domingo, 25 de outubro de 2009

Alegoria sobre a intolerância

Diante da vasta produção cinematográfica na área da ficção científica, parecia quase impossível surpreender neste gênero onde Star Wars virou referência pop e “2001 - Uma Odisséia no Espaço” (1968) e “Blade Runner” (1982) são até hoje cultuados. Coube, no entanto, a um diretor estreante, o sul-africano Neill Blomkamp, dar uma renovada no gênero e mostrar quem nem tudo foi feito ainda ou, como certa vez já disse o cantor Lenny Kravitz sobre o rock and roll, “tudo já foi inventado e só nós restam fazer combinações diferentes das mesmas notas musicais”.

Alegoria do preconceito calcada na terra batida, sujeira e podridão de uma favela de sua Johannesburgo natal, “Distrito 9” utiliza a metáfora de uma civilização alienígena que é obrigada a viver por décadas entre nós devido a um problema em sua nave para mostrar como o medo e a intolerância com relação ao diferente são inerentes ao ser humano.

Tudo começa quando os “camarões”, maneira pejorativa como os aliens são chamados, são obrigados a viver numa área isolada dos humanos, que se sentem incomodados com a maneira de como eles consomem o lixo e com aquela nave gigantesca sob suas cabeças. O desconhecido traz o pavor e o confronto só cresce, trazendo de tudo um pouco - violência, corrupção, prostituição - numa área que vai se degradando. Tudo isso faz com que a Multi-Nacional Unida (MNU, na sigla em inglês, espécie de ONU fictícia do filme), organize uma nova área menor do que o Distrito 9 e incomodamente parecida com um campo de concentração para levar os aliens.

A maneira para levá-los não poderia ser mais impositiva. Fazê-los assinar – ou cuspir ou rasgar – um documento que os levará para a nova área, o Distrito 10. O responsável pela árdua e perigosa missão é Wikus Van De Merwe (Sharlto Copley), funcionário fracote e loser da MNU que ganhou a missão por ser marido do chefão do órgão.

É através dele que Blomkamp abordará os temas a que se dispõe neste seu trabalho. Mais do que física, a transformação de Van De Merwe é moral. De típico colonizador que poderia ter estado na linha de frente do apartheid sul-africano, ele passa a sentir na própria pele as conseqüências do que ajudou a criar na sua cegueira fundamentalista.

É aqui que se abre um cenário perfeito para muitos trilharem o fácil caminho da redenção e do filme que passa “uma mensagem” com direito a trilha sonora operística. Blomkamp prefere, contudo, enveredar por outras estradas menos edulcoradas, pois ele sabe muito bem, principalmente por vir da África do Sul, que o problema é muito mais complexo do que o desfecho água com açúcar mais esperança poderiam dar.

Filmado em tom de (falso) documentário e com um profundo realismo que fazem os alienígenas quase críveis, “Distrito 9” é ficção científica com pitadas de drama e enredo de filme de ação. A opção de Blomkamp por filmar com atores desconhecidos trouxe ainda mais veracidade à história, pois o impede de desviar o olhar para uma estrela que aqui não há a não ser a alegórica denúncia da intolerância humana. Nunca houve uma ficção científica tão palpável.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Chiaroscuro no abarrotado Circo

Em meio a onda negra que vai tomando conta das dependências do Circo Voador a cada minuto que passa, ela se destaca. Com um vestido negro para não se distinguir da maioria e sandálias claras e rasteiras, ela se destaca pela simplicidade com que se veste em meio aos exageros de arroubos adolescentes, cópias piratas ávidas por ver e ouvir a original, e os tipos costumeiramente (e divertidamente) esquisitos que quem freqüenta shows de rock há 11 anos já está acostumado a ver.

Ao contrário destes tipos, ela tem a pele aparentemente virgem de tatuagens quaisquer, sejam as declaratórias como a do casal de lésbicas que passa à esquerda ou a da garota de botas até a canela com a panturrilha tomada por um desenho impossível de entender no escuro. Falta o contraste do disco da cantora para iluminar o local e trazer compreensão. Mas tudo isso a menos que o vestido esconda algo além do belo corpo daquela mulher sozinha, porém, não (aparentemente) solitária que se diferencia da massa.

