terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Os melhores e os piores filmes de 2019

Cafarnaum, O Irlandês e Parasitas

Eis que chegamos ao grande momento do ano. A divulgação do prêmio Corneta Ballon D’Or Awards com os 30 melhores filmes de 2019*. 

Vamos ao ranking contendo aqueles trabalhos que de alguma forma foram aprovados pelo crivo SEVERO e IMPLACÁVEL da Corneta: 

1- Cafarnaum (Capharnaum, LIB, FRA, EUA, Chipre, QAT). Diretora: Nadine Labaki. 
2- O Irlandês (The Irishman, EUA). Diretor: Martin Scorsese. 
3- Parasitas (Gisaengchung, Coreia do Sul). Diretor: Bong Joon Ho. 
4- Bacurau (BRA). Diretor: Kléber Mendonça Filho. 
5- Ad Astra: Rumo às estrelas (Ad Astra, EUA, CHI). Diretor: James Gray. 
6- Nós (Us, EUA, CHI). Diretor: Jordan Peele. 
7- História de um casamento (Marriage Story, ING, EUA). Diretor: Noah Baumbach. 
8- Se a rua Beale falasse (If Beale Street could talk, EUA). Diretor: Barry Jenkins.
9- Vice (Vice, EUA). Diretor: Adam McKay. 
10- Nunca deixe de olhar (Werk ohne Autor, ALE, ITA). Diretor: Florian Henkel Von Donnersmarck. 
11- Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, EUA). Diretores: Anthony e Joe Russo. 
12-  Você não estava aqui (Sorry we missed you, ING, FRA, BEL). Diretor: Ken Loach. 
13-Dor e Glória (Dolor y Gloria, ESP, FRA). Diretor: Pedro Almodóvar. 
14- Coringa (Joker, EUA, CAN). Diretor: Todd Phillips. 
15- Era uma vez... em Hollywood (Once upon a time... in Hollywood, EUA, ING, CHI). Diretor: Quentin Tarantino. 
16- Quem você pensa que sou (Celle que vous croyez, FRA, BEL). Diretor: Safy Nebbou. 
17- Green Book (Green Book, EUA). Diretor: Peter Farrelly. 
18- A favorita (The Favourite, IRL, ING, EUA). Diretor: Yorgos Lanthimos. 
19- A professora do jardim de infância (The Kindergarten teacher, EUA, ISR, ING, CAN). Diretora: Sara Colangelo. 
20- Ford vs Ferrari (Ford v Ferrari, EUA, FRA). Diretor: James Mangold. 
21- Homem-Aranha: longe de casa (Spider-Man: Far from home. EUA). Diretor: Jon Watts. 
22- Rocketman (Rocketman, ING, CAN, EUA). Diretor: Dexter Fletcher. 
23- Pavarotti (Pavarotti, ING, EUA). Diretor: Ron Howard. 
24- O velho e a arma (The old man & the gun, EUA). Diretor: David Lowery. 
25- Amor até as cinzas (Jiang hu er nü, CHI, FRA, JAP). Diretor: Jia Zhangke. 
26- Dois Papas (The two Popes, EUA, ITA, ARG, ING). Diretor: Fernando Meirelles. 
27- Midsommar: o mal não espera a noite (Midsommar, EUA, SUE, HUN). Diretor: Ari Aster. 
28- O corvo branco (The White crow, ING, FRA, SER). Diretor: Ralph Fiennes. 
29- Obsessão (Greta, IRL, EUA). Diretor: Neil Jordan. 
30- Graças a Deus (Gráce à Dieu, FRA, BEL). Diretor: François Ozon. 

Mas como nem tudo são flores no ano, eu não posso ir embora sem divulgar os vencedores do Prêmio Uva Passa de piores filmes do ano. Vamos agora às dez bombas largadas no universo em 2019. 

