sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Um grande filme chamado Green Book

Dupla afinada
É possível analisar “Green Book” sob alguns pontos de vista. É um filme que trata sobre o racismo. Mas é também um road movie que fala sobre uma amizade inimaginável. É também um filme que esgarça o preconceito da América profunda, em especial do Sul dos Estados Unidos. É ainda um filme sobre um personagem que não se encontra em nenhum ambiente por estar na rara posição do negro privilegiado e sente uma profunda solidão por isso. Nada disso é original. Nada disso é algo sobre o qual outros filmes não falaram na história do cinema. Mas quão deliciosa, incomoda e interessante é acompanhar a jornada do pianista Don Shirley (um brilhante Mahershala Ali) e seu motorista e capenga Tony Vallelonga (Viggo Mortensen, igualmente maravilhoso). 

Particularmente, “Green Book” tem de mais interessante em dois dos pontos acima. O primeiro é está relação tão improvável entre Tony, esse italiano bronco e simplório que vê o mundo de forma tão obtusa e direta, separando pessoas em tribos com seus próprios costumes arraigados e que não se misturam, e Shirley, um negro de educação erudita, que vive como um rei isolado no topo do Carnegie Hall. E é incrível que mesmo em tamanha ignorância ele tenha feito Shirley enxergar o quão afastado dele mesmo ele estava. 

A história do filme de Peter Farrelly é real. De fato nos anos 60, Shirley era um pianista virtuoso e muito popular que resolve excursionar pelos cantos mais racistas da América. Seu objetivo? Tocar o coração das pessoas. 

Mas quão difícil é romper barreiras históricas e tão arcaicas. Shirley precisa passar por situações simplesmente ridículas. De noite, ele é um pianista brilhante aplaudido por todas as plateias brancas e ricas. Mas durante o dia é só mais um negro que não pode comer no mesmo restaurante da sua plateia ou usar o mesmo banheiro. 

Por mais que o filme não retrate o inferno que era ser um negro naquela região - e seu nome vem justamente de um guia de sobrevivência por aquela região - , ainda assim é cruel, quase nojento para quem acompanha ver tudo pelo qual Shirley tem de passar para manter viva a ideia da sua turnê. É importante, no entanto, como o próprio personagem afirma, “manter a dignidade”. Só pela dignidade se vence o preconceito raivoso. 

Mas “Green Book” não se prende apenas na pura denúncia de racismo de uma região da América. É no incômodo e na distância que o próprio Shirley sente entre seus pares que o filme expõe seus sinais de grandeza. É ao mostrar que ele não é negro suficiente para estar entre os seus, nem branco nem homem suficientes para ocupar outros grupos, que “Green Book” expõe a terrível solidão de um homem que se vê no meio do caminho de um triângulo sobre o qual ele não tem as habilidades, ou as supostas qualidades, necessárias para ocupar nenhum vértice. 

Numa sociedade fragmentado que precisa de rótulos Shirley não se encontra jamais. Não se conecta a nada e sente-se isolado em todos os ambientes. Sua companheira mais fiel é uma garrafa de bebida alcoólica cara, que o mantém distante de todos e mergulhado ainda mais na solidão. 

Quem são seus pares? Não são os brancos que o odeiam quando está fora do palco e o negam até o direito de experimentar um terno numa loja. Não são os negros, com quem ele não se conecta justamente por não compartilhar da mesma cultura rica, mas diferente da sua educação vinda do piano clássico, e por vestir ternos caros e bem cortados. 

Para ele, aproximar os dois lados exige um instrumento de conciliação pela música. Daí a sua turnê tentando repetir algo semelhante que Nat King Cole tentará uma década antes. Seu objetivo é tocar o coração das pessoas e aproximar os vértices tão afastados apelando ao senso de humanidade. Para, talvez, sentir-se menos só. Mas também ajudar a mudar a sociedade. 

O trabalho, porém, é lento e gradual. E na grande amizade que Shirley constrói com Tony, um homem que se mostra racista no início do filme, mas cuja amizade e parceria com Shirley vai crescendo ao longo da turnê, é que o seu sucesso pode se fazer presente. 

“Green Book” fia-se muito nos excelentes trabalhos de Ali e Mortensen. Não é por acaso que ambos receberam merecidas indicações ao Oscar. O primeiro comprova o excelente momento que está vivendo dois anos após receber a estatueta de coadjuvante por “Moonlight” (2016). Seu trabalho na terceira temporada de “True Detective” também merece elogios. O segundo é um ator que está em sua terceira indicação ao Oscar e quase sempre faz bons trabalhos.

