domingo, 31 de janeiro de 2016

Ingrid Bergman

Ingrid Bergman: seu doc é magnífico
Coisas que aprendemos no documentário "Eu sou Ingrid Bergman":

1. Ingrid Bergman era uma acumuladora. Simplesmente guardava tudo o que juntava desde a infância. Diários, cartas, fotos, filmes caseiros. Carregou tudo com ela até o fim da vida. 

2. Aliás, a atriz registrava absolutamente toda a vida em fotos ou vídeos. Imagina se já existisse internet e Facebook nos anos 40 e 50...

3. Não julguem mal os acumuladores. Foi essa postura que fez o documentário de Stig Björkman ser tão bom. Estava tudo lá. Bastou fazer umas entrevistas complementares, editar tudo e correr para o abraço. 

4. Ela parecia ser uma mulher cheia de vida e extremamente agradável. Amada pelos filhos mesmo quando passava meses distante trabalhando. Bom, a Pia, sua primeira filha, guarda um rancorzinho de ter sido abandonada quando deu a louca na Ingrid e ela foi morar na Itália, mas também a amava. 

5. Segundo Roberto Ingmar Rosselini, um dos seus filhos, ela era muito tímida e suava frio antes de entrar no palco. Mas uma vez nele, virava diva. 

6. Aparentemente Ingrid tinha um carinho pela figura de Joana D'Arc. Tanto que a interpretou no teatro e no cinema. 

7. Ingrid era um espírito livre. Em suas palavras, não gostava de criar raízes. Tanto que morou na Suécia, onde nasceu, Estados Unidos, Itália, França e Inglaterra. O mundo era sua casa. E tendo dinheiro tudo fica mais fácil.

8. Ao mesmo tempo que era cheia de vida, a atriz era um pouco solitária. Ou melhor, se impunha uma pequena carga de solidão em meio ao seu transbordamento de vida. 

9. Roberto Rosselini, meu caro, você não entendeu nada e perdeu uma grande mulher. Todo canário canta melhor quando está livre na floresta (provérbio chinês de filme de kung fu). 

10. Além de Rossellini, Ingrid pegou o fotógrafo de guerra Robert Capa. Pelo visto, ela tinha uma tara por lentes e câmeras em geral. 

11. Os EUA sempre foram a terra do conservadorismo e naquela época era ainda pior. É inacreditável que tenham crucificado a atriz com requintes de crueldade por simplesmente ter abandonado o primeiro marido para viver com Rossellini, diretor por quem ela se apaixonara. Para piorar, ela ainda estava grávida. Foi um escândalo de altos de páginas de jornais. Um senador chegou a dizer que das cinzas de Ingrid nasceria uma Hollywood melhor (sabe de nada, inocente). Que país estranho esse que transforma a vida pessoal de um artista em caso de segurança nacional. 

12. Sete anos depois do caso, uma TV americana ainda fez uma espécie de "Você Decide" para saber se deveria entrevista-la. É muito rancor. Mas ainda assim, Ingrid ganharia mais um Oscar. 

13. É curioso como Ingrid achava que Humprey Bogart era uma estrela, quase um deus do cinema arrogante e percebe que ele não era nada disso ao conhecê-lo nas filmagens de "Casablanca" (1942) e como a história se repete quando ela é a atriz consagrada e Sigourney Weaver é que pensa que vai lidar com um monstro em uma peça de teatro em Londres.

14. Que mulher fascinante era Ingrid Bergman. E que documentário muito interessante. Quero ter um na minha coleção de DVDs (sim, eu também sou um acumulador).

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

A vida é dura

A história é quase real, mas a neve é fake
Vou definir para vocês em um tweet o que é "Joy", o novo filme de David O. Russell: A fábula de uma mulher guerreira que tem uma família que não vale nada, mas inventa um esfregão revolucionário e vai vendê-lo no Polishop.

Pronto. Você poderia parar aí e seguir a sua vida. Você poderia dizer: Ah, gostei. O mundo precisa de mulheres de força, protagonistas em histórias inspiradoras. E aí você vai ao cinema e é recompensado por uma boa atuação de Jennifer Lawrence e de Robert de Niro (impagável). 

Ou você pode dizer: humm, se eu quisesse uma fábula ficava em casa lendo Esopo ou vendo um DVD da "Branca de Neve e os sete anões". Parece-me uma bomba. 

Além disso, Jennifer Lawrence e Bradley Copper de novo juntos??? Será que eles estão se pegando? Ok, "Trapaça" (2013) era até divertido, uma boa "Sessão da Tarde", mas "O lado bom da vida" (2012).... Bom, pelo menos parece que eles não dançam nesse filme (é verdade, eles não dançam). 

Como diria uma amiga minha quando lava as mãos e manda eu tomar minhas próprias decisões difíceis e assumir as responsabilidades delas: "It's up to you". 

Aqui vão algumas impressões sobre "Joy", já adiantando que eu não sou particularmente um fã de David O. Russell. Ok, "O vencedor" (2010) é ótimo, "Trapaça" é muito bom, mas "O lado bom da vida" não me convenceu. Assim como este novo filme do diretor. 

Além do tweet do primeiro parágrafo, "Joy" também pode ser visto como uma ode ao capitalismo. Pois só no capitalismo você fica tão no vermelho quanto Joy e continua fazendo o dinheiro girar.

Basicamente, o filme conta a história de uma mulher que abriu mão de estudar numa boa universidade de Boston para cuidar da família. Os pais (De Niro e Diane Ladd) estavam se separando. Ela conheceu um cantor de boteco venezuelano (Edgar Ramirez), ele mandou um "How you doinnn'" para ela e logo depois eles se casaram. Mas o casamento fracassou depois de dois filhos. Só que eles viraram ótimos amigos que vivem na mesma casa. 

É isso mesmo, na casa maluca de Joy, o ex-marido vive no porão dividindo-o com o pai, que se separara da mãe. Esta por sua vez vive há sete anos sozinha no quarto vendo a mesma novela (meu Deus, que novela dura tanto tempo?) e não gosta que nenhum homem entre lá. Ela ainda tem uma meia-irmã invejosa que adoraria derrubá-la. 

Há diversos personagens cômicos, poderia ser uma boa comédia. Mas o drama de Joy é real. Ela inventa coisas, cria, tenta ganhar a vida honestamente enquanto se equilibra entre dívidas e os problemas da casa. É uma guerreira e é a sua jornada de superação e dor que acompanhamos. Tudo narrado pela sua avó. 