1- Cats (Cats, ING, EUA). Diretor: Tom Hooper. 
2- Rambo: Até o fim (Rambo: Last Blood, EUA, ESP, BUL). Diretor: Adrian Grunberg. 
3- Na Fronteira (Gräns, SUE, DIN). Diretor: Ali Abbasi. 
4- MIB - Homens de preto internacional (Men in black: international, CHI, EUA). Diretor: F. Gary Gray. 
5- Vox Lux: o preço da fama (Vox Lux, EUA). Diretor: Brady Corbet. 
6- Máquinas Mortais (Mortal Engines, EUA, NZL). Diretor: Christian Rivers. 
7- Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw (Fast & Furious Presents: Hobbs & Shaw, EUA). Diretor: David Leitch. 
8- Star Wars: A ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX - The Rise of Skywalker, EUA). Diretor: J. J. Abrams. 
9- Vidro (Glass, EUA, CHI). Diretor: M. Night Shyamalan. 
10- Hellboy (Hellboy, EUA, CHI, BUL, CAN). Diretor: Neil Marshall. 

É isso. Feliz ano novo aos amigos. E que venha a temporada do Oscar!

* Critério para a escolha: Eram elegíveis para entrar no ranking apenas os filmes que estrearam nos cinemas do Brasil e de Portugal entre o primeiro e o último dia do ano, bem como os lançamentos originais em plataformas de streaming. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

J.J. Abrams tenta fazer fan service e joga trilogia de Star Wars no lixo

Se há algo de bom no filme são as batalhas
Desde que a saga Star Wars foi retomada em 1999, maiores foram os erros do que os acertos do universo. Com ambições de finalizar uma jornada que começou lá atrás com o primeiro filme da saga lançado em 1977 e então dirigido pelo criador da história George Lucas, “A ascensão Skywalker” (Star Wars: Episode IX – The Rise of Skywalker, no original) tem tantos erros básicos que a conclusão imaginada por J.J. Abrams para esta saga que atravessou quatro décadas e gerações de fãs beira o melancólico.

Em um ano em que vimos a conclusão da “Saga do Infinito” da Marvel com o lançamento de “Vingadores: Ultimato” fica ainda mais gritante a diferença quando comparamos dois dos universos mais populares do cinema. É claro que o da Marvel foi desde o princípio pensado para ser interconectado e ter uma coesão dentro do mundo em que se inserem aqueles persoagens. Já Star Wars inicialmente era uma trilogia entre 1977 e 1983, ganhou outra entre 1999 e 2005 e uma terceira e definitiva trilogia que começou com o bom “O despertar da força” (2015), continuou com o razoável “Os últimos Jedi” (2017) a concluiu tristemente com “a Ascensão Skywalker” neste ano. 

Mas mesmo quando analisados isoladamente, o maior problema da atual trilogia cujo primeiro e terceiro filme foram dirigidos por Abrams e o segundo por Rian Johnson é que os filmes não dialogam entre si. Parece que cada um toma suas próprias liberdades, faz os personagens viajarem de um lado para o outro sem qualquer fundamento básico e tem suas motivações seguidas ao bel prazer de pinceladas mal ajambradas de um roteiro ruim. Sim, porque o roteiro de “Ascensão Skywalker” é ruim, com diálogos sofríveis que variam entre o infantil e o meramente constrangedor. 

(E ATENÇÃO AGORA PARA POTENCIAIS SPOILERS)

O que Abrams pareceu tentar fazer neste filme foi um grande fan service. Mas esqueceu do básico que faz um filme ser... um filme. Ou seja, falta uma história com coesão, começo, meio e fim e um mínimo de profundidade. Ninguém aqui está pedindo para J.J. Abrams fazer NouvelleVague ou Neorrealismo italiano, mas um filme em que não pode se descuidar de duas coisas fundamentais mesmo para um blockbuster hipercomercial: uma boa história e o desenvolvimento dos personagens. E são duas coisas que agora, olhando em perspectiva, a nova trilogia de Star Wars não tem.

Se analisarmos o enredo desta trilogia, muita coisa não faz sentido. “O despertar da Força” tenta acompanhar a jornada de uma ainda desconhecida Rey (Daisy Ridley), enquanto remanescentesdo Império reorganizam-se como a Ordem Final e buscam meios de derrubar a República Galáctica. Em “Os últimos Jedi”, as principais peças do tabuleiro se separam, o Império ganha força e a resistência é praticamente dizimada. Até que chegamos ao atual filme, em que Palpatine surge do nada e com uma saída fraquíssima do roteiro para comandar o Império com dezenas de naves estrela da morte e quase nada do que o Rian Johnson havia apontado no segundo filme vem a tona no terceiro. Porque simplesmente as histórias não dialogam entre si.