Com um sorriso de Mona Lisa e um olhar de estrela de film noir, ela toma o único copo de cerveja que se permitiu comprar com a sabedoria de quem apreciava um néctar divino. Uma bebida que parece produzida diretamente pelas bacantes e especialmente para ela.

Entre um gole e outro, a casa toca na longa espera uma seqüência de músicas que rádio nenhuma do Rio tem a coragem de tocar. Alternando clássicos e canções novas de altíssima qualidade, o DJ da vez agrada a todos os presentes, convertendo a unanimidade rodriguiana numa sabedoria olímpica, com o perdão da desgastada palavra usada demais nos últimos dias, mas que remete aqui apenas à morada dos deuses.

Com movimentos econômicos, ela não deixa transparecer se está gostando ou não da seleção. Mas sorri com um leve tracejar de sua boca ao observar o casal ao seu lado dançando animadamente. Acompanhando a filha menor de idade, eles deixam transparecer os 40 anos de rock and roll quando a parede sonora de “Highway to hell” do AC/DC singra por todo o Circo Voador.

Com a educação que lhe foi oferecida e aceita por ela, escolhe subir os três degraus que a separam da mais próxima lixeira. Caminhar até lá é como um desfile informal que apenas os mais observadores reparam. O balanço pendular do vestido acompanha o ritmo dos seus cabelos negros simetricamente cortados com os últimos fios atingindo um palmo e meio abaixo do ombro.

Ela observa a noite em que a chuva parece dar uma trégua. Lhe dá o direito ao último gole antes de se desfazer do copo e retorna a um ponto mais estratégico. São 21h30m e o casaco que serviria para o frio é amarrado na sua cintura. É preciso liberdade nos braços para o espetáculo. O calor é denunciado quando suas mãos manuseiam com desenvoltura os cabelos e os prendem deixando o pescoço a mostra. Há 60 anos não haveria nada mais erótico.

Cinco minutos se passam. O show está atrasado e ela resolve desfilar por outras áreas. Flutua sem dificuldade entre a multidão que abarrota a casa e da mesma maneira que surgiu, desaparece.

No palco, Pitty anuncia com o clichê característico do rock and roll e a infâmia tipicamente nacional: “Welcome to hell. To Hell de Janeiro”. Sem concorrência, ela brilha sozinha no acanhado palco do Circo onde em 1h40m despeja sucessos dos seus dois primeiros e bons discos, “Admirável Chip Novo” (2003) e “Anacrônico” (2005), e apresenta as canções do novo álbum, o terceiro de estúdio, “Chiaroscuro”, lançado neste ano.

Um desavisado que entrasse ali durante o show acharia que é um espetáculo apenas de sucessos. Pitty tem fãs fieis e que a surpreendem cantando a plenos pulmões até mesmo as canções que acabaram de sair do forno. E isso não se resume a apenas “Me Adora”, música que já está tocando em todo lugar que se anda. Feliz, ela conta com humildade que a banda ainda está aprendendo a tocar as canções novas, porque os arranjos têm que ser por questões tecnológicas diferentes do que as pessoas encontram no disco. Neste primeiro teste, a cantora é aprovada sem qualquer problema.

Se houve erro, pelo contrário, foi em uma canção antiga. Algo quase imperceptível em “Teto de Vidro”. Além da última música do show, “Pulsos”, quando a excessiva empolgação do público a fez esquecer a letra, parar, continuar, numa zona que até desligou a guitarra de Martin Mendonça e a fez chamar a atenção do povo, que estava realmente passando dos limites.

Tudo natural para quem sabe tocar o coração dos adolescentes e românticos em geral em cheio com letras como as de “Na Sua Estante” e “Equalize”. Pitty é uma ótima compositora de rock. Ao vivo suas músicas reverberam ainda mais. Suas canções mais pesadas ganham ainda mais potência. É o caso, por exemplo, da ótima “Memórias”.

Entre uma música e outra, Pitty procura interagir com os fãs. E não deixa de atender ninguém. Nem o engraçadinho que a chama de gostosa e recebe uma bem humorada resposta: “Eu já disse que só se pode chamar de gostosa quem você comeu. Não é? As aparências enganam”, diz, para delírio da plateia. Diante de ousada insistência e o pedido para “prová-la”, a devolução é de primeira num belo voleio: “Ah, entra na fila. Tá achando que é assim?”.