Mas para além disso, é uma ótima história e tão necessária de ser contada em tempos em que o racismo e o preconceito em geral contra diversos tipos de povos, etnias, orientações sexuais e religiões estão infelizmente tão vivos. São feridas que ainda sangram demais quando deveria-se trabalhar para construir uma sociedade mais justa e equilibrada para todos. Se cada um procurasse criar pontes como as que uniram Shirley e Tony, talvez este fosse um planeta menos solitário, mais rico e mais interessante de se viver para todos. 

Indicações ao Oscar: Melhor filme, ator (Viggo Mortensen), ator coadjuvante (Mahershala Ali), roteiro original e edição.

Cotação da Corneta: nota 8,5.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Um artista em busca da identidade

Pintar é preciso. Viver não é preciso
Muitos filmes alemães refletem sobre o período entre guerras. Mais especificamente sobre a segunda guerra e o domínio nazista. Florian Henckel Von Donnersmarck parece gostar de refletir sobre o quanto a realidade deste período influência o trabalho de um artista. Pelo menos é o que mostra seus dois filmes alemães. Se “A vida dos outros” (Das Leben der anderen, 2006), era sobre um autor de teatro perseguido e que soube driblar a censura e vigília da Stasi, a polícia da antiga Alemanha Oriental, seu mais novo filme, “Nunca deixes de olhar” (Werke ohne autor, no original), é um pouco sobre um artista em busca da sua própria identidade em meio a uma vida e a própria Alemanha fragmentária. 

“Nunca deixes de olhar” é um filme brutalmente lindo. Conta a história do jovem Kurt Barnert (Tom Schilling), que desde pequeno demonstra um grande talento para pintar, mas cresce com dificuldades numa Alemanha prestes a entrar na Segunda Guerra Mundial. 

Estávamos em 1937, Adolf Hitler era um líder assustadoramente idolatrado pelas massas enquanto por trás dos panos o governo nazista conduzia uma política terrível de purificação da população. Qualquer pessoa que mostrasse algum problema físico ou mental era eliminada. A ordem aos médicos era expressa: a vaga nos hospitais era apenas para os arianos puros que possam transformar a Alemanha numa raça perfeita. 

É por causa disso que Kurt se vê diante da sua primeira tragédia: a perda da tia, grande incentivadora do seu talento e de espírito puramente artístico, mas que supostamente sofria de esquizofrenia. 

E a partir desse momento que as histórias das famílias de Kurt e do professor Carl Seeband (Sebastian Koch) começam a se cruzar. Seeband é um ginecologista famoso que dirige a clínica de Dresden onde sua tia foi assassinada. Mais à frente, Kurt acabará entrando para a família do professor a partir do namoro com Ellie (Paula Beer), jovem estudante de moda da Academia de Artes de Dresden. 

Cada um deles encontra uma forma de sobreviver a mudança do regime ditatorial. Do nazismo para o socialismo soviético, o professor conta com a sorte para garantir a proteção de um general e a retomada da sua vida de bonança ao mesmo tempo em que apaga o seu passado nazista. Kurt, por sua vez, trabalha duro. Os primeiros passos da sua arte são escrevendo letras em uma fábrica de placas. Daí, ele ganha incentivo para a escola de Belas Artes e vai galgando trabalhos graças ao seu talento. 

Kurt, porém, nunca se mostra satisfeito. Von Donnersmarck faz questão de mostrar que não importa o regime. Quando a arte não é livre, ela não é genuína. Se os nazistas faziam questão de ridicularizar a arte moderna, os Kandinskys e tudo o que apresentava uma postura crítica, os soviéticos faziam questão de negar os artistas que não pensavam no comunismo e no bem do proletariado. Picasso era o maior exemplo do que não se seguir. 

E no meio disso, Kurt parecia cada vez mais insatisfeito com seus murais exibindo a glória do trabalhador de foice e martelo. Tudo era falso, tudo era irreal, tudo era sem identidade. Era preciso mudar para buscar a verdade. A verdade que ele tanto persegue com afinco no filme.

Assim, Kurt e a namorada vão em busca de um mundo todo novo no lado ocidental antes da construção do Muro de Berlim. Buscar a verdade acaba sendo a senha para Kurt se mudar e refletir sobre a pureza das imagens a partir de fotografias antigas. Mas até lá, há um longo processo de aprendizado, desconstrução, destruição, recriação. 

