sábado, 30 de julho de 2016

Diário de guerra do Rio-2016 - 7º dia

Morango com creme de Londres/Reprodução
Diário de guerra da Olimpíada do Hell de Janeiro: 

7° dia

Cobrir Olimpíada é um inferno. Mas também é sensacional. É isso mesmo. Não tem meio termo. Tem hora que você quer desistir de tudo e ir para uma ilha com uma praia vazia para relaxar porque não aguenta mais tantas horas de trabalho. Mas quando você consegue aquela matéria que tanto quis fazer ou ver de perto aquele cara que sempre idolatrou (tá ouvindo, Roger Federer?), você até esquece os momentos em que passou elaborando a lista negra de quem gostaria de enviar para a missão de comprovar se Deus existe.

O conceito de histórico passa a ser relativo quando você está in loco. Pela TV, o que é histórico é tudo que para o mundo é histórico também. Os recordes do Bolt, as medalhas do Phelps...

Quando você está no olho do furacão, as lembranças históricas passam a ser as particulares. Ninguém lembra, só eu, do furacão Katie Taylor, que arrebatou a arena de boxe com uma torcida irlandesa incendiária e que conseguiu calar até os britânicos donos da casa. Nem do clima de Maracanã que foi o Velódromo de Londres, com direito a refrão de "Hey Jude" cantado em uníssono pela multidão. Muito menos da felicidade de Yane Marques por ter conquistado o bronze no pentatlo moderno. E o que dizer das quase 4h30min de jogo entre Federer e Juan Martin del Potro que fez os jornalistas suíços perderem a fleuma de tanto nervosismo em Wimbledon, na partida de tênis mais longa da história dos Jogos? E os gols de Peralta? Que momento!

O ouro do Bolt nos 100m? A decepção da medalha de bronze de Isinbayeva? Vi pela TV do quarto do hotel enquanto batia matérias sobre algo que não lembro mais e dava dentadas em sanduíches do Burger King comprados na estação de metrô mais próxima.

Sequer pisei no estádio Olímpico. Não tenho lembranças de lá. A ponto de desconhecer até 2014 a existência de Renaud Lavillenie, francês campeão de uma das minhas provas favoritas do atletismo, o salto com vara. No Parque Aquático, só fui uma vez.

Há ônus e bônus por estar in loco. Você trabalha feito um burro de carga. Mas tem a chance de experimentar o morango com creme de Wimbledon. E não vê nenhum jogo com narração do Galvão. O que é sempre uma vantagem.

Faltam 22 dias para o fim #cornetaonfire

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Diário de guerra do Rio-2016 - 6º dia

Kobe em Londres/Marcelo Alves
Diário de guerra da Olimpíada do Hell de Janeiro

6º dia

Hoje começou a trégua olímpica. É aquele momento em que, a pedido do COI, a ONU vira para o mundo e diz: "Crianças, não briguem. Cadê o espírito do Barão de Coubertin?". Você sentiu o mundo menos tenso hoje? Menos violência? Você pode achar que é por causa da trégua olímpica.

A trégua surgiu no século VIII A.C., na Grécia antiga. Era chamada Ekecheiria, ou dar as mãos. Naquela época, todo mundo largava as armas, tirava a roupa e ia competir nas Olimpíadas em paz. Sim, é isso mesmo. A Olimpíada já foi um grande evento naturista. Sim, e já existia a hoje chamada luta greco-romana. Aliás, eles não apenas lutavam pelados, mas com o corpo envolto por azeite e areia. Não devia ser nada agradável.

Enfim, é fato que a trégua, o sonho de paz ao menos por dois meses a cada quatro anos, sempre foi um mito olímpico. Não apenas porque os Jogos já tiveram dois atentados dos anos 70 para cá, como é impossível mapear o planeta inteiro para saber se todos estão cumprindo as ordens da ONU. Ou você imaginava agentes secretos interrompendo uma briga de bar na Suazilândia em nome da trégua olímpica? Mas o sonho é como "Imagine", de John Lennon: uma bela utopia.

Há duas semanas eu estive em um encontro com uma jornalista magnífica, de uma sabedoria ímpar e várias Olimpíadas nas costas. Em dado momento, alguém perguntou qual era a maior preocupação dela nos Jogos. A resposta: "Transporte. Não vai dar certo".