Quando tentamos olhar para a jornada dos personagens, também sobram problemas. É possível imaginar a nova trilogia de Star Wars como um jogo de espelhos para com a trilogia original. Em maior ou menor escala e retirando os andróides deste recorte, os personagens que temos mais lembrança da trilogia original são Darth Vader (originalmente interpretado por David Prowse), Luke Skywalker (Mark Hamill), Leia (Carrie Fisher), Han Solo (Harrison Ford), mestre Yoda e Lando Calrissian (Billy Dee Williams). Seus espelhos na formação de uma nova mitologia Star Wars, mas não necessariamente com o mesmo tipo de história ou temperamento, são Keylo Ren (Adam Driver), Rey, Poe Dameron (Osar Isaac), Finn (John Boyega), Maz Kanata (Lupita Nyong´o) e Rose (Kelly Marie Tran).

Finn, Rey e Poe, ótimos personagens com histórias ruins
Como dissemos, é claro que nem todas as “cópias” são idênticas. Poe tem temperamento semelhante ao de Han Solo, Maz Kanata não é exatamente uma guerreira Jedi, enquanto Finn e Rose não encontram semelhantes na trilogia original. Mas a essência da ideia é essa. A de criar novos mitos com personagens mais afeitos aos tempos em que vivemos e principalmente e fundamentalmente mais representatividade. Daí termos um negro como co-protagonista (Finn), uma mulher como heroína principal (Rey) e outra mulher como uma exímia mecânica de naves (Rose).

Pois bem. E o que foi feito de toda essa gama de 12 personagens? J.J. Abrams tinha tudo para encerrar bem a geração de Luke, Leia e Han Solo e abrir um espaço enorme para a nova geração de Finn, Rey e Poe. Ele não fez nem uma coisa nem outra.

O que vimos foi um grande jogo de fantasmas que foram aparecendo ao longo do filme. Todos eles estiveram lá. Teve espaço até para o Yoda aparecer ao menos em voz. Mas qual a função que os velhos pilares tem de fato no filme? Pouca ou nenhuma. Mesmo a Leia não faz nenhum sentido no roteiro. E isso é facilmente entendido pelo fato de que as cenas em que Carrie Fisher aparece no filme foram gravadas anteriormente ao seu falecimento em 2016, mas não foram utilizadas nos filmes “O despertar da força” e “Os últimos Jedi”. É por isso que elas são pessimamente colocadas e não servem em nada à história.

E o que podemos dizer dos personagens novos? Tiveram um desenvolvimento errático com roteiros mais rasos que uma piscina para bebês.

Sim, porque tínhamos três ótimos e promissores personagens para serem os pilares de uma nova era e com uma química excelente. Finn, um stormtrooper que escapa das mãos do império. Poe, um candidato a novo Han Solo, exímio piloto e extremamente arrogante e convencido, e Rey, uma desconhecida que vivia num planeta distante, cuja origem desconhecíamos, mas que detinha um poder diferente da Força. Para onde eles foram depois de tudo isso? Que jornada tiveram? Que provações tiveram que enfrentar? O desenvolvimento deles foi errático e pouco convincente.

Toda a mitologia de Star Wars (e de muitos produtos do cinema) é baseada na jornada do herói. E nós temos três aqui para acompanhar nesta saga. Pelo que eles passaram? Que desafios pessoais enfrentaram para além de combater o Império? Finn foi um personagem esquecível no segundo filme e no terceiro já surge como membro proeminente da resistência sem muito se falar do que aconteceu com ele, das suas origens e da sua história. Poe erra um arrogante no primeiro filme, mas exímio piloto com uma família ligada à resistência, tentou aprender alguns passos com Leia, que o explicou a importância de mais do que ser alguém qualificado era preciso ser um líder, e no terceiro filme virou um mulherengo com um passado de contrabandista em uma história muito mal inserida no roteiro.

E ainda tivemos Maz Kanata, uma personagem promissora que foi subaproveitada na série, e Rose, que foi uma das protagonistas de “Os últimos Jedi” e neste filme foi reduzida a três ou quatro falas irrelevantes e muita correria.