Entre os méritos do filme de Von Donnersmarck é o de mostrar essa jornada dolorosa que é a da criação. E de como o meio, o ambiente e a bagagem de vida do artista pesam demais sob a sua obra. 

É curioso que o diretor tenha optado também por fugir do caminho fácil da revelação hollywoodiana. Apenas nós enquanto espectadores e, no fim, Seeband, sabemos da conexão de dor e mortes que liga o professor a Kurt. O personagem principal nunca sabe disso, mas a sua obra acaba por se revelar, por coincidência, de uma enorme força a partir destes eventos. Talvez a arte tenha um aspecto divino que nunca conheceremos de criar conexões inimagináveis. 

“Nunca deixes de olhar” é uma saga muito bela e com merecidas duas indicações ao Oscar. É um filme que merece ser apreciado pela força dessa jornada de Kurt e pelas transformações que a arte provoca. 

Indicações ao Oscar: fotografia e filme estrangeiro. 


Cotação da Corneta: Nota 8

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Shyamalan decepciona no desfecho da trilogia

Que sessão de terapia patética
Eu não sei se desde 2000, quando lançou “Corpo Fechado” (Unbreakable, no original), M. Night Shyamalan tinha essas duas perguntas na cabeça: “E se o mundo realmente tivesse super-heróis? Como eles seriam?”. Ao lançar o ótimo “Fragmentado” (Split), há dois anos, porém, parecia cada vez mais clara a ideia do diretor de criar a sua própria trilogia de super-heróis original em uma indústria em que boa parte do faturamento tem vindo das adaptações dos quadrinhos da Marvel e da DC. 

Agora que “Vidro” (Glass, no original) o terceiro tomo de sua história chega aos cinemas, o sentimento que fica é o de frustração. Entre a tentativa de ironia e a de construir uma mitologia própria, Shyamalan se perdeu no meio do caminho em um filme que deixa demais a desejar e com um roteiro que não soube para onde ir. 

“Vidro” ganharia mais se girasse em torno da ironia que Shyamalan tenta criar em diferentes passagens do filme. Da forma como ele zomba das histórias de super-heróis, como ironiza a Marvel (citada a partir da capa de uma revista) e os roteiros destes mesmos filmes e dos próprios quadrinhos. Principalmente a partir da obsessão do Mister Glass (Samuel L. Jackson) sobre o tema. 

Mas ironia requer sutileza e o terço final do filme é conduzido de forma tão pesada pelo diretor que ele perde a mão e transforma tudo numa caricatura. E, pior, leva-se a sério para criar toda uma mitologia nova no que seria a sua história de origem particular a partir de um grupo comandado pela doutora Staple (Sarah Paulson). Talvez essa até fosse sua intenção. Mas penso que não funcionou a contento. 

No meio disso tudo, até o trabalho brilhante de James McAvoy, fazendo um homem de 24 personalidades tão diferentes fica meio perdido. Muito da força do seu personagem é apagada ao transformá-lo num mero capacho de Glass, o eterno antagonista do Vigilante (Bruce Willis). 

De fato, os três personagens principais estão apáticos e sem qualquer química. Mas o pior de tudo está na presença natimorta dos três personagens que são os braços direito dos três protagonistas. Casey (Anya-Taylor Joy), a sobrevivente do cativeiro da Besta, Joseph (Spencer Treat Clark), filho de Dunn, e Mrs. Price (Charlayne Woodard), mãe de Glass, figuram entre o nada e coisa nenhuma em interpretações sofríveis. 

Por fim, temos toda uma trama num hospital psiquiátrico que funciona apenas como cortina de fumaça para um grupo de pessoas sobre os quais nada se sabe. Uma interrogação que Shyamalan deixa no ar para o que talvez seja um projeto futuro, mas que também mata a proposta que se tentava levar entre o descrédito e a aceitação dos poderes. Há uma tentativa de vários plot twists que não funcionam em nenhum momento. 

E com isso, “Vidro” caminhou para uma grande decepção. Um delírio de Shyamalan que tinha tudo para dar certo ao fim de “Fragmentado”. Que gerou expectativa. Mas cujo resultado frustrou quase como os vários trabalhos ruins do diretor. 

Cotação da Corneta: nota 4

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Nada faz muito sentido em "Vox Lux"

Portman no papel da estrela pop Celeste
Vendo o trailer um pouco antes do seu lançamento, “Vox Lux” pareceu-me um cruzamento de “Cisne Negro” (2010) com “Nasce uma estrela” (2018). A alusão ao primeiro filme tinha uma clara relação com o fato de ser também estrelado por Natalie Portman em um papel de uma artista. Lá, uma bailarina. Aqui, uma estrela pop. Já a comparação com o segundo filme vinha mais pela temática de falar sobre uma cantora pop. 