Placa indicando os caminhos/Marcelo Alves
Ao baixar o aplicativo dos ônibus, percebi que será realmente desafiador se locomover. Mas inicialmente achei que fosse tudo fruto do meu mal humor natural com a cidade. Perguntei então a opinião de um colega isento, mais jovem e menos intolerante, cujo nome omitirei porque a Corneta não revela suas fontes. Resposta: "Cara, ele é confuso mesmo. Não mapeia igual ao Google".

Para completar ainda tem a sopa de letrinhas, que levará um tempo para a gente se acostumar. Mas ainda não dá para dizer que não dará certo. No fim, pode ir tudo bem. Só sei que se a parte do transporte estivesse em "Divertida Mente" não seria exatamente banhada pela Alegria.

Hoje arrumei duas horas de vida no videogame olímpico (provavelmente as últimas até o fim de agosto) para ver "Jason Bourne". Parte do filme se passa numa Grécia sem nenhuma trégua olímpica. É simplesmente maravilhoso. Paul Grengrass fez tudo tão perfeito que devia organizar a Olimpíada.

Quartos inabitáveis, bate-boca com Eduardo Paes, jornalista quase assaltada por travestis e agora incêndio no prédio. Tudo acontece com a Austrália nestes Jogos. Alguém poderia indicar um pai de santo aos aussies?

As fotos deste post são de dois momentos. Um deles, uma lembrança do Facebook mostrando que há quatro anos eu estava tentando ouvir o Kobe Bryant após a estreia dos Estados Unidos no basquete masculino em Londres. Há quem ache que Olimpíada é fácil. Nada. Ela muitas vezes é a arte de construir matérias enormes com duas frases de um cara fodão (nessa coletiva aí ele só respondeu quatro perguntas).

A segunda mostra o metrô do Rio já decorado com orientações fundamentais para turistas e locais. Tratemos de decorar e rezar. Locomover-se é preciso.

Faltam 23 dias para o fim #cornetaonfire

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Diário de guerra do Rio-2016 - 4º dia

Isinbayeva chora/Reprodução
Quarto dia de Olimpíada no Hell de Janeiro:
Ontem foi dia de luto. A ausência de Roger Federer foi um baque inapelável faltando tão pouco tempo para os Jogos. Aliás, são tantos astros abandonando a Rio-2016 por diferentes motivos que já é possível criar o tumblr: Olimpiada ou Intercolegial?
Hoje eu vi na Vargas President Avenue um dos ônibus que vão servir à família olímpica. Aquela gente que tem credencial com foto feia e sem sorrir, mas tem acesso a tudo. Parece VIP hein. Nível frescão da 1001, que é sempre a minha referência de qualidade dentro dos padrões nacionais. Não me perguntem se ele respeitará os horários. Só o tempo dirá. Mas eu espero que sim.
O grande problema do busão é que eu já imagino franceses marrentos ou cariocas que se acham os donos do mundo deitando a cadeira ao máximo e esmagando o coleguinha de trás. Vai rolar incidente diplomático.
Mas é claro que eu preferia ir para os equipamentos olímpicos de metrô. Pena que o metrô não chega lá. Sdds Londres. O Face, aliás, me lembrou hoje que há exatos quatro anos eu estava em Wimbledon levando um toco histórico de Caroline Wozniacki. Como os deuses castigam quando a Corneta é maltratada, a dinamarquesa nunca mais fez nada de relevante no tênis depois daquele dia.
Algo está muito errado no mundo quando ele faz Yelena Isinbayeva chorar. Gente, ela nunca foi pega no exame antidoping! Precisamos dela nos Jogos. Atire a primeira pedra quem nunca se dopou. Nem que seja tomando Novalgina (que tem substancia dopante). O maior defeito dela é ser governista, mas todos vocês já foram um dia!
Por isso esse diário de guerra termina com o lançamento de uma campanha: #FreeIsinbayeva#deixaelatrabalhar#vemquerida
Faltam 25 dias para o fim #cornetaonfire

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Diário de guerra do Rio-2016 - 2º dia

Segundo dia de Olimpíada no Hell de Janeiro e sou informado por fonte fidedigna que tem CAMISINHA de graça (isso mesmo, total free) no banheiro da imprensa.
"Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Célebre com camisinha!", diz a, digamos, mensagem de incentivo.
E é tudo feito com látex da Amazônia (ali, onde ficam os seringueiros tirando leite do... Enfim, vocês sabem).
O que vai ter de gente atrasando matéria... Só queria avisar aos europeus que o fuso não é favorável. Fica a dica.
Definitivamente, essa Olimpíada é uma grande sacanagem.
Faltam 27 dias para o fim. #cornetaonfire

domingo, 24 de julho de 2016

Diário de guerra do Rio-2016 - 1º dia

Yelena Isinbayeva fará falta nos Jogos/Reprodução
Primeiro dia de Olimpíada no Hell de Janeiro (pra mim já começou) e já descobrimos que:
1- Não dá (fechem os olhos, tapem os ouvidos, pulem para o item 2 se forem sensíveis)... Mas como eu ia dizendo, não dá para cagar na Vila Olímpica. 