E assim chegamos a Rey. A solução dada para ela foi péssima. Ser neta do Palpatine quando nunca soubemos sequer da existência de uma árvore genealógica básica do imperador parece uma tentativa de dar um plot twist que se revelou muito ruim. Seria a versão destra trilogia para o famoso “Luke, I am your father” de Darth Vader, porém simplesmente não faz sentido. Era melhor que a Rey não tivesse parentesco com ninguém e fosse realmente ninguém e meio que adotada pela família Skywalker. Afinal, a Força não é genética. Qualquer um pode vir a tê-la e desenvolvê-la. Inclusíve essa era uma ideia difundida em “Os últimos Jedi”.

Rey, porém, ainda tem um arco um pouco mais trabalhado. Confuso, é verdade, mas com um pouco maiks de profundidade. Afinal, entre os protagonistas ela é A protagonista da saga. Porém, sua vida se resume a divagações e provações que testem a sua fé enquanto ela passa três filmes em WhatsApp mental com Keylo Ren. Parece mais que ela está sendo treinada para fundar uma igreja do que para ser uma guerreira Jedi. E enquanto isso tem que resistir no deserto à tentação do lado negro da Força. E, convenhamos, Rey e Keylo formando um casal é o que de pior poderia acontecer.

Mais importante de tudo é que os três personagens não têm um desenvolvimento sólido que nos faça comprar as suas histórias.  

E o mesmo vale para Keylo Ren. O personagem de Adam Driver nunca foi o vilão que deveria ter sido nesta trilogia. Sua história é pueril, suas motivações não convencem e a sua participação no último filme se resume a ótimas cenas de batalha e uma indecisão ou mudanças de rumos tomadas a partir de pequenas coisas que o fazem ser um personagem fraco. 

Se tem algo que “A ascensão Skywalker” tem são suas boas cenas de luta. Os efeitos especiais são ótimos, as lutas são bem coreografadas, mas Abrams se esqueceu de que os efeitos especiais precisam ficar a serviço da história e não o contrário. Esta é diferença entre um bom filme e um filme medíocre quando analisamos um blockbuster. E Star Wars, infelizmente, é um filme medíocre. 

É uma pena que Abrams parece não ter compreendido a melhor forma para fechar esta mitologia de Star Wars. Neste ponto, e também olhando em perspectiva, Rian Johnson nos deu um caminho mais interessante a trilhar com o seu filme do meio. Ao menos ali tinha um mínimo de conceito. Com uma série de problemas, é claro. Mas havia uma história em que se podia agarrar e seguir em frente. Abrams não soube aproveitar o que “Os últimos Jedi” tinha de bom, não levou a saga para além de um confronto do bem contra o mal em batalhas de naves espaciais e raios disparados e concluiu a história da forma mais risível possível e com soluções fáceis. 

Johnson, aliás, comandará a nova trilogia de Star Wars que promete ser lançada nos próximos anos. Não sabemos, porém, se Finn, Poe e Rey voltarão, mas ainda é possível aproveitar eles e explorar melhor as suas histórias. Ainda mais em uma saga começando do zero e sem os fantasmas do passado. É preciso, também, haver um vilão bom, o que nunca houve nesta atual trilogia.

“A ascensão Skywalker”, portanto, é decepcionante. Não é por acaso que Abrams anda sendo chamado de Jar Jar Abrams, em referência ao odiado personagem Jar Jar Binks da segunda trilogia. O diretor, de fato, deixou a desejar. Mas é claro que esta saga ainda tem muita força. E fãs que sempre vão querer uma nova história. 

Cotação da Corneta: nota 3,5.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

“O irlandês”, de Scorsese, é um filme que já nasce como um clássico

Pesci e De Niro em atuações monstruosas
Um dos diretores fundamentais da história do cinema, Martin Scorsese já realizou diferentes tipos de filmes. Muitos deles muito bons. Mas parece ser no território das histórias sobre a máfia que o cineasta novaiorquino descendente de sicilianos se sente mais à vontade para contar algumas das suas grandes histórias. “O irlandês” (The Irishman, no original) é definitivamente uma delas. Baseado no livro “I heard you paint houses”, de Charles Brandt, o filme já nasce como um clássico não apenas do gênero, como também da história do cinema.

Tudo na produção de “O irlandês” é impecável. A condução da história de Scorsese, a forma como a história é contada, a trilha sonora econômica e precisa, a edição de Thelma Schoonmaker, colaboradora de mais de três décadas de Scorsese, o trabalho impecável de efeitos especiais que fez três atores de quase 80 anos rejuvenescerem para contar a história proposta pelo diretor, e, claro, a atuação do trio de protagonistas; Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Trabalhando juntos pela primeira vez, o trio entrega atuações excelentes. Especialmente Pesci, que, aos 76 anos, voltou da aposentadoria para dar vida ao mafioso Russell Bufalino num dos melhores trabalhos de sua carreira.