“Vox Lux”, porém, fala mais sobre a decadência de uma estrela, enquanto “Nasce uma estrela” é mais sobre a ascensão de uma cantora em meio à queda do seu namorado também cantor. 

Grosseiramente falando, é sobre isso que o filme fala. O difícil é encontrar no trabalho de Brady Corbet uma estrutura narrativa para além desta visão clichê. E também uma reflexão sobre o que o diretor pretendia dizer com todos os elementos que reuniu neste filme. 

Falta profundidade a “Vox Lux”. O que Corbet queria dizer ao associar atentados e a violência brutal do terrorismo e dos assassinatos em massa com a história de uma garota que desde cedo torna-se uma estrela pop? Celeste é fruto da violência por estar numa escola atacada por um garoto nos mesmos moldes de Columbine? Por isso quer virar uma estrela pop? Para levar alegria aos fãs em meio as dores da violência? 

A violência está sempre presente na sua carreira. O início pôs-atentado na escola, o meio durante o ataque às torres gêmeas do World Trade Center em 2001 e o renascimento quando tem que lidar com um atentado na Croácia que se assemelha muito ao ocorrido numa praia da Tunísia em 2015. E o que isso tudo tem a ver com uma estrela mirim que vira mãe muito jovem e torna-se uma adulta inconsequente, drogada e alcoólatra, mas ao mesmo tempo uma diva pop cheia de fãs? 

Corbet não deixa claro sobre o que pretende com o seu filme. E nem se pretende deixar no ar temas para o espectador refletir por si mesmo. Na verdade, “Vox Lux” é uma grande confusão que não aponta para uma direção sequer. 

Enquanto isso, Natalie Portman tenta defender o seu personagem com garra. Nunca a vimos tão cheia de trejeitos. Sua Celeste é uma caricatura das estrelas pop, mas o caminho do sarcasmo parece só tomado por ela e não acompanhado pelo filme, que ainda conta com um Jude Law raras vezes apático no papel do empresário de Celeste. 

“Vox Lux” ainda encerra com uma longa tomada de um show, que me lembrou o constrangedor final de “Bohemian Rhapsody”. Se havia algum recado a dar naquele momento, seja pela performance, seja pelas mensagens passadas no telão, elas não foram devidamente claras. Ou sequer simbólicas. Foi um grande nada. 

A sensação que fica é exatamente a desse vazio que “Vox Lux” passou. Poderia ter sido melhor, mas foi um desperdício de tempo. 

Cotação da Corneta: nota 3.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O canto do cisne de Redford

Redford e sua classe para roubar bancos
Há alguns meses, Robert Redford anunciou que estaria se aposentando. Seu último filme como ator seria “O cavaleiro com arma” ("The old man & the gun, no original), trabalho em que o ator de 82 anos interpreta a história real do assaltante de bancos Forrest Tucker. 

O papel de Tucker, que viveu toda uma vida de crimes e escapou de 17 prisões até a sua morte em 2004, é o canto do cisne de um ator que sempre foi conhecido por sua classe e altivez aliado aos conhecidos olhos azuis que estamparam as telas dos cinemas por mais de cinco décadas. 

“O cavaleiro com arma” é um filme delicioso de acompanhar e feito sob medida para Redford brilhar. O diretor David Lowery aproveita todas as sutilezas, o minimalismo e o meio sorriso de Redford para contar uma história incrível com um estilo clássico de filmar, que emula os grandes filmes dos anos 70. 

Redford está impecável e merecia uma indicação ao Oscar, prêmio, aliás, que ele só venceu uma vez como diretor por “Gente como a gente” (1980). Ele ainda foi indicado como ator por “Golpe de mestre” (1974), e como diretor e pelo filme “Quiz Show - a verdade dos bastidores” (1994). 

A história de Tucker é tão improvável que é até difícil acreditar que tenha sido real. Ele roubou mais de uma centena de bancos em sua carreira de crimes. Tudo sem dar um único tiro - há quem diga que ele sequer tenha disparado a sua arma - e sempre usando a mesma abordagem. Sendo gentil, cavalheiro e sorrindo e acalmando as vítimas impassíveis diante de suas feições idosas e seu termo impecavelmente cortado. 

