quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Uma nova musa e um belo filme

O jovem Thomas Doret e Cécile de France
Não sou muito fã dos irmãos Dardenne. Nada contra a dupla de cineastas belgas. A culpa é minha mesmo. Sempre achei que tive uma incapacidade para entender seus filmes da mesma forma que tenho para compreender coisas como, sei lá, Física ou ver hora em relógio de ponteiro. O conhecimento deste último sempre esqueço segundos depois de aprender. No primeiro, bem, basta revisitar minhas provas na escola para entender que eu era um aluno medíocre na matéria.

Sobre os irmãos Dardenne vi dois filmes. Não gostara de ambos apesar dos elogios da crítica especializada. O mais recente foi “O silêncio de Lorna” (2008), quando me esforcei muito para não dormir no cinema. E olha que o filme ganhou o prêmio de melhor roteiro em Cannes.

Mas eu sou insistente e estava empolgado para ver “O garoto da bicicleta”. As credenciais dele eram boas: venceu o Grande Prêmio do Júri em Cannes neste ano e era estrelado por Cécile de France, a bela e competente atriz belga de 36 anos que eu já vira no início do ano em “Além da vida”, de Clint Eastwood. E não sai do cinema insatisfeito.

Na trama, Cécile é Samantha, uma cabelereira que vai cruzar na vida de Cyril (Thomas Doret), jovem que vive em um internato após ser abandonado pelo pai, e começará a cuidar dele. Problemático, Cyril não consegue lidar com a rejeição de Guy (Jeremie Renier), o pai que não quer ter a responsabilidade de cuidar do garoto, que se sente incomodado, mesmo desconfortável com a sua presença. Mesmo quando o menino demonstra todo o seu amor pelo pai, Guy age de forma fria e quer que o garoto suma da sua vida.

Cyril inicialmente não consegue acreditar na rejeição paterna. O persegue insistentemente para desespero dos assistentes sociais do internato. Ao mesmo tempo quer recuperar a sua bicicleta que ele acredita estar na casa do pai, mas que fora vendida.

Recupera-a num ato de bondade de Samantha, que a compra da criança para quem o Guy tinha vendido a bicicleta e a entrega a Cyril. Era o primeiro gesto de um amor gratuito pelo qual Samantha começará a nutrir pelo garoto.

Vislumbrando inicialmente em Samantha uma chance de reencontrar o pai e restabelecer uma relação, Cyril pede a cabelereira para cuidar dele como guardiã nos fins de semana. Sem muita explicação, ela aceita.

Aos poucos, Samantha vai nutrindo uma relação de amor pelo jovem. Por ele, fará sacrifícios financeiros e sentimentais que vão reforçar no garoto, que passará por tantas situações difíceis, um sentimento de companheirismo com Samantha. Ele precisará do amor dela para se reconstruir após tantas pancadas da vida, a maior delas esta rejeição inexplicável do pai. Tem medo nos seus olhos, está perdido, sem qualquer referência e um olhar que reflete uma falta de esperança na vida.

É Samantha quem vai lutar por ele, para que Cyril possa recomeçar e curar as feridas da alma. E depois de tantas turbulências, os dois vão construir uma relação de amor sincero.


Jean-Pierre e Luc Dardenne constroem um filme delicado sobre o amor gratuito de dois desconhecidos. Se Cyril precisava de Samantha, no fim percebemos que a própria Samantha também tinha a necessidade de ter na sua vida alguém como aquele garoto de 11 anos. E a bela atuação de Cécile é um elemento que nos deixa sair do cinema regozijados.

domingo, 20 de novembro de 2011

Recomeço

A banda no palco do Circo/Marcelo Alves
Eu vi Liam Gallagher cantando com o Oasis em um Wembley lotado de ensandecidos, sei lá, vou chutar, 65 mil ingleses e dois brasileiros (eu e um amigo. Não tenho registro de outros). Eles cantavam todas as músicas e iam a loucura jogando copos de cerveja para o alto dando banhos entre si (eu tomei uns dois). Eu não escrevo isso para contar vantagem ou ser pedante. Até porque viajar para a Europa é uma realidade bem mais palpável hoje para a classe média brasileira e em qualquer país do mundo você vê de tudo, o melhor e o pior do indivíduo tupiniquim.

Eu digo isso para mostrar a sensação de estranheza que é ver aquele cara que dizia que cantava na banda mais importante da história desde os Beatles entrando no acanhado Circo Voador para cantar diante de um público infinitamente menor.

