo ensangüentado no chão da rua. Disgusting é tipo 100 baratas esmagadas no chão da sua casa.

O vocabulário futebolístico argentino tem duas palavras das quais eu sou apaixonado: cancha e enganche. E digo mais. O deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), autor de um projeto de lei para a valorização da língua portuguesa comeria meu fígado, mas acho que elas deviam ser adotadas no vocabulário futebolístico daqui de Pindorama.

A cancha é o campo onde o futebol constrói sua história de heróis e vilões. Onde gênios surgem, onde se dá o sangue, o suor e as lágrimas pelo único resultado que interessa: a vitória. É nela que verdadeiras batalhas são disputadas. É pelo que acontece nela que as massas se movimentam, são tomadas pela alegria, pela dor ou pela revolta.

Dela sai o estímulo para o canto e para o protesto. A cancha é a vida que alimenta esse esporte chamado futebol. Tem um tom muito mais dramático que o dócil campo, o monocórdio field inglês ou o até charmoso relvado português. La cancha es la gloria y la derrota del fútbol. E quando “El Diez” (Maradona) jogava em la cancha era como se deus estivesse trabalhando no oitavo dia. Assim, dramático, como um tango argentino.

Falando em 10, é que entramos na minha outra palavra favorita, o enganche. Não temos uma única palavra para definir enganche (usamos expressões como meia de ligação ou “o 1 do Zagallo”), embora tenhamos tido muitos enganches espetaculares. O maior de todos? Pelé.

O enganche é o que no Brasil sempre costumamos chamar simplesmente de o 10. Uma homenagem ao próprio Pelé, pois o 10 nem sempre usa a 10. Zidane por exemplo era um 10 clássico, mas no Real Madrid jogava com a 5.

Hoje em dia é raro no futebol brasileiro ter um 10 dando sopa por aí. Cheguei a achar que Diego se tornaria um deles, mas ainda não. E talvez nunca mais. Paulo Henrique Ganso, também gerado nas canteras (outra palavra espanhola que adoro e que significa divisões de base) da Vila Belmiro, tem potencial e personalidade para sê-lo. Façamos essa pergunta daqui a uns três ou quatro anos.

Quando jogou no meio-campo do Fluminense com Thiago Neves, sempre achei que Dario Conca (foto acima da agência Photocâmera) era um 8, aquele meia-direita clássico e meio motorzinho também que todo time necessita, mas que também anda em falta. Conca me enganou. É um 10 embora jogue com a 11. E também um enganche, afinal, é argentino.

Neste Campeonato Brasileiro em que ele teimou em seguir jogando ininterruptamente do primeiro ao último minuto a despeito de todas as dores que tenha sentido, físicas ou da alma, Conca comanda o time tricolor com a maestria de um meia clássico e a paixão que os argentinos impõem à vida e ao futebol. Conca se doa para o time e o time se eleva, supera dificuldades, desfalques, em torno de e pelo seu capitão (pelo menos até a volta de Fred há dois jogos). O pequeno gigante tricolor mostrou, assim, ter outra qualidade dos enganches: a liderança e o respeito que eles impõem naturalmente por serem abençoados com o talento raro e a visão além do alcance dos mortais.


Não sei se o Fluminense será campeão brasileiro. Falta uma rodada e tudo pode acontecer. Mas se for e com a carga dramática que esse título está se desenhando, o tricolor não será campeão num campo qualquer. Será numa legítima cancha. E com o seu enganche mais do que merecidamente levantando a taça.

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