segunda-feira, 28 de abril de 2014

Kung Fu

Ip Man mostra que é bom na chuva
Certa vez eu fiz uma daquelas enquetes do buzzfeed (sim, eu sou desses) que era sobre de qual período histórico você é ou deveria fazer parte. Era uma espécie de terapia de vidas passadas pela internet. Para a minha surpresa na ocasião deu uma dinastia chinesa. A corneta realmente tem um pezinho em tradições milenares e admira coisas antigas. A corneta é mais do que velha. É matusalênica! E assim ela foi empolgada ver o novo filme de Wong Kar Wai.

Se você é um diretor chinês, é praticamente uma obrigação fazer na sua vida um filme de espadachim e/ou um filme de Kung Fu. É tipo brasileiro fazendo comédia. Kar Wai, conhecido por trabalhos bonitos como “Amor à flor da pele” (2000), “2046 – os segredos do amor” (2004) e “Um beijo roubado” (2007) - ah, a torta de blueberry -, já tinha feito um filme de espadachim há 20 anos, com “Cinzas do passado”. Faltava o filme de Kung Fu.

"O grande mestre" tem tudo o que nos faz feliz com um filme do gênero. Tem lutas maneiras, um vilão com cara de mau, uma mocinha que também vai pro pau e uma série de ensinamentos de biscoito da sorte com parábolas do tipo "um tigre nunca sai da montanha" e “Não se deve lutar com monges budistas, mestres taoistas, mulheres e crianças”. As parábolas chinesas são muito mais legais que as cristãs.

Tudo em "O grande mestre" se passa do início até meados do século XX durante a guerra sino-japonesa. Enquanto o Japão invade a China numa batalha sangrenta, norte e sul do país tentam se entender sobre quem luta melhor e com dancinhas mais bem coreografadas. E tome de salto do macaco caolho de um lado, árvore frondosa que sufoca a garganta do outro, e coisas do gênero. Tudo nas artes marciais chinesas têm um nome poético.

Basicamente temos três escolas se digladiando para ver quem tem o estilo mais totalmente excelente. Os Gong são os mestres do momento, cujo patriarca rei da cocada preta reuniu dois estilos milenares e domina a temida técnica dos 64 movimentos do Baguá. Não ria, o negócio é sinistro e cheio de golpes invisíveis que fariam o Mister M cortar um dobrado para desvendar.

Mas temos também Ip Man, o nosso anti-herói vivido por Tony Leung, um outsider sem estilo que consegue assimilar por osmose as técnicas de todas as escolas. Ip Man é um cruzamento de Mística, dos X-Men, com Ayrton Senna, pois ninguém luta melhor que ele na chuva. Ele também consegue quebrar biscoitos só com a força da mente. Bom, esse poder não tem muita utilidade, mas as crianças podem curtir. Tudo isso sem amassar o seu chapéu Panamá. Ip Man é um pequeno gafanhoto de James Bond.

O problema é que ele só viu uma vez a tal das 64 formas e não conseguiu memorizar. Por isso joga um charme para a filha Gong, rola um clima, mas a vida prega peças nas pessoas. Vocês sabem disso. E o que Deus ameaça unir, a guerra trata de afastar antes.

Ip Man protagoniza grandes lutas, mas o grande momento do filme é mesmo a pancadaria entre a filha Gong e o bastardo traidor. Um duelo entre "irmãos de armas". Essa vale muito o ingresso. De fazer o Bolshoi aplaudir de pé. O desfecho? Vejam o filme. Não vou ficar aqui dando spoiler.

A corneta se amarra em filmes de Kung Fu e saiu do cinema mais sábia com os  ensinamentos de Kar Wai. Mas sabe que o leão que fita a adaga precisa buscar o caminho da montanha por fendas na cachoeira dentro da floresta (provérbio chino-marcelista). Isso é para dizer que a perfeição não está no fim, mas na iluminação conseguida pelo caminho. Assim, a corneta vai dar uma nota 8 para "O grande mestre". E não se esqueçam de uma coisa: #somostodoscorneta.


Ficha técnica: O Grande mestre (Yi dai zong shi – 2013 – China) – Tony Leung (Ip Man), Cung Lee (Iron Shoes), Qingxiang Wang (Mestre Gong Yutian), Elvis Tsui (Mr. Hung), Chia Yung Liu (mestre Yong), Ziyi Zhang (Gong Er), Chen Chang (Canivete), Jin Zhang (Ma San). Escrito por Wong Kar Wai, Jingzhi Zou e Haofeng Xu. Dirigido por Wong Kar Wai.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

O herói da América de volta

Fury, Rodgers e Viúva Negra posam para foto
Antes de entrar na sala de cinema, a corneta pensou em fazer uma enquete para saber qual é o super-herói mais coxinha dos quadrinhos: Capitão América ou Superman? Depois do filme, bem depois do filme... sorry, Superman, você levou essa.