E isso não é uma crítica ao Circo Voador. Pelo contrário. Adoro quando tem show lá. Só é estranho ver um cara que ali pelos anos 90 era quase um dos donos do mundo num palco acanhado e diante de uma pequena plateia. Embora efusivamente apaixonada.

O que deve ter passado pela cabeça de Liam Gallagher ao se dirigir de carro do seu hotel para a casa de show? E quando entrou no camarim? E, em seguida, ao passar por um espaço pequeno, entrar por uma portinha para ser saudado pelo seu apaixonado público? Infelizmente são respostas que não tenho. Se tivesse sido malandro como foi uma amiga minha, poderia tê-lo esperado após o show para tentar fazer estas perguntas. Diante de um surpreendentemente simpático Liam, ela até conseguiu uma foto com o cantor.

Mas esta é, por enquanto, a nova realidade de Liam. Aquele show que eu vi em Wembley há dois anos foi um dos últimos do Oasis que após aquela turnê se separaria depois da enésima briga de Liam com o seu irmão Noel. O cantor pegou o que fazia parte do Oasis – os guitarristas Gem Archer e Andy Bell e o baterista Chris Sharrock – e fundou uma nova banda, o Beady Eye. Noel preferiu preparar um disco solo que já é mais elogiado do que o primeiro trabalho da banda do seu irmão, “Different Gear, Still Spending”. Natural. Noel sempre foi melhor compositor do que Liam.

O cartaz lembrando a goleada do City/Marcelo Alves
Mas é com seus defeitos e virtudes que o Beady Eye se apresenta no Circo Voador. Sim, este é o novo Liam Gallagher. Um Liam Gallagher que se apresenta surpreendentemente simpático diante da plateia. Não sei se é o clima do Circo ou se são as doses cavalares de bajulação dos seus fãs, que vestiam camisas do Manchester City, o time do coração de Liam, também acionista do clube, e exibiam cartazes que lembravam uma recente goleada de 6 a 1 sobre o rival Manchester United ou, bem humorados, perguntavam: “Who the fuck are Man United”.

“Vou responder, Man United sucks!”, mandou o cantor após a primeira canção da noite, “Four Letter World”. É o jeito simpático de ser de Liam, que mostrou estar se divertindo em toda a noite. Quando viu o cartaz referente aos 6 a 1 sobre o United já no fim do show, Liam apontou para o alto e fez um “V”. Estava em casa, quase se sentindo no City of Manchester Stadium.

O show do Beady Eye é irregular como o disco. Muitos ficaram contrariados na casa e eu ouvi muitas críticas. De palavras suaves ao bom e velho “que merda”. Não acho que tenha sido para tanto. É preciso entender que esta é uma nova banda de um cantor que avisara previamente que não tocaria uma única canção do Oasis. “Talvez na próxima turnê”, disse em entrevista ao Globo alguns dias antes do show, quando desfilou a sua marra dizendo que já tinha "ótimas" canções para um segundo disco do Beady Eye.

Com o Oasis fora da festa, sobrou a Liam tocar “Different Gear, Still Spending” na íntegra em 1h20min de show. E dai surgem canções que não são tão ruins assim como a própria “Four Letter World”, “The Roller”, uma das primeiras que eu ouvi e gosto, “Bring the light” ou “The beat goes on”. E outras que são dispensáveis e certamente não estariam num show em que Liam pudesse selecionar um repertório maior.

Se fosse qualquer outro artista, aliás, alguém diria que o cantor teria sido ousado ao optar não usar o recurso fácil de cantar músicas de sua banda anterior. No caso de Liam, poderia ser pura marra de um cara que vivia as turras com o irmão. Talvez tentando provar que poderia fazer um disco e um show excelente sem a ajuda do brother. São coisas que só a psicologia pode explicar.

Difícil saber. Só posso dizer que esse toque de ousadia (ou loucura?) de Liam resulta num show morno para aqueles que ainda não conhecem direito o som do Beady Eye. Embora para os fãs, aqueles com camisas do Manchester City e alguns até com corte de cabelo igual ao de Liam, tenha sido intenso. Eu confesso ter ficado surpreso com a quantidade de gente cantando as letras do Beady Eye como se fossem sucessos do Oasis. Para estes, foi um show espetacular.

No final, parece que todos no palco saíram satisfeitos e muitos na plateia também. O Beady Eye não é o Oasis. Nem nunca será. Mas é um recomeço para Liam Gallagher. Quem sabe em breve ele não estará tocando novamente em Wembley.

