segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

“Tár” e a crônica de um gênio indomável

(Atenção que esta crítica contém spoilers)

Lydia Tár (Cate Blanchett) é considerada uma das maiores compositoras-regentes vivas. Diretora da ultra prestigiada filarmônica de Berlim, Tár é especialista em Mahler, foi apadrinhada por Leonard Bernstein no início da carreira, passou por prestigiosas orquestras como Chicago e Nova York e é considerada inovadora por saber dialogar o clássico com o contemporâneo com um toque pessoal. É uma das raras pessoas do mundo dona de um EGOT, como é chamado o conjunto de premiações mais populares da indústria — Emmy, Grammy, Oscar e Tony. Tem um casamento sólido, embora não livre de problemas com a primeiro-violinista Sharon (Nina Hoss). É dona de opiniões fortes, embora não seja uma arista livre de controvérsias nos tempos atuais em que cada palavra nos coloca em escrutínio público por redes sociais. Redes estas que muitas vezes têm discursos manipulados. Para Tár, a arte e a excelência da mesma estão acima de quaisquer comportamentos condenáveis vividos por quem a criou.

Tudo em Lydia Tár parece tão fascinante e autêntico. Uma personagem que merecia uma cinebiografia. O fascinante nisto tudo, porém, é que Tár não existe.

Ao fim de “Tár”, o filme escrito e dirigido por Todd Field, eu senti a necessidade de preencher uns buracos de sua história na minha cabeça. Nada prejudicado pelo filme, mas eu sentia esta necessidade. Por onde ela anda? Ela acabou do jeito que o filme mostra? O que tem feito nos dias de hoje? Não precisava de nada excessivamente aprofundado. Um perfil na Wikipédia com o básico me seria suficiente para saciar a dúvida.

Qual não foi a minha surpresa quando descobri que a compositora não só não tinha um perfil no site como era uma mera obra de ficção de Field. Uma breve busca no Google mostra que eu não estive sozinho. Não faltam reportagens em diferentes línguas respondendo à pergunta: “Lydia Tár realmente existe?”

Um dos grandes méritos de Field em “Tár” está em nos enganar. Pelo menos em enganar a pessoa que foi assistir ao filme sem nada saber. Ao longo de seus 158 minutos, Tár compõe uma personagem fascinante e complexa, que está no auge e vive a decadência vertiginosa após seu envolvimento numa polêmica que gera um processo contra ela após a morte de uma jovem regente. A Lydia Tár magnificamente interpretada por Blanchett é uma mulher com contas a ajustar com o passado recente, se escondendo do seu passado distante e que quer esquecer suas raízes. Uma mulher que toma decisões duras, difíceis e nem sempre as mais aceitáveis para quem está gerindo uma orquestra onde estão os melhores entre os melhores e, consequentemente, um ambiente de egos mais do que infladas. A começar pela própria Tár, uma perfeccionista que entende profundamente do seu ofício, mas falha na gestão humana. Algo que é bastante comum em figuras geniais da arte.

Mas o que torna Tár tão real e verdadeira? Alguns fatores podem ter ajudado na fascinante ilusão de ótica do filme. O primeiro é o seu ambiente. Todo o filme é centrado no mundo da música clássica, que é cercado de pessoas populares no seu meio, mas completamente desconhecidos do grande público.

Outra questão fundamental é a sua ambientação, Tár se passa muito próximo do nosso tempo histórico e sua história é pontuada por polêmicas em redes sociais e ações cometidas pela personagem durante a pandemia de Covid-19, como os concertos gratuitos que ela deu durante a pandemia. São duas situações comumente vividas por artistas nos últimos anos, que nos aproximam da realidade de Tár.

Mas outras questões são méritos do roteiro de Field. Os assuntos que o filme discute a partir da vivência de Tár, a exibição ainda que rápida de sua página no Wikipédia, as polêmicas que a maestrina se envolve… tudo é muito real porque são histórias sobre as quais vemos os artistas se depararem. E vemos isso acontecendo muito perto de nós. Lýdia Tár e seus problemas e controvérsias não são uma realidade distante de um Beethoveen ou de um Bach, mas do nosso tempo.

Por fim, temos a ótima atuação de Blanchett. A atriz recebeu de presente uma personagem magnífica, mas um dos seus méritos está em desaparecer completamente no papel. Diante da tela não vemos Blanchett, mas Lydia Tár em seus dramas, anseios e virtudes.

Obviamente que “Tár” não é perfeito. Entre as críticas que se podem ser feitas só filme está no fato de ele ser muito frio. “Tár” é um filme quase desprovido de emoções e gélido como, por vezes, se comporta a sua personagem principal. Tanto que surpreende aquele que é praticamente o único momento de explosão de sua protagonista tão calculista nos atos e nas palavras.

Isto, porém, não deixa de ser contraditório perto de tudo pelo qual sua protagonista passa, mas também justifica a sua falta de popularidade no circuito comercial.

Embora não seja hermético, “Tár” tem uma pose, uma arrogância e e quase pedantismo que parece muito próximo do elitista mundo da música clássica. No fim, porém, Field só comprova que todos são demasiado humanos. E de carne e osso como qualquer mortal.

Nota: 8.