Mas Pitty não está ali para se fazer de gostosa. Com seu vestido preto e branco, claro e escuro, luz e sombra como na técnica de Leonardo da Vinci que inspira o nome do disco, tênis brancos e meias escuras, nem se veste como tal. Pitty se impõe e é adorada por sua música apenas. Foi através dela que ela se colocou como um nome importante do rock nacional neste século XXI em meio a tanta tralha que povoa rádios, TVs e outros meios.

Por isso, até os céus dão uma trégua para ela se apresentar. Coincidência ou não, quando já passa de 1h, cortesia do horário de verão, a chuva volta a molhar a Lapa. Pitty já foi embora. A musa misteriosa também. Mas a alma já está lavada.
Abaixo, alguns momentos do show.
Pitty - "Na Estante"

Pitty - "Equalize"

Pitty - "Me Adora"
Pitty - "Pulsos"

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Sem o povo não há revolução

Sete meses depois do lançamento de “Che – The Argentine”, chega aos cinemas a parte final do épico de Steven Soderbergh, “Che 2 - Guerrilla”, que conta os últimos momentos da vida do revolucionário Ernesto Che Guevara (Benício Del Toro). Neste capítulo final de um filme de 4h30m dividido em dois, a revolução cubana já foi feita e Fidel Castro se encontra devidamente alojado no El Nacional tomando champagne. Che não está ao seu lado, pois resolve levar a revolução para a Bolívia, sua terceira tentativa após a vitória de Cuba e o fracasso retumbante no Congo.

Soderbergh dedica boa parte deste filme a contar o último ano de vida de Che Guevara, mostrando os erros cometidos pelo líder que queria levar a revolução para todo o continente, mas esqueceu de perguntar se todos queriam esse levante comunista.

Na Bolívia, Che não conseguiu o mais importante e o que foi fundamental em sua vitória cubana: o apoio do povo. Se em Cuba, ele fora ajudado e derrubar Fulgêncio Baptista e podia facilmente se misturar à multidão, que por sua vez o protegia, na Bolívia, Che, seus revolucionários cubanos e companheiros bolivianos não conseguiram arregimentar a massa.

Acabou vencido pelo instrumento de propaganda maior feito pelo então presidente René Barrientos (Joaquim de Almeida) e pelo aparato militar dos Estados Unidos, que não estavam nem um pouco interessados em ver um novo país tomado pelo comunismo.

Mas o fundamental é que não se faz revolução sem o povo. E a propaganda via imprensa entre a população boliviana foi eficaz transformando os revolucionários em ateus sanguinários (só faltou espalharem que eram comedores de crianças), embora a figura de Che Guevara já tivesse aquele ar mítico que as versões e as histórias criaram sob um homem que era bem menos "heróico" do que o que diziam. Mas Che ainda conseguia magnetizar com seu ideal alguns menos afortunados, como o soldado que tinha que vigia-lo e quase foi, digamos, seduzido.

Sem o apoio popular, Che e seus aliados foram antes da atuação do exército boliviano consumidos pela floresta, tiveram problemas de saúde – o próprio líder teve uma séria crise de asma – e sucumbiram quando já não tinham sequer condições de mais nada e só lhes restava mesmo morrer pela revolução.

Este, aliás, teria sido o último ato de Che antes de ser fuzilado por Mario Terán, um sargento boliviano, depois de preso. Quando perguntado se ele tinha noção de sua imortalidade, Che disse apenas que pensava na imortalidade da revolução. “Você está apenas matando um homem”, teria dito, segundo Terán. Che, no entanto, acabou ganhando mais relevância como o passar das décadas como ícone pop a ponto de a camisa com a sua famosa foto feita por Alberto Korda ser vendida junto com camisetas de Barack Obama numa loja de Londres como você pode ver na imagem deste post. A dita revolução morreu nos fracassos e erros de Fidel Castro. Entre eles, o de permanecer mais de 50 anos no poder.

Esta cena final, porém, não é mostrado no trabalho de Soderbergh. Nada que faça falta, pois o diretor vinha mostrando desde o início com a ajuda de Benício Del Toro um sóbrio equilíbrio entre o mito e o ódio criado em torno do líder revolucionário.