2- Eduardo Paes, meu caro, fanfarronice também tem limite. Pokemon GO, ok. Canguru para australiano ficar feliz no apartamento com fiação exposta, vazamento de gás e banheiro entupido, não. 
3- O COI pipocou e jogou a responsabilidade pros outros. Por que eu não me surpreendo?
3- A Rússia vem capenga, cheia de desfalques e ainda assim vai ficar na frente de muito país com todos os seus titulares. 
4- Sharapova não vem. Isinbayeva não vem. Não há mais razão para viver. Cancela tudo. 
5- E no meio disso tudo, ainda tivemos o Dagoberto repetindo o Fred. Reclamou do Campeonato Brasileiro e disse que a CBF é uma vergonha.

E está só começando. Faltam 28 dias para o fim. #cornetaonfire

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Sonho de valsa

Martinha, Gigi e Carol eram amigas inseparáveis. Tão amigas que as duas últimas já estavam acostumadas com as esquisitices de Martinha e nem ficavam mais chocadas.
Gigi costumava dizer que Martinha era aquariana. Logo, gostava de causar, de ser diferentona e sempre ficar fora da casinha do senso comum. Fora isso, Martinha era uma pessoa afável e parceira para todas as horas. Por isso, elas eram muito unidas há 15 anos, desde que se conheceram no primeiro período da faculdade de economia.
Mas naquela tarde, Martinha passou um pouco do limite. Tudo começou num piquenique que as amigas organizaram no Parque Lage. Uma mera desculpa para jogarem conversa fora, falarem trivialidades e saírem um pouco da rotina dos swaps reversos e CDBs do dia a dia pesado nas instituições em que trabalhavam.
- Fiz um brownie que, modéstia à parte, está excelente. Aproveitando que essa é uma ocasião especial, usei chocolate Lindt e ficou um espetáculo - propagandeou Carol, a mais talentosa das três quando o assunto era cozinhar. 
- E quem garante que ele ficou excelente mesmo? Há uma opinião isenta para comprovar? - provocou Martinha, apenas sendo Martinha. 
- O Júlio provou - devolveu Carol. 
- Namorado não conta. Homem apaixonado é mais burro que um protozoário - devolveu Gigi.

Mas Gigi e Martinha tiveram que dar o braço a torcer. O brownie realmente era de outro mundo.
Além da economia, o chocolate era um ponto de interseção daquele trio inseparável. Tanto que o grupo de WhatsApp delas era chamado de "Rainhas do Cacau".
- Não tem nada no mundo melhor que chocolate. Maior invenção do homem - disse Gigi. 
- Ao lado do avião, que te proporciona ir para outros lugares do mundo...
- ... Para comer chocolate! - disse Carol, completando a frase de Martinha, já dando gargalhadas.

Carol, então, resolveu manter o assunto na crista da onda perguntando às amigas qual era o chocolate favorito delas. Disse que ela gostava da barra Lindt de caramelo. "Derrete na boca e é quase um orgasmo", comparou.
Mais exótica do trio, Gigi citou um chocolate com açafrão que ela disse ter experimentado numa viagem ao Irã pelo Banco Mundial. Ela garantiu ser o paraíso na terra. "Era maravilhoso. Nunca senti nada tão diferente na boca", dizia.
- Eu gosto de Sonho de Valsa - afirmou Martinha, seca e cortante como uma navalha.
O silêncio tomou conta das duas amigas.
- Que foi, gente? Eu adoro Sonho de Valsa. É delicioso!
- Você não pode estar falando sério, Marta Regina! - retrucou Gigi. 
- Ela só quer ser polêmica no piquenique - disse Carol. 
- Estou falando sério. Eu amo Sonho de Valsa. Tem coisa mais gostosa do que sentir aquele chocolate, ouvir o estalo daquele wafer e mergulhar profundamente naquele creme de castanha de caju? Sonho de Valsa é tudo. Sonho de Valsa é mara.