Set list do show: “Four letter world”, “Beatles and Stones”, “Millionaire”, “Two of a kind”, “For Anyone”, “Three Ring Circus”, “The Roller”, “In the bubble with a bullet”, “Bring the light”, “Standing on the edge of the noise”, “Kill for a dream”, “The beat goes on”, “Man of misery”, “The morning son”, “Wigwam”, “World outside my room”, “Sons of the stage”.


Abaixo, alguns momentos do espetáculo:

"Four Letter World"

"The Roller"


"The beat goes on"

"Millionaire"

"Bring the light"

"Sons of the stage"

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Mais do que uma banda

Eddie Vedder/ Site do Pearl Jam
Parece não existir algo que seja impossível para Eddie Vedder. Há seis anos, eu conversava com um amigo e nós chegávamos à conclusão de que nem o próprio Pearl Jam conseguiria superar uma apresentação tão perfeita quanto a que viramos na Apoteose naquele dezembro de 2005. Era a primeira vez da banda no Brasil para uma turnê que passou por diversas capitais e terminaria com pouco mais de 2h30m de um show espetacular que ficaria marcado na memória das 40 mil pessoas que estiveram no local.

“Sambódromo, eu lembro muito bem daqui”, disse o vocalista, se esforçando para falar português durante o show da noite de domingo no mesmo lugar seis anos depois. Lembrou e para recompensar os seus cerca de 35 mil fãs presentes, os anos de espera e todas as emoções que todos viveram naquela noite, Vedder tratou de se esmerar junto com o seus colegas de banda – Mike McCready (guitarra), Stone Gossard (guitarra), Jeff Ament (baixo) e Matt Cameron (bateria) – para tornar aquela noite ainda mais inesquecível.

E conseguiu. Em 2h40m e 30 músicas, o Pearl Jam repassou a sua carreira de nove discos de estúdio, pouco mais de uma centena de álbuns ao vivo e algumas compilações na apresentação que marca os 20 anos de carreira da banda comemorados com disco, documentário dirigido por Cameron Crowe (que ainda não estreou no cinema aqui, mas passou no Festival do Rio), e biografia. É o “Pearl Jam Twenty”.

Mike McCready e Jeff Ament / Site do Pearl Jam
Em uma carreira tão rica e como o show não costuma ter muito mais do que três horas, é claro que sempre vão faltar músicas. Eu gostaria de ter escutado “I am mine”, “World Wild Suicide”, “Porch” e “Animal”, mas tirar qual do set? Não dava para trocar nada. Só acrescentar. Vedder fez com que tudo fosse perfeito de “Unthought Known”, a canção que abriu os trabalhos, a “Yellow Ledbetter”, a que fechou o show com as luzes da Apoteose já acesas e aquela vontade de não ter que ir embora.

Aos 46 anos, perto de completar 47 daqui a um mês e meio, Vedder continua cantando com a alma, como eu gosto de dizer. Seu jeito emotivo de cantar, segurando com as mãos no microfone e com os olhos fechados reforçam a imagem messiânica que os fãs veem no cantor embora ele mesmo não leve isso muito a sério. O resultado são milhares de marmanjos com camisas pretas da banda ou blusas de flanela, um ícone da estética grunge, chorando copiosamente e/ou imitando o cantor ídolo. Enquanto isso, o vocalista olhava feliz para a plateia entre um gole e outro em uma de suas garrafas de vinho que no final do show foi dividida com os fãs do gargarejo. Só faltou alguém dizer que era o sangue de Vedder, o salvador.

Todos querem ser Eddie Vedder e o cantor retribui esse carinho dando tudo de si no palco. Ao seu lado, McCready é o responsável pela maior parte dos solos que fizeram a marca do Pearl Jam. Com frequência dialoga com Gossard levando o público ao delírio enquanto Cameron e Ament completam um quinteto que está entre os mais azeitados do rock.

Delírio é uma palavra que poderia ser frequentemente repetida ao longo da noite. Foram poucas as músicas que tiveram alguma recepção fria. Três, talvez quatro. Na maioria das vezes, muita emoção e letras na ponta da língua, por mais que isso possa parecer impossível diante das difíceis letras do cantor. “Jeremy” ganhou um coro até quando a banda já tinha deixado o palco para uma pausa. “Given to fly” e “Do the evolution” foram cantadas a plenos pulmões, assim como músicas do “Ten”, o disco que tem duas décadas celebradas neste ano. Além de “Jeremy”, foram tocadas “Even Flow”, “Alive”, “Black” e “Why Go”. Do mais recente álbum, “Backspacer” (2009), vieram, além de “Unthought Know”, as ótimas “The Fixer”, “Got Some” e “Just Breathe”, cantada por Vedder apenas no violão. Faltou apenas “Johnny Guitar” para ficar perfeito.