Joy inventa um esfregão revolucionário para as donas de casa, mas precisa produzir e vendê-lo. Lida com parentes e patentes, gente querendo destruí-la, empresários inescrupulosos. É preciso muito jogo de cintura para viver essa vida e ainda cuidar das crianças. Mas a televisão... A televisão pode tornar any ordinary people em star. 

Acredito que o filme não consegue se equilibrar bem entre a comédia e o drama. Nem se definir sobre o que deseja para si. É muito comédia de um lado (a família quase caricata) e muito drama do outro (tudo dá muito errado para Joy até ela começar a se acertar). 

Poderia ser uma comédia dramática e não ter nenhum problema, mas o drama de Joy é tão sério, tão palpável, que não dá para rir tanto assim. Você sofre com ela enquanto ri dos demais personagens. Você pode ver como um mérito de Russell. Mas para mim não funcionou muito bem. 

É apenas uma opinião pessoal. Talvez "Joy" possa agradar você como talvez "O lado bom da vida" tenha agradado. Para a corneta, no entanto, o filme não atingiu plenamente o seu objetivo. Ainda que, por causa de alguns méritos, ele vá levar uma nota 6.

Indicação ao careca dourado: melhor atriz (Jennifer Lawrence)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O médico e o monstro

Eu comando a orquestra: chupa mundo
Quando o trailer de "Steve Jobs" foi divulgado no ano passado eu comentei que somente aqueles três minutos já eram melhores do que o PAVOROSO (assim mesmo, em letras garrafais) "Jobs" (2013). Aquele filme era tão ruim que merecia ser esquecido. Ele começou errado já na escalação de Ashton Kutcher para viver o gênio da Apple, o cara que criou 32% das coisas legais que usamos no século XXI.

Pois vejam só. Após o lançamento de "Steve Jobs", o novo filme sobre o maluco irascível que começou o seu império numa garagem como grandes bandas de rock, deu uma função ao "Jobs". Isso porque se você quer conhecer a história de Jobs de uma forma mais linear e próxima do que realmente rolou na vida dele, ele vai te ajudar um pouquinho. 

Já no caso do maravilhoso trabalho da dupla Danny Boyle-Aaron Sorkin, o papo é mais profundo e visceral. Diretor e roteirista pegaram o fundador da Apple para fazer um filme-ensaio sobre a vida deste sujeito genial e intragável. Um cidadão amado por quem não o conhecia e duro de engolir pelos seus subordinados. 

Jobs nunca foi um exemplo de bom chefe. Por trás de todo o seu modo bem particular de pensar e sua teimosia tinha um cara que só admitia a perfeição. E pessoas assim são insuportáveis. Era um sujeito que seria capaz de vender a mãe por uma boa ideia. Um homem que tinha a consciência que estava construindo o futuro e revolucionando toda essa bagaça. 

Para fazer isso, Sorkin abusou da licença poética. Ele já tinha feito algo semelhante em "A rede social" (2010), filme que falava sobre a vida do fundador do Facebook, Mark Zuckerberg. Nem tudo o que acontece no filme realmente aconteceu. Mas é daí? Se o próprio Jobs pregava que era preciso vender uma imagem que gerasse um desejo animalesco de consumo, por que o roteirista não poderia fazer com que o seu filme fosse uma viagem reflexiva a partir de uma tentativa de entender a cabeça de Steve? 

"Steve Jobs" é um ensaio em três atos. Em cada um deles, o personagem vivido muito bem por Michael Fassbender contracena basicamente com cinco personagens: sua diretora de marketing e melhor amiga, Joanna Hoffman (Kate Winslet, merecidamente indicada ao Oscar), Steve Wozniak (Seth Rogen), o amigo com quem ele criou o Macintosh e começou a Apple, Andy Hertzfeld (Michael Stuhlbarg), o programador, John Sculley (Jeff Daniels), o CEO da Apple com quem ele tem um diálogo avassalador no segundo ato, e a filha Lisa (Makenzie Moss, Ripley Sobo e Perla Harney-Jardine nas três fases), que ele demorou a reconhecer. 

E tudo se passa em três momentos-chave da carreira dele: o lançamento do Macintosh, o lançamento do cubo NeXT, feito depois que ele foi expulso da Apple, e o seu retorno para recuperar a empresa com o lançamento do revolucionário IMac. 

Nestes três atos, Sorkin e Boyle fazem um exercício de especular o que se passa na cabeça de Jobs, de tentar entendê-lo e montar um quebra-cabeça que mostra o gênio e o monstro que ele era. Como qualquer ensaio, eles levantam teses e deixam no ar para o espectador refletir. Ele era teimoso demais? Não valorizava o trabalho em equipe? Precisava humilhar as pessoas? Por que ele precisava ser tão difícil? Até onde a personalidade controversa justifica a genialidade? 

Ambos vendem a ideia de um Jobs que se via como um semideus, acima do bem e do mal. O maestro da orquestra, o técnico do time, o Romário dizendo na TV: eu vou ganhar a Copa. Mas que tanta autossuficiência o prejudicava. Faltava-lhe humanidade para pedir perdão e reconhecer a colaboração de quem o ajudou a chegar lá. 

Você pode concordar ou não com as ideias do filme. Pode chegar a outras conclusões. Pode detestar o filme. Mas é impossível ficar indiferente a ele. 

A corneta acha lamentável que o roteiro de Sorkin, que venceu o Globo de Ouro, não tenha sido indicado ao Oscar. Mais do que o excelente trabalho do diretor e dos atores, são os diálogos escritos pelo roteirista que fazem o filme ser incrível. Uma bola fora da turma do careca dourado. Vou até me arriscar que "Steve Jobs" merecia concorrer a melhor filme. 

Este texto, que foi todo escrito em um IPhone (obrigado, Jobs!), se encerra com "Steve Jobs" recebendo a merecida nota 8,5.

Indicações ao careca dourado: Melhor ator (Michael Fassbender) e melhor atriz coadjuvante (Kate Winslet).

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

In love

Que saco essa vida sem internet
Se o amor é brega e torturante hoje, imagina nos anos 50. Aquela eterna troca de olhares, três meses negociando para ver um tornozelo... Tudo era difícil na era pré-internet, amigos. Não havia Tinder para dar match. E como Therese (Rooney Mara) ia adorar ter um Tinder. Seria muito mais fácil para ela se arranjar. E não ia precisar aturar um noivo nada mara.

Mas estávamos nos anos 50. E sua melhor chance era uma incrível mulher chamada Carol (Cate maravilhosa casa comigo Blanchett) que ela conheceu por acaso na loja de brinquedos que trabalhava. 