Redford encarna brilhantemente este tipo sedutor que usa tão bem as poucas palavras que profere da mesma forma que tem uma irresistível arte para roubar bancos. A vida do crime era a maior prazer para Tucker, que aparentemente só se sentia livre na eterna briga de gato e rato com a polícia. Tanto que não conseguiu sossegar na vida pacata com a sua terceira esposa, Jewel (Sissy Spacek). 

Lowery também aproveita o filme para fazer uma homenagem a Redford. Ao ilustrar as cenas de diferentes fugas de Tucker, o diretor usa cenas de filmes antigos do ator, numa jogada brilhante, bem como um belo trabalho de pesquisa. 

O sucesso do filme, que lhe rendeu até uma indicação ao Globo de Ouro de ator, pode ter feito Redford repensar a sua aposentadoria. Pelo menos é o que diz o diretor do filme. Mas se este foi mesmo o seu último trabalho como ator, que belo capítulo final teve a sua cinebiografia. 

Cotação da Corneta: nota 7,5.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Quando a arte esbarra no diletantismo

A professora e o pequeno gênio
Muitas definições já foram escritas sobre a arte. Em geral, o fazer artístico divide-se entre os que advogam por um talento natural as margens de um dom divino e os que afirmam a necessidade do suor para lapidar o talento. “A professora do jardim de infância” ("The kindergarten teacher", no original) é uma história de frustração e de uma luta constante contra o sentimento de vazio e de inoperância por não ser nada daquilo que se almejava. E o que todo aspirante a arte mais almeja é o reconhecimento de seu talento e obra. 

Lisa Spinelli (Maggie Gyllenhall) não tem ambos. Seus poemas são medíocres como a vida que ela acha levar. Ela é uma professora de jardim de infância com uma família tipicamente burguesa que leva uma vida que, para ela, é sufocantemente simples. Lisa é muito boa como professora e mãe, mas a frustração do seu olhar a cada rabisco torto no caderno prova que ela não está satisfeita com a vida que leva. 

As aulas de um curso noturno de poesia servem para remexer a artista dentro dela e, quem sabe, despertar de vez a sua veia natural. Quão frustrante é para ela compreender a constatação de seu professor, Simon (Gael Garcia Bernal), de que há um abismo entre o artista e o diletante, o apreciador da arte. 

Lisa é a diletante. Artista é o seu jovem aluno, de seis ou sete anos. Jimmy Roy (Parker Sevak) parece um “Paterson” (2016) antes de se tornar adulto. Tem um talento natural para fazer poesias com a profundidade que uma criança raramente alcançaria. E quão incrível é a atuação do jovem Parker, que declama os textos profundos com inocência e olhar infantil. 

Jimmy é um talento raro que Lisa quer lapidar, mostrar ao mundo. O problema é que ela coloca suas frustrações a serviço de Jimmy, ao invés de fazê-lo desenvolver-se naturalmente. Assim, canibaliza-o enquanto se perde em mentiras até o melancólico desfecho dessa professora que não pôde apenas incentivar de forma correta o seu aluno, pois queria projetar-se sobre ele e ver alguém da sua órbita ser grande e não medíocre como ela acha que ela e a sua família são. 

Boa parte da força de “A professora do Jardim de infância” está no trabalho de Maggie. É uma de suas melhores atuações. Ela transpõe por cada poro do seu corpo a frustração e o inconformismo de ser Lisa, a mera professora de crianças. O olhar vazio a cada poema rejeitado e visto como medíocre contrasta com o brilho dos seus olhos ao contemplar cada poema de Jimmy. A criança é o seu mundo. O problema é que nada do mundo dela lhe pertence. O que provoca uma espiral de dor e contrariedade quase insuportáveis para ela. 

“A professora do jardim de infância” é baseado num filme original israelense de 2014. Não tenho base para comparação, mas é possível dizer que o trabalho da diretora Sara Colangelo é uma agradável e incômoda experiência sobre a frustração de ser um diletante e nada além disso. Dói. Deve doer mais ainda aos que não convivem bem com isso.

Cotação da Corneta: nota 7,5.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Lars von Trier e sua eterna misoginia

Jack, o assassino, e Verge, o espectador
Lars von Trier acha que não há história que não mereça ser contada. Partindo dessa premissa, o diretor dinamarquês, um dos expoentes do movimento Dogma, caminha pelos lugares mais obscuros da alma em busca do que há de mais podre na humanidade. “A casa que Jack construiu” ("The house that Jack built”, no original), pode ser visto como um resumo de tudo o que é o que tem sido o seu cinema nas últimas décadas. Também são 2h35min de um filme que só reafirmaria a visão de seus críticos sobre o seu comportamento doentiamente misógino e seus flertes com o extremismo. E lembremos que Von Trier já declarou “compreender Hitler”, o que o fez ser expulso de Cannes quando do lançamento de "Melancolia" (2011). 