Não cabia a ele, e o diretor deixou bem claro o seu desejo em entrevistas, fazer juízos sobre Che Guevara. Era apenas uma história que ele se dedicou a contar com a ajuda de Del Toro. E “Guerrilla”, tal qual um “Além da linha vermelha” (1998) guerrilheiro – mas sem a chatice do trabalho de Terrence Malick – é apenas a história de um homem que vai se definhando pela sua causa. São as últimas horas de um sonho que vira mito para alguns e páginas de livro para outros. Entre eles, apenas o bom cinema de Soderbergh e a camisa já quase com ares de kitsch.

O melhor de Tarantino

“Well, Utivich. I think I made my masterpiece”. Quando o figuraça tenente Aldo “The Apache” Raine, espetacularmente interpretado por Brad Pitt, diz estas palavras com o seu sotaque de caipira do Tennessee parece o próprio Quentin Tarantino pensando consigo mesmo diante da mesa de edição. Eu não ficaria surpreso se após finalizar “Bastardos Inglórios”, Tarantino virasse para o espelho e dissesse, “bem, acho que fiz a minha obra-prima”. Pois foi isso que ele criou.

“Bastardos Inglórios” é o melhor filme de Tarantino. Ou o mais maduro como alguns já disseram. E quando sabemos que o diretor é o responsável por obras como “Cães de Aluguel” (1992), “Pulp Fiction” (1994) e os dois volumes de Kill Bill (2003 e 2004), tem-se a noção do peso destas palavras.

Responsável por criar alguns dos personagens mais interessantes do cinema como o Mr. Blonde (Michael Madsen) e o Mr. White (Harvey Keitel) de “Cães de Aluguel”, Vicent Vega (John Travolta), de “Pulp Fiction”, ou a Noiva (Uma Thurman) e Elle Dryver (Daryl Hanna), de “Kill Bill”, Tarantino junta a este time e outros não citados personagens que já estão entre os mais clássicos de sua curta, mas para lá de interessante cinematografia.

Além do já citado Aldo Raine, o diretor nos presenteia com o coronel Hans Landa, caçador de judeus em nome dos nazistas vivido pelo até então desconhecido ator austríaco Christoph Waltz. O papel lhe rendeu um prêmio de melhor ator no Festival de Cannes deste ano e deu novo impulso em sua carreira que estava muito focada em trabalhos de TV. Atualmente, Waltz, de 53 anos, filma “The Green Hornet”, novo trabalho de Michel Gondry, e vem recebendo outros convites.

“Bastardos Inglórios” é o que de melhor Tarantino já fez na roupagem que já conhecemos do diretor: sua eterna inspiração em Sérgio Leone, o liquidificador de citações pop e cinematográficas (e dessa vez ele está citando até ele mesmo), a violência usada de forma kitsch, seu fetiche pelos pés (aqui sai a Uma Thurman de “Kill Bill” e entra a lindíssima Diane Kruger, que vive a agente-dupla Bridget von Hammersmark) e os diálogos concisos do seu texto.

Como pano de fundo para a sua nova criação, Tarantino usa a França ocupada pelos nazistas durante a II Guerra Mundial. Nela, Landa é um eficientíssimo caçador de judeus a quem compara a ratos numa tensa cena inicial quebrada apenas por momentos bizarros como o desfrutar de um copo de leite pelo oficial alemão. Seu único objetivo é seguir o ideal de Adolf Hitler (Martin Wuttke): matá-los. E, citando o Wolverine, ele é o melhor no que faz dentro do Partido Nazista.

Seu contraponto é Raine, soldado judeu do exército americano que lidera uma tropa secreta, os Bastardos, toda formada por judeus cujo único objetivo é matar os nazistas com requintes de crueldade. Afinal, como Raine deixa claro, todo soldado sob o seu comando tem uma dívida com ele. É preciso matar pelo menos 100 nazistas e lhes trazer os seus escalpos. “And I want my scalps”, frisa o tenente.

Essa disputa entre Landa e Raine, que só vão realmente ficar frente a frente na parte final do filme, é entremeada por uma trama paralela de Shosanna (Mélanie Laurent), francesa dona de um cinema e filha de judeus que viu a família ser fuzilada por Landa e seus soldados e só foi poupada por um momento de clemência de Landa que não achou que seria divertido mata-la à distância enquanto corria. Afinal, o coronel se delicia com o sofrimento judeu.