Carol nunca ia precisar de Tinder, pois sempre foi atiradinha. E quando soube que Therese gostava mais de trenzinhos do que de bonecas (lembrem, estávamos nos anos 50 e os times azul e rosa eram bem delimitados), ela FAREJOU a oportunidade e pensou: "Tá no papo". Basta só usar o velho truque de deixar para trás um objeto pessoal como isca. Mas tudo com muita classe. Afinal ela é uma mulher da alta sociedade e é a Cate Blanchett. 
Musa, 
Diva,
Rainha das loiras,
Única, 
A diferentona

"Carol" é uma história de amor. E como toda história de amor, ela pode ser bem boring para quem não está vivendo uma história de amor neste momento. 

Como toda história de amor ela tem os seus percalços. É assim desde que Shakespeare escreveu "Romeu & Julieta" no século XVI. E tudo só ficou ainda mais dramático quando o Romantismo bateu à porta com delicadeza e dramaticidade no século XIX. 

No caso de Carol, o complicador é o marido. Ao invés de aceitar, pois sempre dói menos, Harge (Kyle Chandler fazendo o perfeito corno vingativo) resolveu brigar para manter a ex-atual nas suas garras. Ameaçou até impedir nossa heroína de ver a filha para sempre, pois Carol não teria envergadura moral para até trocar olhares com Rindy. Óbvio que a coisa ficou feia. Não se mexe na relação mãe-filha sem a coisa ficar feia. 

Mas como resistir àquela jovem vendedora aprendiz de fotógrafa que ventila a possibilidade de trabalhar no New York Times? Como não propor um fim de ano mágico? Aquele folgão de Natal e Ano Novo viajando para uma cidadezinha distante e ver o que podia rolar ali, com elas duas entre quatro paredes. É difícil resistir a Rooney (a Mara, não o Wayne). É impossível resistir a Cate.

Dirigido por Todd Hayes, "Carol" conta essa angustiante e tortuosa busca pelo amor e por descobrir quem você realmente é. Tudo feito num ritmo bem lento, na troca de olhares, nos pequenos gestos, captando quase a respiração das duas atrizes. E temos aí um mérito. 

Mas você menino-ogro tarado poderia dizer: Meu Deus, parece "50 tons de cinza"! Como demoram a trepar! Amigo, eram os anos 50. Lembra o que eu disse lá atrás? Meses para ver um dedo mindinho. Fora a culpa e o desejo flutuando lado a lado. Você foi ver um cruzamento de Jane Austen com Lord Byron achando que estava diante de Brasileirinhas? 


Ok, Cate está bem, mas Rooney não está mara (perdão pelo trocadilho), o filme tem sensibilidade, mas deu soninho em determinados momentos. Eu disse, Histórias de amor podem ser bem chatas. E "Carol" fica no meio do caminho. Não é um completo estorvo. Mas não é uma obra-prima. Vai ganhar uma nota 6,5.

Indicações ao careca dourado: Melhor atriz (Cate Blanchett), atriz coadjuvante (Rooney Mara), roteiro adaptado, fotografia, trilha sonora original e figurino.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Rocky is back

Espelho, espelho meu...
Toda última luta de Rocky Balboa nos filmes é uma metáfora da carreira de Sylvester Stallone. Começa muito bem, apanha muito nos nove rounds seguintes e depois ressurge das cinzas ao ouvir aquela trilha sonora, AQUELA TRILHA que funciona como o espinafre para o Popeye, para virar o jogo nos dois rounds finais e sair vitorioso do ringue gritando AAAAADRIANNNN.

Vejam se não é verdade. Stallone, o menino Stallone, como diria o Galvão Bueno, tinha apenas 30 anos quando recebeu duas indicações ao Oscar (melhor ator e roteiro) pelo primeiro Rocky (1976). Depois disso, amigo, só porrada. “Rocky IV”, o meu favorito, aliás, recebeu três indicações ao Framboesa de Ouro de 1986 (pior roteiro, diretor e ator). Stallone ganhou como diretor e ator. “Rocky V” recebeu duas indicações no Framboesa de 1991 (pior roteiro e ator). E só não teve mais porque o Framboesa foi criado em 1981, enquanto “Rocky II” é de 1979 e “Rocky III” é de 1982, logo não deve ter dado tempo deles verem esse filme.

Stallone, aliás, tem nada menos do que 36 indicações ao Framboesa de Ouro e dez vitórias. Entre elas um prêmio especial de pior ator do século XX. Um fenômeno.

Mas a vida dá voltas. E em 2015, Stallone voltou a interpretar o GARANHÃO ITALIANO (o boxe não existe sem seus apelidos) para mostrar ao mundo quem ele realmente é. O talento que ele esconde no fundo da sua alma. E foi assim que Rocky Balboa ouviu a sua música, levantou-se do ringue sangrando para dar a volta por cima e vencer a luta com uma indicação de melhor ator coadjuvante no Oscar. Imaginem como não será emocionante se Rocky erguer o careca dourado em fevereiro? Obrigado, ACADEMIIIIIIIAAAAAAA.

"Creed" é o retorno de Stallone a um dos seus dois personagens marcantes (o outro, vocês sabem, é o Rambo. Depois ele só interpretou variantes disso). Por mais que não tenha o nome de Rocky no título, você apreciará o trabalho de Ryan Coogler com mais DELEITE depois de um intensivão dos seis filmes do garanhão italiano.

É claro que "Creed" (favor não confundir com aquela bandinha mequetrefe) é muito legal de qualquer forma. Mas ele será puramente nostálgico para os fãs de Rocky, que vão se lembrar dos velhos personagens que já seguraram na mão de Deus e foram (Paulie, Mickey, Adrian), e recordar dezenas de locações já mostradas nos outros filmes.

Em "Rocky Balboa" (2006), o ex-campeão mundial se aposenta de vez após uma vitoriosa carreira em que conquistou três títulos mundiais e participou de épicas lutas, como a contra Ivan Drago em “Rocky IV”. Os anos se passaram, todos os amigos morreram, assim como Aaaaaaaadrian, a sua amada esposa, e Rocky foi tocar a vida longe do boxe. Para isso ele tem um restaurante de comida italiana com direito aquelas toalhas de mesa características. 

Até que um dia um moleque mimado aparece na sua porta. Vindo de Los Angeles após pedir demissão do seu emprego para sair em busca de novos desafios, ele surge com uma proposta indecente. Pede para Rocky ser o seu treinador. O garoto trata-se de Adonis "Hollywood" Creed (Michael B. Jordan), filho de Apolo, o DOUTRINADOR, primeiro adversário de Rocky pelo título mundial lá no fim da década de 70 e amigo pessoal dele. 