Um dos méritos de "Capitão América - o soldado invernal" é dar um polimento, uma lapidada na "coxinhice" do Capitão América. Sim, o Sentinela da Liberdade continua lá com seus valores morais, com seu discurso e toda a sua perfeição. Ou quase. O filme dá a entender, deixa uma pequena ponta solta, de que o escoteiro da América já deu suas derrapadas. Tudo bem que foi há 70 anos, mas já é alguma coisa. Enfim, num pais conhecido por seus desvios éticos em ações militares, o Capitão América do cinema não poderia passar incólume como o dos quadrinhos.

Antes de continuar, eu vou dizer uma coisa logo. "Capitão América - o soldado invernal" é muito bom. Está entre os filmes tops sobre quadrinhos já feitos desde que isso virou gênero nas últimas duas décadas. Pensando em tudo que já foi feito na história (e confiando na minha memória, o que não é uma boa medida), podemos fazer um ranking assim (gosto de rankings, eles sempre são polêmicos e alimentam discussões de bar):

1- “Watchmen” (2009)
2- “Batman - o cavaleiro das trevas” (2008)
3- Os Vingadores (2012)
4- “Homem de Ferro 2” (2008)
5- “X-Men” (2000)
6- “Capitão América 2 – soldado invernal” (2014)
7-”“O Homem-Aranha” (2002)
8- “300” (2007) – Eu gosto, tá!
9- “Batman” (1989)
10- “Sin City” (2005)
11-“Superman” (1978)

E o que faz este filme ser muito melhor do que o primeiro, que é verdadeiramente uma palhaçada, uma patriotada, uma pachequice norte-americana?

Vamos a alguns elementos:

1 - Chris Evans finalmente se encontrou no personagem. Nem no ótimo filme dos Vingadores ele está tão bem. Lá, ele era sistematicamente engolido por Robert Downey Jr. e Chris Hemsworth. Aqui, eles teriam pelo menos tido embates de igual para igual.

2- A história é muito boa. Claramente superior ao primeiro filme, que é do gênero "veja como eu nasci". Envolve um tema ainda atual, a militarização, a cultura do medo, do atire primeiro e pergunte depois pós-11 de setembro, aliada a um esquema de espionagem e contraespionagem dentro da própria Shield, com a Hidra absolutamente envolvida. Vocês não achavam que a Hidra iria sumir assim né? É organização terrorista de primeira linha.

3- As cenas de ação estão muito bem feitas. Isso parece óbvio num filme de ação, mas tem muita tosqueira por aí. As brigas de Rodgers, as perseguições. Não tem nada mirabolante que nunca tenha sido feito. Não é o Kama Sutra da porrada, mas é o simples bem feito. Os fãs de quadrinhos curtem. A primeira entrada do Capitão América em ação é espetacular.

4- Bons coadjuvantes com histórias interessantes. A entrada do Falcão é uma boa, O Soldado Invernal (que eu descobri quem é na primeira cena, fazendo perder um pouco da graça de um pedaço do roteiro) trará consequências no futuro, e a Viúva Negra ganhou mais espaço deixando os fãs dela (eu entre eles) felizes.

5- E o filme ainda tem o luxo de ter Robert Redford, um senhor que dispensa apresentações. Não posso falar muito para não estragar a história.

Enfim, a receita de sucesso dos diretores Anthony e Joe Russo foi simples. Foi o que uma vez eu ouvi numa longínqua aula de marketing no passado: menos é mais. Principalmente se você tem US$ 170 milhões para gastar. Fez o simples, foi direto, objetivo e correu para o abraço após marcar um golaço ao som de Marvin Gaye.

Vi o filme em 3-D, o que não faz a menor diferença para o filme em si, mas proporciona algo único. Nunca na minha vida eu estive tão perto de Scarlett Johansson (vocês não acharam que eu tinha esquecido dela né?). Sim, eu sei, Scarlett é uma obsessão e eu preciso parar, mas, vejam bem, o filme não tem só a Scarlett Johansson. Ele tem a Scarlett Johansson RUIVA. Isso eleva o desejo a outro patamar. Bom, já vi Scarlett em 2D, 3D... estou avançando. Espero em breve chegar ao 6D.

Depois deste preâmbulo totalmente desnecessário de um parágrafo, vamos ao que realmente interessa: a nota da corneta. O escoteiro foi muito bem dessa vez e vai voltar para casa feliz. "Capitão América - o soldado invernal" vai ganhar uma
nota 9.