As amigas não conseguiam acreditar. Não é possível que alguém pudesse gostar daquela classe de bombons redondos a R$ 1 da Loja Americana formada pelos famigerados Sonho de Valsa, Serenata de Amor e Ouro Branco.
- Na minha caixa de bombom, o Sonho de Valsa é sempre o último a ser comido. E fica sempre com o azarado que chegou atrasado - disse Carol. 
- Certa vez, num Natal da família, Tio Rubens comprou uma caixa de bombom "porque Jesus Cristo também gostava de adoçar a vida". Éramos 15 reunidos na casa dele. Cada um pegou um bombom da caixa. Quando Marcos, o namorado de Tio Rubens, percebeu que sobrou o Sonho de Valsa para ele, fez uma cara de decepção, virou e disse: "Estou de dieta" - contou Gigi. 
- Seria a minha primeira opção - garantiu Martinha.

Era inconcebível para Gigi e Carol que o Sonho de Valsa fosse o chocolate preferido de alguém. Tinham mentes brilhantes. Explicavam a teoria da relatividade como quem faz um pão na chapa. Mas elas não entendiam a equação Sonho de Valsa + Martinha = amor.
- Vocês não sabem o prazer que é comer um Sonho de Valsa aos poucos. Dando mordidinhas no chocolates até surgir divinamente aquela massa bege de creme de castanha de caju pronta para receber você. A melhor forma de comer Sonho de Valsa é dissecando-o - garantiu Martinha. 
- Para, Marta! Sai desse corpo que não te pertence! Nos últimos anos houve uma abertura dos portos do cacau, nos trazendo o melhor do mundo. Não precisamos mais destes trágicos espécimes nativos. Agora temos até Kit Kat sendo vendido no sinal de trânsito! - irritou-se, Carol. 
- Nem ligo. Mas se fosse Sonho de Valsa eu levava a caixa. 
- Hahahaha, gente. Eu sabia que a Marta gostava de uma polêmica. Mas essa história supera todas. Até aquele sonho que ela teve com um travesti - disse Gigi. 
- Quando eu casar, quero que a minha noite de núpcias seja numa cama de Sonhos de Valsa. 
- Iiiirc!! - indignou-se Carol. 
- Aliás, quem precisa de marido quando se tem Sonho de Valsa? Eu casaria com um.

No fim das contas, Martinha era sempre garantia de que o papo renderia. A tarde acabou sendo divertida pela polêmica do Sonho de Valsa, que entraria para a história das amigas como "a última da Martinha". Ela ainda ganhou o apelido interno de Creminho de Caju.
Quando foi embora, Martinha ainda tentou comprar um Sonho de Valsa na padaria. "Bateu desejo depois desse papo", disse ela. Mas sua procura foi frustrada. Só tinha Diamante Negro e Chokito.
Quando chegou em casa, Carol encontrou Júlio estatelado no sofá vendo "House of Cards" no Netflix e comendo uma caixa de bombom. Júlio perguntou se ela queria começar com ele a quarta temporada, mas Carol declinou. "Vou tomar um banho. Estou cansada".
- Ainda tem bombom aí? - ela perguntou. 
- Sim, sobrou um. Pode pegar. Quero mais não.

Carol pegou a caixa, abriu e deparou-se com um... Sonho de Valsa. Olhou para ele demoradamente, foi até o quarto e fechou a porta. Mais uma vez fitou aquele bombonzinho redondo em uma embalagem rosa e preta. Abriu e comeu. Comeu discretamente, quase sem fazer barulho, em um esforço louvável para não ser notada pelo universo.
Amava Sonho de Valsa. Mas não admitia isso nem para as amigas.

domingo, 10 de julho de 2016

Um Almodóvar mediano

Julieta revê o passado
O que Woody Allen e Pedro Almodóvar têm em comum? Toda vez que um filme novo de ambos estreia, alguém vem e fala: um filme mediano dos dois é melhor do que muita coisa que anda sendo produzida por aí. Esta é uma avaliação PREGUIÇOSA e reveladora de uma lógica de "dois pesos e duas medidas" absolutamente paternalista. A Corneta jamais age assim. A lógica da Corneta é: cada obra, uma sentença. 

Afinal, tanto Almodóvar quanto Allen são humanos. Fizeram filmes excelentes e bombas. Bombas terríveis. O diretor americano, por exemplo, não nos apresenta um filme daqueles para aplaudir desde "Meia-noite em Paris" (2011). Ok, eu gosto de "Para Roma com amor" (2012), mas reconheço que é uma película controversa. Esperamos que "Café Society" seja melhor que "Blue Jasmine" (2013), o esquecível "Magia ao luar" (2014) e "O homem irracional" (2015), que nem é de todo ruim. 