Rocky hesita, faz aquele jogo. Estou velho, não dá mais pra mim. Não quero mais saber de boxe. Mas como negar um pedido do filho do seu amigo? E aquela vontadezinha de voltar ao mundo do boxe agora no papel de professor? Sem contar que se ele negasse a ajuda não tinha mais filme. 

Rocky topa e cá estamos de volta para as streets of Philadelphia (laralalara-rá... cantem no ritmo de Bruce Springsteen) para Adonis entender que para ser um vencedor de verdade é preciso ter o treinamento roots do nosso herói. E tome de referências aos velhos filmes. Correr atrás de uma galinha, correr pelas ruas acompanhando um carro, de volta ao velho ginásio de Mickey... Só faltou mesmo a sequência de socos em pedaços de carne no frigorífico. Ele deve ter falido com a crise econômica de 2008. E ainda tem a já comentada tradicional e arrepiante trilha sonora no 12º round. 



Coogler tirou de Stallone uma das melhores atuações de sua carreira (acreditem!). Como um Rocky mais velho, um senhor aposentado que têm saudade dos velhos companheiros que já se foram, ele ganha novo fôlego na vida com a chegada do "sobrinho". Um estímulo que o ajuda a lutar contra uma doença e a melancolia causada pela saudade de Aaaaaaadrian, Paulie e do filho, que não é a Luiza, mas está no Canadá. Pela atuação, Stallone ganhou o Globo de Ouro e foi indicado ao Oscar 39 anos depois de sua indicação pelo primeiro Rocky. E foi merecida. Aceita que dói menos.

"Creed" ainda tem como mérito as boas cenas de luta, algo fundamental quando se trata de um filme sobre boxe. A única bola fora foi terem colocado dois caras com um cachecol do Liverpool na luta contra o inglês Ricky Conlan (Tony Bellew), um lutador ligado ao Everton e em pleno Goodison Park. Isso jamais aconteceria no mundo real. 

O trabalho de Coogler, porém, tem tudo para iniciar uma nova era na carreira de Rocky até onde Stallone quiser interpretá-lo (assim esperamos). Agora como treinador, ele tem muito a ensinar ao jovem filho de Apolo. Enquanto isso, "Creed" vai ganhar da corneta uma nota 7,5.


Indicação ao careca dourado: ator coadjuvante (Sylvester Stallone).

domingo, 17 de janeiro de 2016

Apostando contra

Margot Robbie explica o subprime
Mesmo depois de tantos filmes sobre a crise econômica de 2007-08, eu ainda consigo me confundir quando chegam para mim falando sobre CDO, swaps e outros termos do gênero. E não ajuda muito quando a Margot Robbie aparece nua numa banheira de frente para o mar para explicar o que é subprime. É óbvio que você não vai prestar atenção no subprime da mesma forma que parou de ler esse texto ao ver a foto acima. 

Mas valeu a tentativa. Aliás, valeu demais a tentativa Adam McKay. "A grande aposta" é o filme mais pop de todos já feitos sobre a crise. É um filme com a cara da corneta. Cheio de referências totalmente excelentes no roteiro e tentando fazer o cidadão comum entender o economês, essa língua do capeta. 

Acima disso tudo, porém, é possível tirar duas lições do filme: 

Não pareço o Lars Ulrich?
1. Todo homem que escuta heavy metal está à frente do seu tempo e é capaz de prever o futuro. Eu sempre soube disso. Pesquisadores britânicos já comprovaram que pessoas que ouvem heavy metal são 34,78% mais inteligentes do que os apreciadores de outros gêneros. 

2. Como o Steve Carell pode ser um bom ator! Eu dei uma olhada no perfil dele no Linkedln do cinema, ou seja, o Imdb, e tem pouca coisa relevante que ele tenha participado. Entre elas, "Pequena Miss Sunshine" (2006) e "Melinda e Melinda" (2004) em 73 trabalhos. Mas quando ele se leva a sério, ou alguém o leva a sério, caso de McKay, que lhe deu um dos protagonistas do filme, ele até pode brilhar. 

Em "A grande aposta", Carell é Mark Bauman, um dos caras que se deram bem ao preverem com dois anos de antecedência que a bolha imobiliária iria estourar deixando milhares de desempregados, desabrigados e fodidos em geral. Foi um período devastador. Bancos faliram, outros foram salvos pelo governo americano, mas nada menos que US$ 5 trilhões sumiram do mapa. É muita grana.

Mas Bauman não foi o primeiro a descobrir que ia dar merda. Esta profecia coube a Michael Burry (Christian Bale, mais uma vez bem demais num papel). 

Burry era um cara esquisito com um olho de vidro que trabalhava de bermuda e descalço (um sonho!) e ouvindo heavy metal (isso eu ainda consigo fazer nos feriados). Um dia ele estava ampliando a mente e dando uma espairecida com uma sequência de Metallica e Slayer quando percebeu que havia alguma coisa errada com as hipotecas. Estava rolando uma dose alta de inadimplência, em torno de 4%, naquilo que era visto como o investimento MAIS SEGURO de todos. Mas Burry pensou: "Isso vai feder. E, em 2007, quando a taxa de inadimplência chegar a 8%, o mercado vai quebrar e eu vou lucrar bilhões. Vou investir alguns milhões nisso". 


É claro que Burry foi ridicularizado, chamado de maluco para baixo. Os metaleiros visionários são sempre incompreendidos. No fim, para desespero de milhões de americanos e de Wall Street, ele estava certo. Fedeu demais. A merda foi para o ventilador em velocidade cinco em meio a um sistema fraudulento em que as agências de classificação de risco perderam total credibilidade porque não eram tão independentes quanto se imaginava (Incrivelmente, parece que elas recuperaram tudo).

Outros caras que previram a chegada do apocalipse também lucraram muito com a quebra dos bancos e o estouro da bolha. Eles são os vilões do filme? Aqueles que alisam o seu cheque de US$ 470 milhões? (É com você mesmo que estou falando, Ryan Gosling!). Ou é o sistema, que provou não ser tão seguro quanto pregava? Afinal, como diria o Capitão Nascimento o sistema é... deixa pra lá. Esse texto já estourou a cota de palavrões.

McKay deixa para o espectador refletir. A questão é: se você tivesse a chance de lucrar ao perceber o que estava acontecendo, você faria isso ou não? Este é o grande dilema de Bauman no filme. O que deve prevalecer: a raposa do mercado financeiro ou o lado humano, demasiado humano?