Shosanna planeja sua vingança para o dia da grande festa nazista, a estreia do mais novo filme patrocinado pelo Ministério da Propaganda de Joseph Goebbels (Sylvester Groth) que contaria com a presença do próprio Hitler. Uma chance de ouro de ataque para os Bastardos que poderia naquela altura significar o fim da guerra. E a infiltração deles no cinema rende uma cena das mais hilárias.

O desfecho não poderia ser mais "tarantinico" e até surpreende quem esperava algo na linha "batalha final". Com “Bastardos Inglórios”, o diretor atinge o seu ponto mais alto. O filme é a sua joia mais bem lapidada e é um prazer admirá-la dentro do cinema.

domingo, 4 de outubro de 2009

Por que não tenho motivos para sorrir?


Entre as diversas pessoas com quem já conversei que pensam de alguma forma o que se pode fazer para o esporte, há dois posicionamentos em relação à Olimpíada. Uns acham que ela é um instrumento que alavanca negócios, empregos, etc... que tem o poder de revitalizar uma cidade. E citam o exemplo de Barcelona, que é realmente espetacular, mas que não conheci na sua fase degradada.

Outro grupo no qual eu me incluo pensa numa relação diametralmente oposta. É preciso primeiro tornar a cidade capaz e funcionando para os seus cidadãos para aí sim poder pleitear a realização dos Jogos. Isso inclui serviços básicos e mínimos de transporte, saúde, educação e segurança. Além de uma política esportiva séria. Coisa, aliás, que o Brasil não tem, pois vive de fenômenos que surgem aqui e ali. Londres, por exemplo, está apta a receber as Olimpíadas, o que fará em 2012, assim como Madri, injustamente rejeitada pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) para 2016.

É por conta destes argumentos que sempre fui contra o Rio sediar uma Olimpíada e sou contra o Brasil sediar uma Copa do Mundo. Falando apenas da cidade em que conheço e da Olimpíada mais especificamente, o Rio tem uma infraestrutura precária de transporte e não é uma cidade segura. As escolas têm ensino sofrível e quem não tem plano de saúde tem que ter muita fé em Deus e rezar antes de seguir para um hospital. Embora para alguns não pareça, é com tristeza que escrevo isso. Mas é tudo o que leio nos jornais ou vejo com meus próprios olhos.

Mas com a escolha pró-Rio de Janeiro já feita – para a alegria da indústria do oba-oba – estes são argumentos que precisam ser neste momento deixados de lado para analisarmos sobre o que esperar daqui para frente.

Infelizmente eu não espero muita coisa. Primeiro porque quem está a frente do projeto olímpico é o presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), Carlos Arthur Nuzman. A euforia cívico-olímpica lamentavelmente fez muita gente esquecer que Nuzman é o mesmo dirigente que está há 14 anos no poder e que exatamente há um ano convocou uma eleição as pressas, sem aviso prévio e sem oposição, na calada da noite e nos porões de um hotel no Rio para ser reeleito por mais quatro anos. Homenageado por seus colegas que comandam outras Confederações – menos os que não o apóiam e, por isso, reclamam com a falta de verbas – foi reeleito por aclamação para ficar no cargo até 2012. Ou melhor, pelo menos até 2012.

O mesmo Nuzman que já declarou também no ano passado em entrevista à ESPN Brasil ser “contra a limitação de mandato” e que sua gestão no vôlei só deu certo porque ele praticamente não tinha oposição, por isso deixou a CBV como campeão olímpico, é quem vai comandar o desde já poderoso Comitê Rio-2016. O órgão terá logo de saída à disposição um fundo de R$ 1,2 bilhão para uma série de ações iniciais, entre elas uma campanha interna sobre os Jogos e o lançamento de um site sobre o Rio-2016. Nuzman também foi presidente do Comitê do Pan-Americano de 2007, competição de cujos problemas falarei mais adiante.

Em sua dinastia, pouco se sabe o que Nuzman fez pelo esporte brasileiro. Ainda que ele não seja plenamente responsável, pois isso é responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal também, não se notou muito incentivo ao esporte de base ou ao esporte olímpico nos últimos anos.