O filme é baseado numa história real. Ele acompanha a ascensão de Frank “irlandês” Sheeran (De Niro) de motorista de caminhão a nome fundamental da estrutura da máfia local ao mesmo tempo em que Scorsese procura dar sua interpretação para a misteriosa morte de Jimmy Hoffa (Pacino), o conhecido e poderoso líder do sindicato dos caminhoneiros dos Estados Unidos entre os anos 50 e 70, que desapareceu em 1975, justamente no momento em que tentava reconquistar o controle do sindicato depois de passar quatro anos na cadeia por fraude.

Com 3h30min, “O irlandês” é o filme mais longo de Scorsese, mas vale cada segundo. Não há uma cena que poderia ter sido cortada ou que tenha sido colocada em excesso. Cada cena faz sentido para contar a história do trio de protagonistas ao longo das décadas, o que transforma o filme num épico sobre a máfia comparável à trilogia do “Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola.

A comparação entre os dois diretores contemporâneos é inevitável, dado que o ambiente é o mesmo entre a clássica trilogia de Coppola feita entre 1972 e 1990 e “O irlandês”. A diferença talvez seja na abordagem. “O Poderoso Chefão” mitificou os altos escalões da máfia, numa série de filmes que também tinha como estrelas a dupla Pacino e De Niro. Sem contar, é claro, o talento de Marlon Brando no primeiro filme.

Pacino e De Niro reeditando velha parceria
“O irlandês”, por outro lado, joga luz sobre os soldados da máfia. Scorsese, aliás, sempre gostou de contar suas histórias sob a perspectiva dos escalões mais abaixo da estrutura do crime organizado. Ele faz a mesma coisa em “Os bons companheiros” (1990) e “Cassino” (1995). Em “Os Infiltrados” (2006), filme que lhe rendeu seu único Oscar de diretor até aqui, o olhar já é sobre os agentes duplos da história.

Aqui o narrador da história é Sheeran, desde o momento em que dirigia um caminhão que fornecia carne para Navalha (Bobby Cannavale), passando pelo seu primeiro encontro com Russell, quando começa a “pintar paredes” para a máfia, e chegando o fim da sua vida, quando já debilitado e sem nenhum dos seus velhos companheiros, pois todos já estão mortos, Sheeran definha num asilo lidando com os erros e os arrependimentos do passado.

É pelo olhar de Sheeran que vamos acompanhando o desenrolar das histórias de todos os mafiosos que circundam os Estados Unidos naquelas décadas em que Hoffa era um poderoso dirigente sindical e mantinha relações com a máfia. Acompanhamos a influência silenciosa de Russell sobre toda a organização criminosa americana, a ascensão de novos nomes para a ribalta do crime e a queda de nomes que vão perdendo o interesse ou cumprindo as suas missões ao longo dos anos.

Mesmo vivendo uma vida em que se vê cercado pela violência, sendo ele mesmo responsável por muitos atos violentos naquelas décadas, Sheeran consegue passar incólume enquanto vê outros companheiros ou inimigos tombarem nas disputas e entre as relações de poder da máfia.

O passar dos anos vai criando um Sheeran, que a despeito da lealdade com quem lhe deu abrigo e poder na estrutura da máfia, também sente o amargor das escolhas que foi obrigado a fazer, a dor do afastamento da filha primogênita e a sensação de solidão ao ver que seus velhos companheiros não estão mais ali. Todos tombaram pela violência ou, com sorte, de causas naturais, deixando para Sheeran o vazio de uma vida em que ninguém conhece os seus, digamos, “feitos” e ele mesmo não os pode contar, mesmo tantas décadas tendo se passado.

É uma pena que “O irlandês” tenha se reduzido em muitos lugares à reprodução na Netflix, o serviço de streaming que topou bancar o orçamento de US$ 175 milhões, o mais alto da vasta carreira do diretor. Um filme deste porte e um dos melhores do ano merecia uma sala de cinema. Scorsese realizou uma obra-prima insuperável em sua filmografia que conta com muitos excelentes títulos.

Cotação da Corneta: nota 10.