Carell: 'Eu posso ser sério, Ryan!'
"A grande aposta" é um filme muito divertido. Uma excelente comédia (acho que dá para chamar de comédia) em que há um louvável esforço em fazer o espectador se entreter e ao mesmo tempo entender tudo o que aconteceu com a economia naqueles anos complicados. As esquetes inseridas no meio do filme (ainda tem um chef em um restaurante e a Selena Gomez explicando o CDO enquanto joga cartas em Las Vegas) e a quebra da quarta parede ao estilo Frank Underwood tornam tudo mais leve e inteligível em meio a verborragia econômica.

E ainda tem uma trilha sonora maravilhosa, pois qualquer trilha sonora que tenha Metallica, Nirvana, Guns N'Roses e Led Zeppelin é maravilhosa. No fim, o que fica é o recado de Robert Plant e Jimmy Page: "If it keeps on rainin', levee's going to break/ When the levee breaks/ I'll have no place to stay ("Se continuar chovendo, as barragens irão romper/quando a barragem romper/não terei onde ficar". 

Ah, vocês ainda estão ai? Não ficaram paralisados na foto da Margot Robbie? Bom, então aqui vai a cotação final da corneta. "A grande aposta" vai ganhar uma nota 8,5.


Indicações ao careca dourado: melhor filme, diretor (Adam McKay), ator coadjuvante (Christian Bale), roteiro adaptado e edição.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O novo western de Tarantino

Samuel L. Jackson mostra quem manda
Quentin Tarantino é uma espécie de Garrincha do cinema. Todo mundo sabe o que ele vai fazer, mas ninguém deixa de ver os seus filmes. Como os nossos avós não deixavam de ir ao Maracanã para ver o ex-atacante do Botafogo usar o mesmo drible contra os zagueiros pelos gramados. 

Tarantino tem oito filmes na vida. Todos falam sobre um único tema: vingança. Nada mais humano. Atire a primeira pedra quem nunca se vingou. Ou desejou se vingar sobre algo. 

Outra característica dos seus filmes são as mortes violentas. Cabeças estourando, sangue jorrando para todos os lados. As empresas de sangue artificial (deve ter uma coisa assim) devem esfregar as mãos quando Tarantino anuncia que vai fazer um filme.

Para vocês terem uma ideia de quanto sangue já foi usado, em oito filmes Tarantino já matou 378 pessoas. Dá uma média de 47,25 por filme. Em "Os oito odiados", 15 vão pra vala. Quinze vão descobrir se Deus existe. 

Bem, "Os oito odiados" tem tudo isso que a gente ama em Tarantino. E quatro anos depois de "Django Livre" (2012), o diretor americano resolveu mais uma vez falar sobre o racismo e a xenofobia na América. A carta de Abraham Lincoln, aliás, é tão atual para tantos lugares. 

Entre um "nigger" e outro. Entre uma fala contra os mexicanos e outro, Tarantino expõe todas as vísceras possíveis do discurso do preconceito. E o melhor é que o seu texto não faz concessões. O filme fala do jeito que o povo (preconceituoso e xenófobo) fala, com aquele ódio e a violência verbal que já vimos algumas vezes na vida real. Parece que é para chocar de propósito. Sob a cortina histórica do recente fim da guerra civil americana, período em que se passa o filme, o diretor quer mostrar que o comportamento não mudou muito em 200 anos. 

Tarantino não tem papas na língua. Usa o gênero mais americano de todos, o western, para tocar na ferida com ferro quente e girar o bastão com crueldade. Ele já tinha feito algo semelhante em "Django Livre". 

Em quase três horas de filme separado em cinco capítulos, quase um Lars von Trier pop, Tarantino expõe a beleza das paisagens geladas de Wyoming (o filme é lindo demais, assim como a trilha sonora de Ennio Morricone), e conta a história de oito caras que vão ter que se aturar na taverna de Minnie até uma nevasca passar. 

Ali tem dois caçadores de recompensa (Kurt Russell e Samuel L. Jackson, um habitué dos filmes do diretor e que está maravilhoso no papel do major Marquis Warren), um futuro xerife de Red Rock (Walton Goggins), um velho general sulista (Bruce Dern), um inglês (Tom Roth), um mexicano (Demián Bichir), um cowboy (Michael Masen), e uma prisioneira que John Ruth, personagem de Russell quer mandar para a forca em troca de dez mil dólares (Jennifer Jason Leigh, merecidamente indicada ao Oscar). 

Como numa peça de teatro filmada, eles discutem, entram em conflito e falam sobre o passado enquanto degustam o famoso guisado da Minnie. 

É um belo filme. É um filme maduro. Não o melhor do diretor americano, mas digno de sua filmografia. Por falar nisso, e como essa corneta está muito séria, vamos fazer o ranking Tarantino para tentar gerar uma polêmica. 

1. Bastardos Inglórios 
2. Pulp fiction
3. Cães de aluguel 
4. Os oito odiados
5. Django Livre
6. Kill Bill volumes 1 e 2 (pra mim é um filme só)
7. Jackie Brown

Os três primeiros dessa lista são o que fazem de Tarantino um cara genial. Os demais até Kill Bill mostram que ele é um cara foda. Jackie Brown é um erro que o torna humano. Tipo o que "Obladi Obladá" representa para os Beatles.

Enfim, sem ódio e só com amor no coração, a corneta dará para “Os oito odiados” uma nota 7,5

Indicações ao careca dourado: Atriz coadjuvante (Jennifer Jason Leigh), fotografia e trilha sonora original.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Jornalismo selvagem

Como reunião de pauta é chato
Como é duro o trabalho do jornalista, amigos. São horas e horas apurando uma história que, por vezes, se torna tão importante que vira a manchete do jornal. Você leva a porta na cara de muita gente, é tratado mal, xingado dos maiores impropérios, leva trabalho pra casa e, muitas vezes, a única coisa que tem para jantar na sua casa bagunçada são duas linguiças que você ferve no fogão. É muito sofrimento. Mas tem gente que gosta. 

Entre os indivíduos que gostam muito estão Walter “Robby” Robinson (Michael Keaton sendo Michael Keaton), Mike Rezendes (Mark Ruffalo), Matt Carol (Bryan Darcy James) e Sacha Pfeiffer (Rachel McAdams), que não tem nenhum parentesco nem com a Michelle, nem com a Silvia. Eles eram jornalistas até certo ponto privilegiados, pois faziam parte do Spotlight. 

Mas o que é esse tal de Spotlight que mais parece nome de música da Madonna?

Spotlight é um grupo de... Vingadores que trabalham no “Boston Globe”. Uma galera escolhida a dedo para fazer grandes reportagens que podiam durar até mais de um ano para serem apuradas. Tudo dependia de sua complexidade. E de Vingadores, vocês sabem, o Mark Ruffalo entende. Principalmente quando ele fica verde de raiva (Quase rola no filme! Deve ser por falta de uma alimentação balanceada com brócolis e carnes brancas). 

