domingo, 31 de maio de 2009

Minúcias da mulher gostosa

Enclausurado numa caixa climatizada que leva e trás diariamente trabalhadores, estudantes e todo o tipo de gente entre uma cidade e outra, há pouco espaço para as sensações mundanas. Lá fora o calor escaldante se reflete no suor do homem que tira o paletó e revela a camisa branca e a testa molhadas de suor e preocupação e no fagueiro vestido da loura que finge não perceber os rostos que se entortam em busca de revelações um pouco mais acima de suas coxas ou além do generoso decote.

No ônibus, uma suave fragrância invade o clima quase politicamente correto. Temperatura a vinte e poucos graus e um espaço absolutamente inodoro. O perfume tem endereço certo. O banco ao lado, de um azul fortemente escuro, é banhado pelo grená do vestido daquela morena de rabo-de-cavalo bem ao estilo dos anos 90 do século passado e feições enigmáticas, cujos olhos escondiam-se sob delicados óculos escuros. Tudo nela esbanja leveza. É uma bailarina perto de ogros e eu sou toda a sua plateia.

O sapato é comportado. Sem saltos e escondendo os dedos dos pés. Se há alguém presente com este tipo de tara, estará decepcionado com ela. O vestido na altura do joelho ressaltaria uma mulher comportada para trabalhar se no seu tronco não abrisse um imenso V de vitória para os amantes da oitava arte (já que já havia sete pré-determinadas antes mesmo do meu nascimento): a do corpo feminino.

Os seios não são fartos, mas as fendas em sua vestimenta, verdadeiros Grand Canyons da luxúria, revelam uma mulher moldada para o paraíso. Uma mulher sem a mínima necessidade de um photoshop, programa que se sentiria inútil se pudesse contemplar tamanha beleza.

Em suas mãos, o símbolo máximo da mulher gostosa. Quem pensa que a mulher gostosa bebe cerveja nos bares ou vinho nos restaurantes está enganado. Quem pensa que a mulher gostosa degusta mojitos nos points da moda ou o cosmopolitan nas boates do momento se banha na inocência ou é levado pela propaganda. A bebida da mulher gostosa é, pura e simplesmente, a Coca-Cola.

Mas não naquelas garrafas sujas e mal ajambradas que os machos gostam de pegar e beber no gargalo para mostrar a coragem de um cromossomo XY que desaparece ao mero sinal de uma ratazana. Não. A mulher gostosa bebe Coca-Cola em lata. E com canudinho.

E na sua mão a lata sequer sua paralisada pelo privilégio de ser contemplada pelos olhos que agora se revelam libertos daquelas lentes escuras. O rebentar da lata que se abre quebra o silêncio impetrado pelo sinal vermelho que provocara o imperativo descansar do motor do ônibus e jorra o ar ligeiramente gelado causando a mistura que provoca pequenas borbulhas dando um novo sabor ao refrigerante.

Antes de se deliciar com o doce que ela se permite naquele instante, a mulher gostosa tem ainda um último ato. Uma última cena nessa peça teatral, nesse Shakespeare urbano.

Ela puxa levemente o vestido e revela parte de suas coxas moldadas nas melhores academias. Aquelas em que os professores regozijam-se de estarem criando o ser humano perfeito diante do espelho vazio, mas preparados para as mais árduas e brutais batalhas sexuais. Ali, onde muitos homens sonhariam estar, ela deposita a lata que sofre um verdadeiro choque térmico.

É quando a mulher gostosa, com o cuidado para não estragar as unhas recém-pintadas de vermelho, se dá ao trabalho de rasgar o papel que cobre o canudo de plástico, essa interface que refrescará o seu corpo com o néctar moderno. Ela deposita, em movimentos milimétricos, o canudo dentro da lata. Leva-o a boca de traços finos e se permite como primeiro saborear nada menos do que dois goles.

Revigorada por aquele pequeno frescor, ela busca o papel que encobria o canudo. Amassa-o até o menor tamanho possível para aquele corpo que ainda assim tem um mínimo de densidade. Curva-se como jamais se curvaria para qualquer autoridade máxima do maior dos impérios e encerra o seu monólogo shakespeariano deixando o papel cair tragicamente, sob o peso de mil trovões, no chão do ônibus.