Entre a primeira e a 30ª canção, o Pearl Jam não deixou passar nada. Lembrou todas as fases da sua carreira e ainda fez uma surpresa. “É a primeira vez que cantamos essa música”, disse Vedder, antes de começar a tocar “Mother”, do Pink Floyd. Este foi um dos três covers da noite, que teve ainda “I believe in miracles”, dos Ramones, logo após “Come Back”, música que o cantor explicou ter sido feita em homenagem ao seu amigo Johnny Ramone (“Sinto falta dele todos os dias”), e “Keep on rocking in the free world”, o clássico de Neil Young que o Rio não viu em 2005. Esta e “State of love and trust”, foram aquisições sonhadas pelo público carioca, que finalmente pôde ver a banda tocar as duas músicas ao vivo.

Foi uma noite perfeita que já tinha começado muito bem com o X, banda punk de Los Angeles que Vedder trouxe para abrir os shows do Pearl Jam no Brasil. Noite perfeita e agora sim insuperável. Será?

Abaixo, o set list e alguns momentos inesquecíveis do show. Durante a semana vou colocando mais vídeos aqui enquanto for encontrando no YouTube.


Set list: “Unthought Known”, “Last Exit”, “Blood”, “Corduroy”, “Given to fly”, “Nothingman”, “Faithfull”, “Even Flow”, “Daughter”, “Habit”, “Immortality”, “The Fixer”, “Got Some”, “Elderly woman behind the counter in a small town”, “Why Go”, “Rearviewmirror”. Primeiro bis: “Just Breathe”, “Come back”, “I believe in miracles”, “State of love and trust”, “Off the Earth”, “Do the Evolution” e “Jeremy”. Segundo bis: “Mother”, “Betterman”, “Black”, “Alive”, “Rockin’In the free world”, “Indifference” e “Yellow Ledbetter”.

"Jeremy"
"Given to fly"
"Black"
"I believe in miracles"

domingo, 6 de novembro de 2011

O thriller de Almodóvar

Elena Anaya como a misteriosa Vera
Pedro Almodóvar é responsável pelo que talvez seja o vilão mais cruel, traiçoeiro e frio que eu vi neste ano no cinema. O cirurgião plástico Robert Ledgard é a personificação da perversão no trabalho que marca o reencontro do diretor espanhol com o ator Antonio Banderas depois de 21 anos. Desde “Ata-me” (1990), Banderas, hoje com 51 anos, não era dirigido por Almodóvar. Nestas duas décadas, o ator colecionou alguns bons filmes – “Entrevista com vampiro” (1995), “A balada do pistoleiro” (1995) – e muitas bombas dispensáveis.

Banderas nunca foi necessariamente um ator fantástico, mas engana direitinho num filme azeitado. É o que acontece em “A pele que habito”. Na nova película de Almodóvar, ele é Ledgard, o tal vilão maquiavélico que eu descrevi acima capaz de traçar e executar um plano tão bizarro e perverso que faz o thriller de Almodóvar dar uma virada de embrulhar o estômago.

Ledgard é um bem sucedido cirurgião que faz experiências transgênicas para criar uma pele que seja resistente a picadas de mosquito e queimaduras. Por trás da obsessão do cirurgião está um dos seus traumas: a morte da mulher, que comete suicídio meses depois de ficar completamente queimada após um acidente de automóvel em que o carro em que ela está com o amante e irmão de Ledgard pega fogo.

Claro que muito do que ele faz não é considerado legal pela comunidade científica. Por isso usa a sua própria mansão para as suas experiências. Entre elas, está manter a misteriosa Vera (Elena Anaya) presa num dos quartos vestindo apenas um collant que cobre o seu corpo todo, cuja pele é, nas palavras do cirurgião, extremamente macia. Uma pele perfeita como a que ele sonhara.

Vera tem papel fundamental na trama de Almodóvar. Dentro do intrincado roteiro escrito pelo cineasta, ela é a personificação da esposa morta de Ledgard, mas quem assiste ao filme descobrirá que ela é muito mais do que uma personagem que atiça os desejos não apenas de Ledgard, mas do seu irmão.

Vera não é o único ponto fraco do cirurgião numa trama cercada de vingança e paixão de um homem frágil e à mercê das mulheres que o cercam. O trauma com a morte da mulher potencializa com o destino semelhante da filha Norma (Blanca Suárez), menina que está em tratamento de uma fobia social, mas acaba quase sendo estuprada numa festa por Vicente (Jan Cornet), jovem que apronta muito em Toledo, mas vai pagar caro por este último ato. Após acordar de um desmaio, Norma acha que foi estuprada pelo pai, tem que ser novamente internada, e acaba dando cabo da vida da mesma forma que viu a mãe fazer.