A casa que Jack construiu”, pode, portanto, ser visto por, no mínimo, dois prismas. Comecemos pelo primeiro. 

O novo filme de Von Trier pode ser encarado como um exercício sobre a maldade sem consequências. Na história, Matt Dillon é Jack, um engenheiro com ambições de ser arquiteto que sonha em construir uma casa tão perfeita que parece sempre impossível de construí-la. Mas Jack também é um serial killer, que em 12 anos matou mais de 60 pessoas sem nunca sequer ter sido pego pela polícia. 

Ao longo do filme, Jack vai desenvolvendo uma teoria numa conversa com uma entidade chamada Verge (Bruno Ganz) sobre o quão artística é a sua vida de crimes. Defende que a arte vem da dor e da maldade enquanto Verge entende a arte como fruto do amor. Esse diálogo de oposições vai mapeando todo o filme a cada ato cada vez mais hediondo de Jack, sempre acompanhado pelo olhar atento, porém, plácido, de Verge, personagem que só no fim entendemos qual é o papel. E é curioso que este personagem tenha sido feito pelo mesmo ator que interpretou Hitler em “A queda” (2004). Difícil crer que foi uma escolha casual. 

A cada assassinato de Jack, Von Trier vai ilustrando como a maldade é banal e como o desespero de cada um é tão solitário e não encontra eco e nenhuma solidariedade. Ele é o Senhor Sofisticação e desenvolve crimes perfeitos contanto com a inoperância da população ao redor e a lentidão das autoridades. 

Ao mesmo tempo, Von Trier desenvolve a tese de que o serial killer é um indivíduo que nasce com a maldade nele e sempre deixa pistas a cada crime. Pois ele quer ser encontrado, descoberto. Existe uma vaidade nessa briga de gato e rato, pois o assassino em algum momento quer ser descoberto para ter a sua “obra de arte” finalmente divulgada e ganhando público e notoriedade.

Ao mesmo tempo, o diretor expõe que nós, enquanto espectadores, adoramos estas histórias e adulamos assassinos. É quando o diretor expõe as imagens de ditadores e assassinos em massa como Hitler, Mussolini e Stalin. 

O filme, porém, acaba escorrendo no fim por uma longa vertente bíblica que pareceu destoar um pouco da proposta inicial. Tivesse se mantido na sutileza das conversas entre Jack e Verge com um desfecho menos longo, ele teria algo melhor a oferecer. 

Mas é impossível enxergar “A casa que Jack construiu” sobre outro prisma. A da misoginia de Von Trier. No filme, Jack conta que assassinou todos os tipos de pessoas, mas é a história de seis mulheres que ele resolve contar para Verge, aquelas que lhe dão um certo prazer. Uma delas, ele considera a sua grande obra de arte, quando trata uma mãe e seus dois filhos pequenos como caça e os solta num descampado apenas para brincar de tiro ao alvo com eles. Mas é a mulher que ele resolve torturar psicologicamente antes de oferecer a ela um fim trágico. 

Von Trier é um conhecido torturador de mulheres e parece não ter nenhum problema em expor isso. Numa passagem do filme, quando Jack está prestes a matar Simple (Riley Keough), nome que por si só é uma enorme agressão e reducionismo à mulher que ele dizia até gostar, o diretor chega a expor um subtexto no roteiro falando da injustiça que é sempre culpar os homens de tudo, enquanto as mulheres são sempre vítimas. Em tempos de #MeToo, denúncias de assédio e um necessário chamado ao protagonismo feminino, Von Trier vem nos dizer que está pouco se lixando para isso. Para que isso se não expor uma necessidade de ser polêmico apenas pela polêmica em algo que nada acrescenta ao filme?

Simple é agredida verbalmente, humilhada e tem a mais terrível e sádica das mortes. E que reverbera durante o filme, pois Jack transforma um dos seus seios numa carteira. 