Almodóvar, por sua vez, tem uma trajetória recente semelhante. "A pele que habito" é brilhante na mesma proporção que "Os amantes passageiros" (2013) é decepcionante. "Julieta", seu novo trabalho, se encontra no meio do caminho entre estes filmes do diretor de 66 anos. Para ficar na comparação, "Julieta" é "O homem irracional" de Almodóvar. 

O filme mantém as características conhecidas de Almodóvar. O uso de cores vibrantes, principalmente o vermelho, uma trama folhetinesca, aquela trilha sonora pontuando como se fosse novela das 21h e o bom trabalho de atrizes. Almodóvar é um excelente diretor de atrizes. Parece sempre tirar o melhor delas. Não é diferente com Adriana Ugarte e Emma Suárez, que vivem a personagem principal na juventude e na maturidade, respectivamente. 

Mas o resultado de "Julieta" ficou aquém dos melhores roteiros do diretor espanhol. Isso porque o filme me passou a impressão de que não era levado para lugar nenhum. De que faltou algo, um pedaço. Tem certeza que acaba aí? A sensação que eu tenho é que Almodóvar parou a edição do filme para desanuviar um pouco a cabeça jogando "Pokémon Go" e esqueceu de completar o filme. Quando percebeu, já tinha salvo o arquivo e enviado por e-mail para todo mundo. 

Tudo começou há um tempo atrás na ilha.... Não pera. Tudo começa quando Julieta está se preparando para viajar com o namorado Lorenzo (Dário Grandinetti) para uma temporada em Portugal onde eles iriam desfrutar da combinação bacalhau, vinho, sexo e literatura. Não necessariamente nesta ordem. Mas um encontro com Beatriz (Michelle Jenner), personagem que com o passar da trama vamos entender quem é, a deixa abalada emocionalmente. Beatriz havia encontrado sua filha, Antía, no lago Como na aprazível Itália.

Aquele encontro trouxe um fiapo de esperança para Julieta, que não vê a filha desde que ela desapareceu quando fez 18 anos e se emancipou. Doze anos se passaram numa agonia ininterrupta e é essa busca angustiante por respostas que passamos a acompanhar quando Julieta desiste da viagem e resolve permanecer em Madri. 

Ao longo do filme, Almodóvar vai nos dando pistas sobre o paradeiro de Antía enquanto conta a história do passado de Julieta e da própria filha. As origens, os erros que elas cometeram, as escolhas. Enfim, Julieta é humana, demasiado humana como qualquer um que você conhece. 

Por vezes, o diretor tira o foco. Apresenta uma mulher misteriosa, Marian (Rossy de Palma), que parece não se dar bem com Julieta e nos leva a questionar o que teria acontecido com Antía e se ela teria alguma participação. Será que houve uma briga séria? Ela enlouqueceu? Entrou para uma seita religiosa? Está tramando uma vingança contra a mãe por culpa-lá pela morte do amado pai, Xoan (Daniel Grao)? Fugiu para participar de um Big Brother?

O diretor te prende na cadeira, te faz acompanhar tudo roendo as unhas em busca de uma resposta que aparentemente será tão impactante quanto "A pele que habito", pois ele vai te ESTIMULANDO a imaginar uma série de possibilidades. 

Mas quando a busca chega ao fim, o sentimento que fica é de vazio e frustração. O famoso fuén. O desfecho tem o sabor de uma comida de bandejão e o que fica é a pergunta: Mas era só isso? Sofremos por nada. Ou por quase nada. 

Há méritos em "Julieta". O filme é muito bonito. Almodóvar faz filmes bonitos da escolha das locações, passando pelos cenários e chegando aos atores. Ele tem muita estima pela beleza. A valoriza como um filósofo grego da Atenas de tempos imemoriais. O roteiro até certo ponto vai sendo bem construído e os atores estão bem. Mas é frustrante Almodóvar criar tanto clima de suspense e nos dar um banho de água fria. Como eu disse, pareceu um filme inacabado. Pareceu que faltou um pedaço. Só pode ser culpa do Pokémon. 