Mas, como eu dizia, esse grupo um dia ouviu do novo chefão, Marty Baron (Liev Schreiber), um haole judeu barbudinho vindo de Miami e que não gostava de beisebol (como pode??), a seguinte dica: "Siga o dinheiro". Ops, não. Esse é outro filme. Ele disse: "Siga aquele padre". 

E foi o que o supergrupo fez. Liderados pelo Birdman, Hulk aliou-se à policial Bezzerides, tentando uma nova vida após a famigerada segunda temporada de “True Detective”, e ao Valdir Bigode para tentar desvendar os segredos obscuros da Máfia Pedófila da Batina. 

Mas não era uma missão fácil. Além de inicialmente a reportagem parecer uma loucura do novo chefão, Boston era praticamente uma filial do Vaticano na América. A Igreja tinha tentáculos em todos os lugares. Das grandes instituições ao Starbucks onde você comprava um donut. Até o “Globe” ajudou a varrer para baixo do tapete a história dos padres pedófilos antes da entrada dos Vingadores em cena.

Mas com a Spotlight em campo não pode ter placar em branco. Mesmo com o Bin Laden atrasando as investigações por causa dos atentados às torres gêmeas do World Trade Center, eles seguiram em frente. Contra tudo e contra todos. Fazendo novos inimigos e perdendo amigos. A ordem do editor era clara. Não era para derrubar um cardeal ou 70 padres, mas abalar a boca do balão do sistema e bagunçar até o Vaticano. Ou seja, deixar a Ilze pirada. 

Dirigido por Tom McCarthy, "Spotlight – segredos revelados" conta a história da reportagem que deu ao “Boston Globe” um Pulitzer (a única premiação que importa no jornalismo) em 2003, e fez diferença em Boston com ecos no mundo todo. Inclusive Arapiraca e Mariana, no Brasil. Pelo menos é o que dizem nos créditos finais do filme.

Mais de 600 artigos foram publicados pelo “Globe”. E 249 padres foram acusados de pedofilia. Mas como o filme não é um conto de fadas, o cardeal Bernard Law não foi punido, mas mandado de volta para Roma para comandar a bela Igreja de Santa Maria Maggiore. 

Para os quatro repórteres a vida seguiu depois daquele período intenso. Rezendes continua trabalhando no “Globe” como articulista e repórter investigativo. Robby também permanece como editor do Globe. Sacha saiu do jornal e voltou em 2014, enquanto Carroll deixou o jornal em 2014 e foi trabalhar no laboratório de mídia do Massachusetts Institute of Technology.

O filme de McCarthy vai agradar aqueles que gostam do gênero “filme-de-investigação”, embora não tenha nada mirabolante no enredo. Eram apenas quatro indivíduos fazendo o seu trabalho e enfrentando as dificuldades normais da vida. Além dos fãs de trabalhos que falem sobre jornalismo no estilo “Todos os homens do presidente” (1976).

No fim tudo deu certo. Abalou Boston, ecoou no mundo e hoje o chefão Baron é chefão do “Washington Post”. Bem que no filme disseram que ele ia acabar indo embora da cidade, pois não era da comunidade. 


“Spotlight” tem atuações ok (destaquemos o Mark Rufallo), uma história bem contada e uma trilha sonora que ficou na minha cabeça. Vai ganhar o careca dourado? Cara, vocês já ganharam um Pulitzer. Querem um Oscar também? Não sei. Só vou comentar quando ver todos os filmes indicados. Por enquanto, o que “Spotlight” levará da corneta é uma nota 7,5.

domingo, 10 de janeiro de 2016

A vastidão do oceano

Ninguém conhecia o mar como Billy Duncan. O velho marinheiro tinha o oceano como a sua verdadeira casa. Afinal, passava meses viajando pela vastidão das águas até onde os mapas registravam e muitas vezes além. Toda vez que voltava de suas expedições, Billy tinha muitas histórias a contar. E ele descrevia as aventuras com riqueza de detalhes e provocava um fascínio generalizado. Eram histórias fantásticas. Difíceis de acreditar para os adultos. Mágicas para as crianças. 

Toda vez que Billy desembarcava no porto de Southampton era cercado por crianças.  Elas não se incomodavam com sua aparência asquerosa, a barba espessa e fedendo a uma mistura de sal e peixe podre. Nem reparavam na sua jaqueta azul meio rasgada pelo tempo de uso e as intempéries do mar. 

- Billy! Billy! Quantas baleias você matou? 

- Billy! Você conheceu selvagens? Eles existem mesmo? - gritavam as crianças que se aglomeravam no porto à espera de Billy. 

- Depois, garotos. Deixem-me primeiro tomar o meu conhaque na taverna do velho John, o manco - respondeu o marujo com a voz rascante que o tabaco lhe deu. 

Billy era o capitão do principal baleeiro da região. Por vezes, saia em jornadas longas pela vastidão do oceano a procura destes animais que podiam ser dóceis ou perigosos. Nunca se sabe como uma baleia pode se comportar. Mas elas poderiam ser bem mais agressivas quando sentiam o cheiro do baleeiro Fitzgerald III se aproximando. 

Na Inglaterra do início século XIX, era o óleo de baleia que impedia as cidades de mergulharem na escuridão quando a noite caia. Por isso, os homens desbravavam os mares em busca dos animais. Era uma questão de sobrevivência. E Billy era um dos melhores no seu ofício.

O mar não o desgastava. Era o sol no rosto que o deixava com um aspecto ainda mais envelhecido. Billy tinha 40 anos, mas parecia ter quase 60. Foi casado até os 35, mas a morte de Mary Duncan-Robinson de tuberculose com apenas 30 anos o deixou viúvo muito cedo. Nunca mais teve outra mulher. Casou-se com o mar. 

Logo que entrou na taverna, Billy foi saudado por John, o manco. 

- Ora, vejam se não é o bom e velho Billy Duncan. Eu sabia que você vinha desde que os navios desembarcaram no porto quando senti o fedor de peixe que o cerca. Como vai, Billy? - recebeu-o John, que andava com dificuldades em direção ao capitão do Fitzgerald III. 

- Pior do que ontem. Melhor do que amanhã - respondeu o marinheiro, já sentando em sua tradicional mesa ao fundo do estabelecimento. 

John já se dirigia em direção a Billy pronto para ouvir as suas histórias com a garrafa de conhaque. O dono da taverna mancava, pois fora esfaqueado numa briga há dez anos. O corte atingiu um nervo, enfim algo vital, e John nunca mais andou direito. Billy foi quem salvou a vida do dono da taverna e os dois ficaram amigos desde então. 