Ficha técnica: Capitão América 2: o soldado invernal (Captain America – The Winter Soldier – 2014 – Estados Unidos) - Chris Evans (Steve Rodgers/Capitão América), Scarlett Johansson (Natasha Romanova/Viúva Negra), Samuel L. Jackson (Nick Fury), Robert Redford (Alexander Pierce), Sebastian Stan (Winter Soldier/Bucky Barnes), Anthony Mackie (Sam Wilson/Falcão), Cobie Smulders (Maria Hill), Emily VanCamp (Kate/Agente 13), Toby Jones (Arnin Zola). Escrito por Christopher Markus e Stephen McFeely. Dirigido por Anthony e Joe Russo.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

'Noé'

Noé corre para não se molhar muito
Quem diria? Hollywood redescobriu a Bíblia. Duas semanas antes de Jesus adentrar as salas de cinema com todo seu cabelo liso e olhos claros comprovando que os historiadores estão errados e o filho de Deus na verdade era norueguês, a corneta foi conferir a mais nova produção divina do cinema. Não tenho nada contra as religiões, mas lançarei, como sempre, um olhar iconoclasta para conferir se esse novo filme é ou "Noé" grande coisa.

Como vocês estão cansados de saber, "Noé" conta a história daquela vez em que Deus resolveu dar um reboot e reinstalar o Windows do mundo. O problema é que ele deixou cair um copo d'água no seu computador celestial (com wi-fi divinamente rápido) e deu no que deu.

É claro que isso resultaria na maior chacina já vista. Quase todo mundo morre no final. Desculpem pelo spoiler.

Só que esse papo de seguir a Bíblia ao pé da letra não iria atrair a geração do Face para a frente do cinema, né. Foi aí que Darren Aronofsky teve algumas sacadas. Injetou testosterona no Noé e convidou o Russell Crowe para interpretá-lo.

Crowe transformou o personagem no macho alfa que Aronofsky queria. Bom de briga, descendente direto de Adão, segundo o velho testamento, protetor da família e com uma missão divina: construir uma arca para proteger um casal de cada espécie animal do grande dilúvio que vai acontecer daqui a pouco no mundo.

Esqueçam os discursos empolados na segunda pessoa do singular ou do plural. Com Aronofsky a mensagem é direta e a missão clara. Seu "Noé" é um Mad Max Bíblico sem a Tina Turner. We don't need another hero. We already have Noé.

Neste mundo antes de Cristo, do Google e do McDonald's, o apocalipse se aproxima porque a humanidade não soube cuidar direito do planeta. E agora a natureza vai se vingar com o ajuda do cara lá de cima. O Greenpeace deve ter curtido essa versão.

Mas o que fazer para salvar os bons e os justos? Noé entra em sintonia com o Criador que lhe dá uma letra, mas ele não compreende direito. É obrigado a visitar o seu avó em busca de alguma luz.

Entra em cena Matusalém, que não poderia ser interpretado por mais ninguém além de Anthony Hopkins. O mercado de velhos, sábios anciões e pais de heróis é monopolizado por ele. Estão aí "Thor" (2011 e 2013), onde ele faz Odin, “Alexandre” (2004), onde ele é Ptolomeu, e “A lenda de Beowulf” (2007), onde ele faz o rei Hrothgar, que não me deixam mentir.

Matusalém dá um chazinho de ayahuasca para Noé, que viaja na maionese como um hippie dos anos 70. É quando Noé vê a arca e parte obsessivamente para construí-la.

Enquanto isso, a humanidade se prepara para ocupar o espaço como faz melhor. Destruindo e degradando o ambiente. Realmente a visão de Aronofsky sobre a nossa espécie não é muito romântica. Ponto para ele.

É, Aronofsky, eu gosto de você (como não gostar de alguém que fez "Réquiem para um sonho"?), mas convenhamos, "Noé" um filmaaaaaço não. Tem uns efeitos especiais maneiros, atuações apenas ok e imagens bonitas.

Mas apreciei a licença poética de fazer o mal embarcar na arca. Representado pela figura do vilão Tubal-Cain (Ray Winstone), ele é a encarnação dos sentimentos ruins do ser humano. Incluindo aí os ecologicamente incorretos. Um recado do diretor de que algumas coisas não mudaram. Ou uma previsão de que um novo dilúvio se avizinha? Afinal, a humanidade não aprendeu muito nos últimos séculos a gerir os seus recursos naturais.