Talvez o seu objetivo fosse apenas esse. Fazer um ensaio sobre culpa, escolhas, uma relação complicada entre mãe e filha. As idas e vindas, os deja vu da existência. Para a Corneta, porém, o resultado não foi plenamente satisfatório. Almodóvar, você pode fazer mais do que esse filme mediano. Por isso, "Julieta" ganhará uma nota 6,5

sábado, 9 de julho de 2016

O 'Boyhood' chinês

Tao e Liangzi, o amor que não aconteceu
"As montanhas se separam" é um título que aparentemente não diz nada, mas ao final do filme dirigido por Jia Zhangke é possível perceber o tamanho da poesia que se encontra nele. "As montanhas se separam" é uma metáfora para a vida e as escolhas que fazemos. Cada um de nós somo como montanhas fincadas em nossa história e na existência que conduzimos, ao mesmo tempo em que nos aproximamos e nos afastamos das pessoas a partir das decisões que tomamos e com o peso e as consequências geradas por elas. 

O filme começa com um triângulo amoroso formado por Tao Zhao (Shen Tao), Zhang Jinsheng (Yi Zhang) e Liangzi (Jing Dong Liang). Jinsheng é um rico dono de postos de gasolina, Liangzi é um pobre trabalhador das sofridas e em crise minas de carvão chinesa. Ambos são apaixonados por Tao, uma jovem sonhadora que trabalha numa loja de aparelhos de som. 

Estamos na virada para o ano 2000 em Fenyang. Os jovens ainda estão tentando se encontrar na vida e em suas carreiras em meio às festividades e a alegria de uma festinha com Pet Shop Boys. 

A princípio, parece que Jia Zhangke está fazendo uma história de amor tradicionalíssima. Ledo engano. O filme acaba transcorrendo como uma espécie de "Boyhood" (2014) chinês, sendo que é ainda melhor que o filme do diretor Richard Linklater. 

O estopim para tudo, para que as montanhas comecem a se separar está na briga de Liangzi e Jinsheng pelo coração de Tao. A escolha de Tao pelo amor de Jinsheng dá prosseguimento ao rompimento e as jornadas separadas que os três passarão a ter a partir daí. 

O filme se desenrola com uma beleza reflexiva ímpar em meio a paisagens áridas, difíceis e até feias de uma China poluída e industrial. Uma China que cresce, mas ao mesmo tempo tem partes muito decadentes e/ou rurais. Esse contraste é ainda maior quando, no terço final, o filme se desloca para a bela e solar Austrália. 

Zhangke nos oferece um ensaio sobre s vida durante a passagem de duas décadas e meia na vida destes três personagens e do filho do casal Tao-Jinsheng. A dilatação das montanhas, o afastamento entre elas é feito não sem frustrações, sem corações partidos e mágoas acumuladas. É difícil deixar o passado para trás, é difícil se reencontrar com ele. São muitas frustrações, muitas feridas não cicatrizadas e um clima de nostalgia que só a música desperta na vida das pessoas. A música "Go West", do Pet Shop Boys, e uma canção cantonesa dos anos 90 são sempre o estopim das lembranças, de um "como poderia ser", mas o destino não deixou, as escolhas não deixaram.

Fica sempre a questão na cabeça de cada personagem: o quanto a vida teria sido diferente se a minha escolha fosse diferente? É como se as decisões gerassem um karma que afastasse os afetos, trouxesse um desequilíbrio e gerasse um sentimento de inépcia. Mas há um crescimento, um amadurecimento de Dollar (Zijian Dong) em meio a tantas incertezas.

Mas apesar de tudo é possível encontrar a beleza nas trocas que a vida proporciona até encontrar um equilíbrio que reaproxime estas montanhas. Se é que elas vão se aproximar novamente. O futuro está em aberto diante do mar e do pôr do sol.

"As montanhas se separam" é um filme lírico, belo, intenso e com muito a dizer sobre as relações humanas. Uma bonita obra de Zhangke que receberá uma nota 8,5.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Paraty Facts