- Aparentemente nada mudou desde a minha última vinda nesta espelunca, John. 

- Você está enganado, Billy. Temos um forasteiro na área. Um alemão. Desembarcou há dois dias no trem de 15h23m na estação. 

- E o que um porco teutônico quer aqui em Southampton? - questionou o marinheiro, que não gostava de alemães. 

John, o manco, ajeitou o corpo na cadeira, abriu um sorriso debochado e disse: 

- Falar com você. 

Billy ficou surpreso. Não tinha nada a conversar com aquele alemão. Ou qualquer alemão. Nunca haviam entendido o motivo pelo qual ele não gostava de alemães, mas era no mínimo ousado um deles atravessar a Europa, singrar o Canal da Mancha e tomar um trem de Londres a Southampton só para falar com ele. Resolveu ouvir o que a figura germânica tinha a dizer. 

- Ele está aqui? 

- Sim, é aquele filhote de leite de cabra sentado ali no canto lendo o “Times de Southampton”. 

- Chame-o aqui. Se ele quer falar comigo, que venha até mim. Não moverei um músculo para me dirigir a um alemão. 

John virou-se para o alemão e gritou chamando-o. Disse para ele se sentar na cadeira em que estava, pois voltaria ao trabalho. 

O alemão obedeceu. Sentou-se e olhou para Billy. O marinheiro o encarava sem nada dizer. Foram poucos segundos assim, mas pareceu uma eternidade para o jovem. Ele se comportava como se estivesse diante de uma figura mitológica. 

- Qual é o seu nome, garoto?

- Walter, senhor. 

- Só Walter? Você não tem família? 

- Walter Benjamin, senhor. 

- Regra número 1 para você continuar conversando comigo. Eu não sou um "senhor". Senhor está no céu, um lugar para onde eu não vou, pois sou um assassino.

A palavra assassino deixou o jovem Walter mais branco que o topo das montanhas de Munique. Walter tremia. 

- Eu mato baleias. Mas você deve saber disso se veio me procurar. Bom, regra número 2: eu só aceito falar com gente como você com muito álcool na mesa. Logo, pague-me mais uma garrafa de conhaque. 

- Sim, senhor. Quer dizer, sim, é claro - respondeu o alemão, atendendo ao pedido. 

- O que você quer de mim? Se veio de tão longe, não foi para olhar para mim com essa cara de quem viu um fantasma. 

- De fato eu vim em busca de uma inspiração. Conversava com camponeses do interior. Mas quando me aproximei de Southampton conheci a sua história e queria ouvir mais do próprio. 

- Eu não tenho histórias, garoto. Eu só trabalho - interrompeu Billy. 

- Mas suas aventuras ecoam por toda a cidade. Seria incrível conhecer algumas delas. 

- E para que você quer saber o que eu faço no mar? 

- Eu busco inspiração para um romance que estou querendo escrever. 

Billy riu. Gargalhou debochadamente para ser mais preciso. Escritores ou pseudo-escritores não eram bem vistos por ele. Billy costumava dizer que não confia em homens que têm a mão macia. Era um sinal para ele de homens fracos, que não trabalham. Homens afeminados que não mereciam nada além do desprezo ou uma boa surra. 

Walter obviamente tinha mãos macias. Nunca fizera trabalhos forçados. Mas estava determinado a escutar a narrativa de Billy. Sabia que tinha ouro diante dele. Ouro para um romance épico que se passasse no mar. Precisava apenas dobrar o capitão. 

Mas Billy estava reticente. Nunca gostou de alemães. Imagina alemães de mãos macias. Estava quase encerrando a conversa quando Walter lhe ofereceu um pagamento em troca. Três xelins por hora de conversa. E mais a bebida. A melhor da taverna de John. 

Billy não quis conversa. Levantou-se da mesa, pediu desculpas a Walter, mas não contaria nada ao alemão afeminado. 

- Minha história eu já compartilho com o mar. 

Não era verdade. As crianças sabiam disso. Assim com John, o manco. Depois que Billy deixou a taverna, Walter foi conversar com John. Tentar uma ajuda pelo amigo de Billy. Precisava ouvir a história do homem que caçava baleias. 

John tentou fazer com que Walter desistisse de sua empreitada e voltasse para a Alemanha. Billy não falaria. Havia se tornado ainda mais introspectivo desde a morte da esposa. Ele só se abria com as crianças. E Walter não aparentava nem um pouco ser uma delas. 

Walter, então, retornou para a hospedaria onde estava há três dias. Antes de deitar-se acendeu o lampião. Ficou ali, diante da mesa contemplando as suas anotações. Olhou para a chama que queimava graças ao óleo de baleia que Billy trazia sempre que desbravava o mar. 

Nada daria certo. Nada faria sentido nessa história sem o depoimento dele, pensou. E foi dormir com essas palavras ecoando na sua cabeça. 

No dia seguinte, o tempo estava nublado em Southampton. Como de costume, Billy foi até a taverna beber. Eram assim os seus dias entre uma estadia e outra no mar. 

Desta vez, porém, deu atenção as crianças antes de entrar na taverna. De longe, Walter observava um Billy tão simpático com as crianças. Nem parecia o marujo carrancudo e intimidador que conversara com ele. 

O capitão não reparou que estava sendo observado. Estava perdido no seu mundo paralelo, na sua vida que acontece sem muitas emoções longe do barco. 

Depois de dar algumas moedas a um pobre mendigo que estava jogado na rua, Billy entrou na taverna. Cumprimentou John e sentou na mesma mesa que senta há 18 anos. Comeu um pão, pediu o ensopado da casa e degustou mais um copo de conhaque. 

Trinta minutos se passaram até que Walter tomasse coragem de abrir a porta e entrar no local novamente. Ao avistar o jovem alemão desprezível, Billy bufou de enfado. Walter pediu uma garrafa de conhaque e seguiu firme em direção ao marinheiro. Podia ter mãos macias, mas estava disposto a exibir a coragem de alguém da tripulação do Fitzgerald III.

- Eu podia estar bêbado, mas se a minha memória não falha, eu lhe avisei ontem que não conversaria com você – afirmou Billy, ainda irredutível. 

- Eu não me dou por vencido facilmente - retrucou Walter, com firmeza. 

- Há uma linha tênue entre a sabedoria que te impulsiona e a teimosia que te mata - retrucou Billy, colocando a sua faca em cima da mesa. 