Mas como eu dizia, Von Trier é um conhecido torturador de mulheres no cinema. Nicole Kidman é humilhada para além do limite em “Dogville” (2003), provocando um enorme incômodo. Chalotte Gainsbourg é igualmente levada para além de todos os limites em “Anticristo” (2009) e nos dois volumes de “Ninfomaniaca” (2013). Björk é igualmente humilhada em “Dançando no Escuro” (2000). A cantora islandesa, inclusive, teve problemas de relacionamento com o diretor. E em “A casa que Jack construiu”, Von Trier expõe suas mulheres ao máximo de dor e horror. Não apenas com Simple ou uma das mulheres sem nome, mas também com a primeira vitima (Uma Thurman), assassinada com um golpe de macaco enquanto o diretor faz questão de expor o enorme buraco na cabeça da personagem causado pela peça do carro. 

Alguns poderiam dizer, e não deixa de ser um argumento válido, que tudo não passa da arte de Von Trier. Que as atrizes continuam topando trabalhar com ele e, no caso de Charlotte, fazem até mais de um filme. Mas quando se trata de deixar de ser algo pontual para virar uma marca, e uma incômoda marca, pois não é um traço de estilo, mas um discurso de ódio imputado em seus trabalhos, torna-se um problema. 

Assim, “A casa que Jack construiu” não acrescenta nada de muito novo à cinebiografia de Von Trier, que segue soltando suas faíscas do estilo-Dogma de filmar, e fazendo suas histórias seguirem o mesmo looping narrativo de trabalhos anteriores. De interessante mesmo só o trabalho de Dilon no papel principal. Se há uma centelha de valor no filme, está no olhar sádico-enfadonho que ele estabeleceu para o seu Jack e no proveito que ele teve das ironias do texto para usar no seu personagem. Mas ainda assim, “A casa que Jack construiu” está longe dos melhores trabalhos de Von Trier. 

Cotação da Corneta: nota 6,5

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

"Creed II" merecia ser mais do que uma cópia de "Rock IV"

O Drago é grande mesmo
“Creed”, o filme de Ryan Coogler lançado em 2015, de certa forma renovou a franquia de Rocky Balboa ao apresentar um novo protagonista e dar prosseguimento à vida do lutador interpretado por Sylvester Stallone, agora no papel de treinador e mentor de Adonis Creed (Michael B. Jordan), filho do ex-campeão e amigo de Rocky, Apollo. 

Tão elogiado, o filme chegou a ter uma surpreendente, mas merecida indicação ao Oscar para Stallone pelo seu papel de um Rocky ainda tentando reencontrar seu papel no mundo e sentindo-se cada vez mais só anos após a morte de sua eterna amada Adrian, interpretado pela atriz Talia Shire em todos os filmes da franquia até a morte da personagem. 

O sucesso de público e crítica do primeiro filme provocou um natural desejo por uma continuação. Não mais com Coogler como diretor, que depois passaria a se dedicar ao elogiado “Pantera Negra” e sua continuação, ainda sem data de lançamento prevista, mas com Steven Caple Jr. “Creed II” é apenas o seu segundo longa-metragem como diretor e é uma cópia quase fiel de “Rock IV”. 

Talvez não seja por acaso que o roteiro de Stallone e Juel Taylor fosse revisitar a história mais “nacionalista” de Rocky para contar a história da continuação da vida de Adonis Creed, agora um campeão mundial em busca de novos desafios e enfrentando mudanças na vida pessoal - a possibilidade de trocar a Filadélfia por Los Angeles, o casamento com a cantora Bianca (Tessa Thompson). O objetivo parece ser atrelar ainda mais a trajetória de Adonis a de Rocky, mostrar ele enfrentando os mesmos desafios e apelar à memória afetiva dos fãs da franquia. Eles viram o confronto de Apollo e Rocky com Ivan Drago (Dolph Lundgren), agora querem ver os filhos se enfrentando. E, convenhamos, na história do esporte, este tipo de narrativa é bastante comum.

Por outro lado, justamente por esse apelo a um mundo que não mais existe nas configurações de 1985, ano do lançamento do quarto filme do pugilista vivido por Stallone, “Creed II” já nasceu um pouco datado. Quando “Rock IV” foi produzido, o mundo vivia os anos finais da Guerra Fria, ainda havia muro de Berlim e a natural polarização entre Estados Unidos e União Soviética. Incontáveis foram os filmes em que os russos eram os vilões e os americanos salvavam o mundo nas mais de quatro décadas de cinema durante aquele período. “Rocky IV” foi só mais um. Naquele filme, Rocky Balboa via o seu amigo Apollo ser assassinado no ringue por Drago e busca uma revanche contra Drago na Rússia, casa do inimigo, para vingar a pátria americana. Tudo com direito a trilha sonora heroica, treinamento heterodoxo e uma clara visão de hostilidade por parte dos soviéticos. Só o Stallone, aliás, encarnou dois heróis de sucesso desta época da Guerra Fria. Além de Rocky, o próprio Rambo, cujo quinto filme tem previsão de lançamento para este ano. 