Contemplando Paraty/Marcelo Alves
A Corneta Travel pegou cinco horas de busão para trazer a vocês o que só ela viu. Preparamos para ti um post especial sobre Paraty (e eu prometo que este será o único trocadilho infame deste texto).
Ahh Paraty, a cidade histórica, a terra da Flip... Bem, mas deixemos para que nosso SAGAZ e observador viajante fale sobre esta cidade em tópicos absolutamente irrelevantes.
1- Para começo de conversa a rodoviária sabota essa cidade imprimindo bilhetes com destino a Parati, causando uma crise de consciência e ortografia no ser humano de primeira viagem. Estarei eu indo para a bela cidade da Costa Verde vizinha menos famosa de Angra dos Reis ou para um carro da Volkswagen? Mas basta avistar a placa Welcome to Paraty para sabermos que estamos no lugar certo. 
2- Se você andou pelo cidade durante alguns dias e não torceu o pé, não caiu e nem mesmo deu uma leve escorregadinha, considere-se vitorioso. Porque é inevitável andar SAMBANDO pelas ruas tomadas de pedras, pedrinhas e pedronas do centro histórico. 
3- É claro que essa observação só vale para haoles. Os locais LÊEM as calçadas como o Neo, de "Matrix", em seu estágio mais evoluído. E se deslocam por elas como ninjas em telhados chineses. 
4- Paraty tem muita farmácia. E tem muita sorveteria. Se juntarmos o consumo de gordura hidrogenada e chocolates com a quantidade de farmácias, pelo exercício de lógica, diria que a venda de Imosec é um hit. 
5- Por falar em farmácias, não sei por que os principais anúncios no lado de fora das drogarias faziam referências à venda de um genérico do Viagra em promoção. Será que tem a ver com velhinhos escritores visitando a feira? 
6- O centro histórico tem zilhões de casinhas coloniais branquinhas com detalhes em azul, amarelo, verde e marrom que tentamos admirar enquanto estamos nos equilibrando nas pedras. 
7- Paraty, vocês sabem, é a terra da cachaça. É entrar numa daquelas lojas e já sentir a vista meio turva com a quantidade de mé envolvido na cena. Obviamente não experimentei nenhuma, pois se assim fizesse meu jornalismo malemolente transformar-se-ia em jornalismo gonzo. 
8- Mas de comer eu não me furto. Logo, ali pertinho da Tenda dos Autores tinha um pastel de 30cm que é um escândalo de bom. O de carne com queijo com a carne moída grudada no queijo como moscas desesperadas em teias de aranha era tão delicioso que eu lamentei profundamente nunca ter encontrado na vida outro que tivesse tido a mesma ideia.
Melhor sorvete da cidade/Marcelo Alves
9- "Finlandês". Esse é O SORVETE de Paraty. Experimentei seis sabores, entre eles o inédito (na minha boca, é claro), chocolate branco com brownie. Mas tem muitos outros bons. Ganhou 2,5 estrelinhas do Guia Marcelin Ice Cream. 
10- Restaurantes: ou você é atendido como a rainha Elizabeth no Palácio de Buckingham ou como Michel Temer numa reunião de petistas. Não tem meio termo. 
11- O orçamento não permitia muitas estripulias (não esqueçam, a Corneta Travel ainda não tem patrocínio), mas me fizeram ir num tal de tailandês que eu torci a cara inicialmente como torço a cara para qualquer culinária do antigo muro de Berlim para lá. Mas o espírito de viajante que gosta de experimentar tudo o que tem de destaque na área (para cornetar, é claro), foi mais forte. E não é que eu gostei muito da comida? Inspirado pelos vídeos de heavy metal, pedi um pad thai. Bonito não era, mas era gostoso.
12- E fechando o bloco comida direi apenas mais cinco palavras: doce de leite com brigadeiro. 
13- Faz frio, bota o casaco. Faz calor, tira o casaco. Faz frio, veste a calça. Faz calor, coloca a bermuda. O tempo em Paraty nessa época é mais instável que geminiano com ascendência em Áries. 
14- Tem muito cachorro em Paraty (chineses iam amar). Tem muito cavalo em Paraty (quase fui atropelado por um). Logo, desviar-se da bosta enquanto você tenta se equilibrar nas pedras é uma arte. Convém estar com o olfato em dia.
15- As mesas. Não fui o loko das mesas, mas aqui está um resumo do que vi:
A) Abertura muito bonita com o filme do Walter Carvalho
B) Adriana Calcanhoto lendo um belo texto de Ana Cristina César
C) Silviano Santiago não apareceu
D) Juliana Frank quis aparecer tanto que tirou parte da roupa, se mexeu, fez gracinhas. Parecia uma adolescente em busca de atenção. Foi irritante e fui embora quando ela chamou parte da anatomia feminina utilizando um termo chulo só para dizer que é hetero até essa mesma parte sangrar. 
E) Essa mesa, aliás, não funcionou. Foi desconexa, rolou falha de comunicação. E muita gente foi embora por causa dos momentos deselegantes de Juliana, que não se portou como uma devida Juliana (toda Juliana que eu conheço varia entre ser gente boa e maravilhosa). 
F) Gregório Duvivier, Tati Bernardi e Ricardo Araújo Pereira, por outro lado, fizeram um debate muito engraçado. O português roubou a cena com tiradas inteligentes e espirituosas. 
G) Benjamin Moser e Heloísa Buarque de Holanda fizerem um debate de muita classe traçando paralelos entre Clarice Lispector e Ana Cristina César, a homenageada da Flip. Foi educativo para um leigo na obra de ambas como eu. 
H) Peguei a meia hora final de Arthur Japin falando de Santos Dumont e lamentei muito não ter visto a mesa na íntegra. 
I) Que mulher incrível é Svetlana Alexievitch. A prêmio Nobel de literatura me fez chorar com seus relatos e sua sensibilidade sobre a guerra. E me fez comprar dois dos seus livros. Ou seja, vendeu bem o peixe dela. Seria capaz de ouvi-la por mais dois dias em russo que não cansaria. Foi o momento mais emocionante dos que vi. 
Paraty, uma bela cidade/Marcelo Alves
16- A Flip, aliás, é realmente um evento incrível. Ver tanta gente falando sobre o processo criativo, contando histórias... Um aprendizado. Quero voltar todo ano. 
17- O prêmio de melhor trocadilho da cidade vai para a vendedora de Açaí, cujo estabelecimento se chama "Açaideira". Tum dum tsss. E ela ainda tem programa de fidelidade: a cada seis açaís, ganhe um de graça. É muito empreendedorismo deste Brasil. 
18- Sorte da viagem: entrar numa igreja no exato instante em que uma mulher afinava um piano. Daqueles momentos musicais que você guarda. 
19- Saldo final: 
Voltaria para Paraty? Com certeza. Agora que finalmente abri a porteira do conhecimento espero voltar muitas vezes em muitas Flips. 
Moraria na cidade? Aí acho que não, porque se equilibrar naquelas pedras do centro histórico cansa demais depois de um tempo. Mas se eu me acostumasse....