Antes que um novo dilúvio venha nos consumir, vou dar logo a cotação da corneta. Entre altos e baixos, "Noé" passou raspando. Vai ficar com uma nota 6.

Ficha técnica: Noé (Noah – 2014 – Estados Unidos) – Russell Crowe (Noé), Jennifer Connelly (Naameh), Ray Winstone (Tubal-Cain), Anthony Hopkins (Matusalém), Emma Watson (Ila), Logan Lerman (Ham), Douglas Booth (Shem), Nick Nolte (Samyaza). Escrito por Darren Aronofsky e Ari Handel. Dirigido por Darren Aronofesky.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

'Tudo por Justiça'

Bale brinca de tiro ao alvo
Todo filme que tenha uma canção de Eddie Vedder já nasce bem avaliado. Mas não pensem que só por ouvir um Pearl Jam, a corneta se rende e sai distribuindo 10 igual a apuração de escola de samba. Aqui o critério é duro. Mais duro que a "Gazzetta dello Sport" em dia de mau humor.

Quando "Tudo por Justiça" começa, já temos uma ideia do que o diretor Scott Cooper pretende. Aqui ninguém vai se dar bem, amigo. Esse povo vive num lugar bizarro, com fumaça saindo das chaminés das indústrias, decrépito, enfim, feio pra cacete. Parece que é ali na Pensilvânia. É o tipo de lugar que político só vai em campanha.


E nesse local tem algo pior. Uma área lá pelas montanhas que é uma terra de Malboro. Sem lei, mundo cão, todos obedecendo às ordens de Harlan DeGroat.


Nosso vilão é vivido pelo Woody Harrelson, em mais um papel de porra louca, doidão, suicida, polêmico ou tudo isso junto na carreira. É o que o velho Woody faz de melhor. Lembre de “Onde os francos não tem vez” (2007), “Assassinos por natureza” (1994), “O povo contra Larry Flynt” (1996), por exemplo. Ele adora um tipo diferenciado.


O problema é que com Christian Bale o buraco é mais embaixo. Afinal, vocês sabem, ele é o Batman.


Bale é o nosso herói. Jovem trabalhador de uma usina que vai fechar a qualquer momento porque sai mais barato importar aço da China (é a economia, estúpido), Russell Baze tem as marcas de uma vida dura no rosto. Mas mesmo com uma existência mais ferrada do que todos nós e dando vários plantões na fábrica para pagar as contas da casa, ele sempre encontra uma razão para viver no sorriso e no jeitinho meigo de Lena (Zoe Saldana), sua jovem namorada.


Mas um dia, enquanto pagava pela enésima vez uma dívida do irmão-problema Rodney (Casey Affkeck) para o agiota John Petty (Willem Defoe), sua vida vira de cabeça para baixo e ele vai parar na cadeia. Todo o mundo aconchegante vai por água abaixo. É preciso reconstruir a vida. Mas havia o irmão problema.


"Tudo por justiça" é um filme, acredite, sobre amor. Mas também sobre vingança. Talvez até mais sobre vingança. Citando Rousseau, sem querer parecer pedante, um filme que reflete sobre como o homem é produto do meio em que vive. E das situações pelas quais passa. E a misericórdia surge quando menos se imagina. Assim como a sede de sangue.


A letra de "Release", do Pearl Jam, que está na trilha sonora, é pessimista. Fala de um homem que clama aos céus por uma solução final que o liberte da dor. É como o irmão de Russell, soldado do exército americano na guerra do Iraque que não consegue esquecer os horrores que presenciou. Ou o próprio DeGroat, um sobrevivente do seu meio que “tem problema com todo mundo”.


E na sua interpretação, que eu vou chamar de brilhante sem medo de me arrepender, Bale nos oferece um drama em todas as camadas. Vou dizer para vocês que é extremamente prazeroso ver um grande ator atuando. Bale transforma um roteiro econômico numa arma para dizer muito com gestos, atitudes, olhares. A serenidade dele na cena final diante de um ato tão cruel é coisa de poucos. Curti.

A corneta é fã de Bale e Harrelson. E gosta de ver dois atores trabalhando bem num filme pequeno como este. "Tudo por Justiça" passou no teste e vai receber uma nota 8,5.


Ficha técnica: Tudo por justiça (Out of the furnace – 2013 – Estados Unidos) – Christian Bale (Russell Baze), Woody Harrelson (Harlan DeGroat), Cassey Affleck (Rodney Blaze), Zoe Saldana (Lena Taylor), Sam Shepard (tio dos Blaze), Willem Defoe (John Petty), Forest Whitaker (policial Wesley Barnes). Escrito por Brad Ingelsby e Scott Cooper. Dirigido por Scott Cooper.