Naquela época de “Rocky IV” havia um contexto geopolítico, que por mais que fosse maniqueísta, ajudava a criar uma polarização, embora tacanha, de Ocidente x Oriente, EUA x URSS. O contexto hoje é um pouco diferente. Heróis e vilões, se fosse possível ver a política desta forma, estão mais amalgamados do que outrora. Até porque o volume de informação circulada, bem como de fontes, é bem maior, o que impede uma narrativa dominante. Se, por vezes, ficou mais fácil manipular a história – e a indústria de fake News está ai para provar isso – é também mais difícil ser o dono da história e da sua narrativa. E se a Rússia de Putin ainda merece toda a desconfiança, os Estados Unidos de Trump não ficam muito atrás. 

Portanto, levar esse contexto para a história de Creed é empobrecer esta leitura contemporânea, mais diversificada e que se propõe mais moderna para a franquia Rocky Balboa. Lembremos que quando o primeiro Rocky surgiu em 1976, os grandes nomes do boxe eram todos negros. Joe Frazier, Muhammadi Ali, George Foreman, Leon Spinks, Ken Norton e Larry Holmes, todos campeões mundiais dos pesos pesados entre as décadas de 70 e 80 eram negros. Nesse cenário, Rocky era um lutador de sucesso branco - seu apelido era “o garanhão italiano” - num mundo em que os negros davam as cartas tanto dentro quanto fora do ringue. Afinal, Don King era o grande nome organizador de lutas do esporte. 

Na franquia de Rocky, o lugar do negro era, no máximo, o de coadjuvante. Creed surge para corrigir essa trajetória e reafirmar o protagonismo negro nesse esporte ao mesmo tempo em que o cinema e, especialmente, o Oscar eram alvos de críticas pela falta de negros concorrendo aos prêmios. É curioso que uma das últimas falas de Stallone no filme seja virar para Creed e dizer: “Este é o seu momento”. É claro que era o personagem em sua humildade, e Rocky sempre foi pintado como um personagem humilde e iletrado das periferias da Filadélfia, dizendo que Adonis tinha que brilhar como o protagonista máximo daquela história, mas, numa interpretação livre, podemos também dizer que era o momento dessa virada, enquanto Rocky agora é um coadjuvante. Pois esse é também o papel do treinador. 

Da mesma forma, o papel da mulher na franquia de Rocky, que também era de coadjuvante, é absolutamente diferente em Creed. Adrian era uma mulher simples que vivia para o marido e sem grandes ambições a não ser ter uma vida como esposa de Rocky. A Bianca de Creed é uma mulher independente e com uma carreira ascendente como cantora. Ela está longe do papel de mulher que sofre na frente da TV vendo o marido apanhar. Ela entra junto com ele, conduz o marido até o ringue com atitude e desafiando os rivais. 

Além disso, Bianca tem uma deficiência auditiva agora herdada pela filha do casal, que traz a inclusão das pessoas com deficiência dentro da nova proposta da franquia e promete render novas histórias em torno desse tema. 

Por tudo isso que revisitar “Rocky IV”, e olhar mais para o passado que para o presente e futuro, que “Creed II” deixa a desejar como proposta de cinema para além do mero entretenimento. E como entretenimento ele não deixa de ser muito bom, pois emula tudo o que o filme de 1985 tinha. A derrota dramática para Drago no início, o treinamento nada ortodoxo de Creed no deserto lembrando o treinamento na neve de Rocky, a ida à Rússia para a luta final, a hostilidade do público russo, a trilha sonora característica...Tudo é igual ao filme de 85. É ainda há o elemento de “reescrever a história”, visto que o pai de Adonis morreu no ringue para Ivan Drago. 

A questão é que “Creed” apontava para outros caminhos. E o filme de 2015 é daqueles que poderiam figurar em listas dos melhores sobre boxe. E neste ponto, esta ainda jovem franquia se desviou um pouco do que parecia estar se desenhando. 

Talvez o objetivo fosse apenas soltar as faíscas da memória afetiva dos filmes de Rocky. E o quarto é um dos mais emblemáticos. Porém, “Creed II” merecia mais do que ser uma mera cópia de um filme de mais de 30 anos atrás. É um filme que diverte e entretém, mas nada além disso. 

Cotação da Corneta: nota 7.