O resultado final de sua administração até aqui? Uma atuação pífia do esporte olímpico brasileiro. De Atlanta-96 até Pequim-2008, o desempenho do Brasil sempre foi pífio para o tamanho do país. Em Atlanta foram 15 medalhas, sendo três de ouro e a modesta 25ª posição. Mas ele tinha apenas um ano de mandato. Não pode ser cobrado por isso. Veio Sidney e não se ouviu o hino nacional. Foram conquistadas 12 medalhas e o Brasil ficou na 52ª posição. Veio Atenas e o número de medalhas caiu para 10, mas como o Brasil conquistou cinco ouros ficou na 16ª posição. Em Pequim, o Brasil voltou a conquistar apenas três ouros entre 15 medalhas e ficou na 23ª posição.

Nas duas últimas Olimpíadas o discurso do COB veio através da manipulação dos números. Em Atenas se disse que foi o melhor desempenho da história porque foram conquistados cinco ouros. Quatro anos depois, o discurso era de que foi igualado o melhor desempenho da história porque foram conquistadas 15 medalhas como em Atlanta. Falta critério, mas o discurso é malabarístico.

Para o tamanho do país e para o potencial esportivo que ele tem, no entanto, é inaceitável um número inferior a algo entre 30 e 40 medalhas numa Olimpíada, e uma colocação entre os 10 primeiros países do mundo. É o mínimo que se exige para um país de dimensões continentais. Não é necessário chegar aos “co-irmãos” de características semelhantes como Estados Unidos (110 medalhas sendo 36 de ouro em Pequim), China (100 medalhas e 52 de ouro) e Rússia (72 medalhas sendo 23 de ouro). Mas é impressionante ficar atrás de Jamaica, Quênia, Etiópia ou Bielorrússia, países que não tem a importância e o volume de dinheiro para investimento em esporte do país.

O retrato do esporte olímpico brasileiro foi visto neste ano. Recentemente o Brasil disputou três mundiais (atletismo, judô e natação) e voltou para casa com apenas duas medalhas do novo fenômeno nacional, o nadador César Cielo, que, por acaso, treina nos Estados Unidos e cujos pais reclamaram na última Olimpíada da falta de apoio da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA).

Assim como todo o Brasil, a natação brasileira, cuja Confederação é presidida por Coaracy Nunes Filho desde 1988, tem sempre um desempenho abaixo do que deveria se esperar. Coaracy, aliás, não é o único presidente de Confederação a se eternizar no poder. Ricardo Teixeira comanda a CBF desde 1989 e já está garantido até 2014, ano da Copa do Mundo. Gerasime Bosikis ficou 12 anos no poder da Confederação Brasaileira de Basquete (CBB) entre 1997 e 2009, período em que não viu o basquete masculino disputar uma Olimpíada, até ceder lugar a Carlos Nunes, que prometeu manter a alternância de poder quando foi eleito.

No Atletismo, Roberto Gesta de Melo está há 22 anos no poder. Além dos resultados ruins do seu esporte, considerado o mais nobre da Olimpíada, agora ele convive com uma série de escândalos de doping nas mais diferentes modalidades. O pior deles envolveu o técnico Jayme Netto, um dos principais do país, que confessou ter ministrado doses de eritropoietina a seus atletas, todos suspensos antes do Mundial de Atletismo de Berlim.

Sem renovação, sem novas ideias e com administrações visivelmente ruins, como pode o esporte brasileiro dar certo? Mas eu ainda não falei do Pan-2007, do qual trato no próximo post.

Por que não tenho motivos para sorrir? - II

Há quem argumente que o Pan-Americano de 2007 deu o know-how ao Brasil para sediar uma Olimpíada porque o Pan de 2007 deu certo. Deu certo para quem, cara pálida? O Pan custou ao erário cerca de R$ 3,5 bilhões contra uma previsão inicial de R$ 800 milhões. Ou seja, se gastou mais de 400% além do que foi previsto.

O relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) é estarrecedor (quem quiser ler o arquivo em PDF pode clicar aqui). Ele aponta a “existência de superfaturamento – efetivo ou potencial – em 17 dos 22 itens selecionados por amostragem”. Só o Estádio Olímpico João Havelange, o Engenhão, custou cerca de R$ 100 milhões a mais do que o previsto. A prefeitura do Rio gastou R$ 400 milhões para depois entregá-lo ao Botafogo que paga R$ 400 mil mensais. Para a Olimpíada, o estádio, que tem capacidade para 45 mil pessoas precisará ser ampliado para 60 mil pessoas, o mínimo exigido pelo COI para poder receber as provas de atletismo.