No thriller de Almodóvar, canções abrem portas traumáticas na mente, os personagens são psicologicamente perturbados e mesmo as mulheres fortes que são a marca de seus trabalhos revelam alguma fragilidade. Todos tem algum ponto fraco que os despedaça, uma carência que fragiliza.

“A pele que habito” é um thriller clássico, mas tem o toque do diretor espanhol nesta sua primeira incursão neste gênero. O bom humor que é uma das marcas dos seus filmes, assim como as cores fortes, são deixados um pouco de lado em nome de um forte clima de suspense. Mas os temas homossexuais e fortes sentimentos de desejo e paixão estão lá expostos em carne viva a cada passo de Ledgard, o vilão frio e calculista que terá o destino clássico em um filme tenso em que Almodóvar tem o mérito de abrir uma nova pasta nos arquivos de thriller da produção cinematográfica.

É impossível não sair incomodado de uma sessão de “A pele que habito”. Almodóvar usa o tema da cirurgia plástica para dissecar a alma e fazer refluir dela o monstro que habita o inconsciente humano. Ou ao menos aqueles que estão entre os mais perversos deles. E o desfecho de sua experiência é um trabalho que resulta num dos melhores filmes do diretor neste século e talvez um dos melhores de sua filmografia.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Palhaço

“Eu faço todo mundo rir, mas quem é que vai me fazer rir?”, questiona o palhaço Benjamin (Selton Mello) numa frase cortante que resume o seu sentimento de crise existencial, insatisfação e sensação de que não faz parte do mundo em que vive. Benjamin está cansado. É um adulto sem carteira de identidade, que não tem endereço fixo, um amor, nem um sentido para a vida. O circo do seu pai, Valdemar (Paulo José), toma todo o seu tempo, suga a sua vida, mas ele não está dando conta. Precisa parar. Parar nem que seja para voltar a um ponto inicial revigorado. Ou não. Buscar outra vida que o deixe mais feliz.

A jornada de Benjamin é o tema central do novo filme de Selton Mello como diretor, “O Palhaço”. Longe da melancolia do seu primeiro trabalho, o ótimo “Feliz Natal” (2008), a nova película de Selton, que também assina o roteiro com Marcelo Vindicato, parceiro do primeiro trabalho, é mais revestida de ternura e uma homenagem ao trabalho de circo e ao artista em geral do que o primeiro parágrafo deste texto pode sugerir.

Sim, “O Palhaço” tem drama. Mas também sabe ser divertido e engraçado. Mostra o valor de sentimentos como amor, amizade e companheirismo e emociona. Pacote completo para todas as idades e gêneros.

De volta a Benjamin. Herói numa trajetória de autoconhecimento, ele é o palhaço Pangaré, artista de circo que junto com o seu pai, o palhaço Puro Sangue, percorre pequenas cidades do interior do Brasil levando o riso às comunidades como a atração principal do circo Esperança. Um nome curioso e contraditório com o momento vivido inicialmente pelo personagem de Selton.

A cada cidade Benjamin tenta descobrir o nome do maluco local, da zona, e do prefeito e sua mulher, sempre cortejados no número principal de sua rotina de fazer rir. Longe do picadeiro, ele tem que administrar um circo que tem seus problemas e com funcionários com suas demandas como qualquer outro lugar pequeno e que vive em dificuldades financeiras se apresentando para plateias minguadas.

Benjamin acha que não está dando conta. Anda com uma maltratada certidão de nascimento, a única prova que ele existe legalmente. Quer tirar uma carteira de identidade para finalmente poder comprar um ventilador à prestação e mudar de ares. Está cansado de andar pelo interior numa máquina caindo aos pedaços e lidar com as corrupções dos tipos bizarros de cada local. Quer se estabilizar, encontrar um amor e dar início a uma nova fase na vida. Está infeliz.

É assim que ele toma a difícil decisão de abandonar o seu pai e a sua família do circo. Distante daquela realidade é que Benjamin vai perceber que aquela é que é a sua vida. Sente saudades da estrada e de fazer as pessoas rirem. E descobre que ser palhaço é que o torna especial e único.


“O Palhaço” é uma bonita homenagem de Selton ao trabalho do artista de circo e todos aqueles que lutam diariamente contra as dificuldades para viver da sua arte. É um filme terno e de muita sensibilidade do ator que vem se transformando num diretor capaz de contar ótimas histórias de uma forma simples e objetiva. Um belo trabalho.