Walter não se permitiu ter medo. Sua alma tremia, mas o corpo precisava se manter como uma rocha se ele quisesse sugar aquela experiência. Precisava ouvir para criar. E ninguém naquela cidade fria colada no mar tinha melhores histórias que Billy. 

John só olhava de longe a ousadia do jovem alemão. Era realmente um abusado, pensou. Mas admirava a sua insistência. Muitos teriam saído daquela taverna para nunca mais voltarem. Walter não apenas voltou como encarou Billy mais uma vez. 

- Eu não quero que você divida suas histórias comigo de graça. Estou disposto a pagar o preço que for. 

- Poupe o seu dinheiro, garoto. Eu não o quero. Em três semanas eu volto para o mar. Não preciso perder meus dias aqui com você. 

- Mas eu só preciso de algumas horas. E eu pagarei por isso. 

- Eu não quero dinheiro. Não quero conversar com você. Só quero ficar sozinho.

- Esse isolamento tem a ver com a sua mulher?

A lembrança de Mary era uma aposta arriscada do jovem alemão. Billy poderia ter um acesso de raiva e expulsá-lo a pontapés pelas ruas enlameadas de Southampton. Mas Billy não esboçou nenhuma reação intempestiva. Acendeu um cigarro, fitou seus olhos azuis fixamente no rosto de Walter e com a voz rascante de sempre o mandou embora. 

- Volte para a Alemanha. Volte para o lugar de onde você jamais deveria ter saído. 

Sentindo-se definitivamente derrotado, Walter levantou-se do banco. Vestiu o casaco e a taverna ouviu pela última vez as suas pesadas botas. 

Três semanas se passaram desde a conversa entre os dois. Walter não foi embora. Conversou com camponeses, ouviu donos de estabelecimentos, casais importantes da cidade. Queria uma história. Ou várias histórias para contar. Esteve tão envolto naquela cidade que se esquecia de coisas simples como fazer a barba. 

Quando voltou ao porto para conversar com alguns pescadores, Walter avistou Billy preparando-se para voltar ao mar. O capitão coordenava todos os subordinados. Não podia deixar faltar nada. Dos suprimentos da tripulação aos arpões que ajudariam o Fitzgerald III a trazer o óleo de baleia fundamental para a cidade. 

Walter pensou que não seria uma boa ideia novamente puxar assunto com Billy. Ainda que aquela fosse a sua última chance. Nunca mais se veriam a partir do momento que o Fitzgerald III singrasse o mar. 

Paralisado pelos pensamentos, nem reparou a chegada de Billy para falar com ele. 

- Ainda não foi embora, forasteiro? - perguntou o capitão.

- Estava pensando se você me daria uma última chance de conversarmos - retrucou Walter. 

- Não sabia que alemães tinham tanta fé. É culpa de Lutero?

- Não temos fé. Apenas somos persistentes. 

- Vá para casa, garoto. Tenho certeza que você colheu boas histórias da nossa comunidade nestas semanas. Vá para casa e escreva o seu livro. 

Walter pareceu desanimado com mais uma negativa de Billy, mesmo no momento da relação dos dois em que ele mais se mostrou aberto. Foi quando subitamente uma ideia louca passou pela sua cabeça.

- E se eu fosse com você? E se eu embarcasse com você?

- Um homem que sequer sabe amarrar direito as botas não tem condições de entra no meu navio - disse Billy, dando gargalhadas. 

- Tenho certeza que eu posso ser útil em alguma função do seu barco. Além disso, você perdeu dois tripulantes de última hora que ficaram doentes. Não precisa me dar uma função importante. Mas tenho absoluta certeza que posso ser útil. 

Walter tinha razão. E Billy sabia disso. A maldita tuberculose havia afetado dois dos seus homens, que não poderiam viajar. O jovem alemão poderia limpar o convés, ajudar na comida, além de outras tarefas que não exigissem tanta força ou uma precisão nos nós das cordas. Na pior das hipóteses, poderia virar isca de baleia, pensou maldosamente. 

- Se você não deseja contar a sua história, deixe-me vivê-la para entendê-la - suplicou Walter. 

- Você é abusado, garoto. Sabe que ficaremos até seis meses no mar? Enfrentaremos tempestades, calor, sem falar nas baleias que iremos caçar. Tem certeza que você quer isso mesmo?

Walter parou alguns segundos que foram uma eternidade. Pensou no que deixaria para trás, na aventura que viveria sem a certeza de que voltaria vivo, mas no fim estava determinado. O sim saiu com a firmeza de um homem apaixonado diante do casamento. 

Billy se aproximou dele. Lançou seu olhar ameaçador. Sua barba fedia a peixe, mas Walter não hesitou. Nem reclamou. O capitão pegou um saco de batatas e jogou nos braços de Walter. Aquilo devia pesar uns 30 quilos, mas o jovem alemão aguentou. Ou fingiu muito bem que aguentou. 

- Ei, George! Temos um novo marujo. Coloque-o na cozinha. Dizem que alemães sabem fazer batatas - gritou Billy Duncan. 

- Pode deixar, capitão. 

Assim, Walter embarcou no Fitzgerald III. Quando as âncoras do navio foram levantadas, ele não tinha mais como voltar atrás. Estava preso por pelo menos quatro meses naquele navio e com aquela tripulação. 

Torceu para que tivesse tomado a decisão correta. E pensava sobre isso enquanto observava o seu primeiro pôr do sol do convés do navio. 

- Tenho que admitir que você teve colhões ao entrar neste navio, garoto - surpreendeu-o Billy Duncan. 

- Eu também não acreditei no que eu fiz. Mas era preciso fazê-lo - respondeu o jovem alemão. 

- É bonito, não é? O sol se pondo no mar? - perguntou o capitão tomando uns goles da garrafa de conhaque que levará ao convés. 

- Nunca vi nada tão belo na minha vida – respondeu o alemão, verdadeiramente admirado. 

O vento estava bom e o barco navegava em boa velocidade mar adentro. Aquele seria um dia calmo da viagem do Fitzgerald III. 

- Imagino quantas outras coisas belas verei nesta viagem. E horríveis também, é claro. 

- Lá - disse Billy, apontando para a costa que não era mais possível ver. - Você vivia em uma redoma de segurança. Aqui, garoto, você verá a vida. 

Com estas palavras o capitão se despediu. Entregou a garrafa de conhaque para Walter, deu dois tapas em suas costas e voltou para os seus aposentos. Já era noite. Walter tomou um gole da bebida e olhou para a imensidão do mar com o seu silêncio sendo interrompido apenas pela passagem do navio. 

Ficaria assim por uns bons minutos antes de se recolher para dormir. Sua aventura estava apenas começando.