O Rio que se candidatou às Olimpíadas de 2004 e 2012, sabia que receberia o Pan de 2007 e continuava sonhando com uma Olimpíada não se planejou para recebê-la. Por isso, o hoje subutilizado Parque Aquático Maria Lenk não serve para as competições de natação. E ainda sofrerá reformas para abrigar as competições de pólo aquático e saltos ornamentais. A cidade terá que construir um novo espaço para a natação com espaço para 18 mil pessoas.

A Arena Multiuso, hoje HSBC Arena, espaço que abriga shows, também não serve para o que foi planejada no Pan, as competições de basquete. Um outro espaço será construído na área do autódromo, que, por sinal, concentrará boa parte das competições, todas com equipamentos novinhos em folha. O automobilismo carioca? Já era. Existe a promessa de construção de um novo autódromo em Deodoro. Alguém acredita que isso aconteça? Eu só acredito vendo.

Na cidade, as promessas feitas para 2007 foram renovadas para 2016. Despoluição da Baía de Guanabara, saneamento das Lagoas Rodrigo de Freitas, da Barra e de Jacarepaguá, corredores de ônibus e linhas de metrô. A estas surgiram novas promessas como a revitalização da zona portuária.

Como acreditar que agora tudo será feito se os que cuidam do Rio-2016 foram os mesmos do Pan-2007? O que poderia me fazer acreditar que agora será diferente, que haverá transparência e lisura com os gastos públicos para evitar que haja superfaturamento em mão de obra e até na compra de furadeiras, como apontou o TCU?

A ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, disse logo após a vitória carioca que uma comissão especial será criada dentro da Controladoria Geral da União (CGU) para acompanhar a aplicação dos recursos e dar transparência aos gastos com as Olimpíadas. Na avaliação dela, o Brasil “aprendeu muito” com o Pan e, portanto, fará uma prestação de contas “mais transparente” durante as Olimpíadas.

É um bom sinal, mas há dois problemas. A ministra não tem uma eleição garantida no ano que vem, portanto seria necessário o comprometimento de outros postulantes a vaga do presidente Lula neste sentido. Além disso, como acreditar num governo que vem frequentemente criticando o trabalho de investigação do TCU por sugerir a paralisação de obras do PAC com suspeitas de irregularidades? Seria preciso um sinal mais claro do que uma declaração das boas intenções da ministra de que fará uma Olimpíada realmente transparente.

Agora o prefeito Eduardo Paes diz em entrevista ao Globo que vai criar um portal chamado “Transparência Olímpica” já a partir de quinta-feira que promete lançar na internet tudo o que for gasto público referente à Olimpíada. O prefeito também diz que fará as Olimpíadas de maneira adequada, impedindo que as contas estourem como no Pan. É um outro bom sinal que espero sinceramente que seja colocado em prática pelo prefeito e que o portal seja constantemente atualizado.

A transparência total foi cobrada pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) em entrevista à ESPN Brasil no dia da vitória da candidatura carioca. Eu também penso que esta é uma medida que deveria ser adotada a partir do primeiro prego comprado com a verba olímpica.

Miro, por sua vez, tenta criar uma CPI Mista para investigar gastos no esporte brasileiro. Ele chegou a conseguir as assinaturas necessárias para a criação da comissão, mas alguns deputados e senadores consideraram que ela seria um problema para a candidatura brasileira aos Jogos Olímpicos e retiraram as assinaturas, enterrando, pelo menos temporariamente, a investigação. Um sinal que transparência e lisura ainda é uma medalha longe de ser conquistada pelo Brasil.

Se por um lado as declarações do prefeito e da ministra apontam para a necessidade de se dar um (novo) voto de confiança, a história faz com que seja necessário inverter a lógica. Este blogueiro precisa ser convencido com atos e não mais com palavras daqui até 2016. Se realmente o Rio se transformar para melhor, mas sem que seja a qualquer custo, terei o maior prazer em dizer que estava errado, até porque eu vivo e trabalho nesta cidade. Porém entre o sonho de Barcelona e o pesadelo de Atenas, tendo a acreditar, por conhecer o Brasil, que o Rio está mais perto da Grécia do que da Espanha. É por isso que eu ainda não tenho motivos para sorrir com a vitória olímpica.