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Um herói brasileiro

Aldo estava um pouco nervoso
Nunca fui um fã de MMA. Pelo contrário, nem acho que seja esporte. Mas eu sou fã de cinebiografias e histórias minimamente interessantes. Por isso, não pensei duas vezes em ir para o cinema para ver "Mais forte que o mundo: a história de José Aldo"

O filme sobre o lutador de MMA que ficou dez anos invicto e é uma das maiores estrelas do esporte tem uma série de defeitos, mas ao mesmo tempo também pode ser encarado como uma boa diversão. Vejo, portanto, como uma metáfora do Brasil na visão de muitos. Cheio de problemas, mas com sua beleza. 

A primeira parte de "Mais forte que o mundo" se passa na fase da vida de Aldo, vivido de forma muito competente por José Loreto, em Manaus. Vida sofrida, problemas de relacionamento com o pai (Jackson Antunes), um alcoólatra que agredia a sua mãe (Claudia Ohana), alguém que não se encontrou com o mundo, não sabe o que quer, mas tem uma agressividade latente. 

Essa fase inicial, resvala um pouco no brega, mas nos coloca um Aldo já num momento em que curti muito. Uma relação com seus demônios interiores personificado na figura de Fernandinho (Rômulo Neto). Sim, tem o maior jeitão de "Clube da Luta". Sim, não tem a mesma sutileza do filme estrelado por Brad Pitt, mas funciona satisfatoriamente. E talvez nem fosse o desejo do diretor Afonso Poyart imitar ou ser sutil como o "Clube da Luta". 

Mas a melhor fase do filme fica para o Rio de Janeiro. Sai aquele tom sombrio, entra a luz, como se a vida de Aldo começasse a se transformar. É no Rio que ele começa a batalhar para se transformar em um lutador, conhece Viviane (Cléo Pires), a mulher com quem se casaria, e passa a treinar com o midas Dede Pederneiras (o excelente Milhem Cortaz). 

Mas o eixo de "Mais forte que o mundo" está na relação de Aldo com o pai. O lutador o descreve como seu maior incentivador, mas ele também personifica um desejo de vingança. Uma relação de amor e ódio, que Aldo só parece resolver na fase final da vida do pai, perdoando-o por seus inúmeros defeitos. 

"Mais forte que o mundo" poderia ser um filme muito legal, mas se me for permitido fazer uma crítica, acho que Poyart exagerou um pouco na tentativa de construir um épico. Exagerou no cruzamento de "Ben-Hur" com "Rocky IV" e "Clube da Luta". Para não falar no excessivo uso de uma câmera lenta à moda "300".

Mas a cinebiografia de Aldo pode ser apreciado como uma boa diversão de uma "Sessão da Tarde". E uma boa forma de conhecer um pouco da história do lutador, que é um dos ídolos do MMA. Por isso, vai ganhar uma nota 6,5.