A deusa era humana. Lamentavelmente humana.

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Moral da história: Não adianta ser gostosa se não se tem consciência ecológica.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O novo velho Wong Kar Wai

Wong Kar Wai não é um cineasta de fácil digestão como provam, para ficar em apenas dois dos seus mais recentes trabalhos, filmes como “2046” (2004) e “Um beijo roubado” (2007), sua primeira incursão no cinema americano. Mesmo um filme de samurais e espadachins não é apenas um filme de guerreiros e a sua forma de morrer honradamente.

Única incursão de Kar Wai no mundo das artes marciais, “Cinzas do Passado” (1994) voltou aos cinemas na sua versão redux com algumas mudanças nas cenas. O filme conta a história dos encontros e desencontros de quatro casais em meio a duelos de espada no melhor estilo chinês, com aqueles combates de um homem contra 500, mares sendo levantados apenas com o passar da espada e todas aquelas mentiras que a gente que gosta desse tipo de filme adora ver.

Mas como eu disse o trabalho de Kar Wai nem sempre é simples. Em “Cinzas do Passado”, Ou-Yang Feng (Leslie Cheung) vive no deserto da China antiga trabalhando como intermediários entre espadachins e pessoas que encomendam assassinatos. A vida de eremita foi uma decisão tomada após escolhas equivocadas em outros tempos. Escolhas que poderiam ser esquecidas se ele tivesse tomado uma espécie de vinho mágico levado pelo seu amigo, Huang Yao-Shi (Tony Leung Ka Fai), em sua visita anual, cujo motivo é explicado com o desenrolar da história.

Ao invés disso, é Yao-Shi que toma o vinho e, bêbado, acaba prometendo se casar com a irmã de Mu-Rong Yin (Brigitte Lin), Mu-Rong Yang. Acontece que Yin e Yang são a mesma pessoa.

Ao mesmo tempo, Feng contrata um espadachim que está ficando cego, vivido por Tony Leung Chiu Wai, para dar conta de um bando de ladrões da aldeia próxima a sua casa. O espadachim falha, mas surge uma nova oportunidade com um jovem espadachim, Hung Chi (Jacky Cheung).

Ele dá conta do recado, mas percebe que em sua missão se tornava cada vez mais uma figura seca e sem vida. Um espelho de Feng. Assim, resolve dar uma virada em sua vida, o que causa a reação adversa de Feng, que tenta rever os erros do passado, mas percebe já ser tarde demais para corrigi-los.

“Cinzas do Passado” é um filme de espadachins com o toque de Kar Wai. É o diretor usando os “recursos” do "tradicional" cinema chinês para uma reflexão maior. Por isso ele pode até guardar semelhanças com “2046” ou mesmo “Um Beijo Roubado”. É curioso, por outro lado, ver o diretor em um trabalho tão diferente da sua filmografia usual. Por isso que vale a pena assistir ao filme.

domingo, 24 de maio de 2009

Traídos pelo amor

“Desejo e Perigo” tem parentesco direto com “A Espiã” (2006) e a intensidade claustrofóbica de um “A vida dos outros” (2006). Novo trabalho do diretor taiwanês Ang Lee, de “O Segredo de Brockeback Mountain” (2005) e “Hulk” (2003), seu filme se assemelha ao longa de Paul Verhoeven no enredo de uma agente infiltrada que tenta seduzir o algoz de uma campanha militar e acaba por ele também se envolvendo. Do trabalho de Florian Henckel von Donnersmarck, Ang Lee guarda a tensão com que constrói suas cenas, sempre deixando no ar que seus personagens sabem mais do que dizem e veem dos dois lados.

E esse clima de suspense Lee cria com precisão hollywoodiana, com direito a trilha sonora impactante/intermitente que eleva em dois tons a respiração do telespectador.

Filme que ficou mais conhecido durante a sua polêmica exibição no festival de Veneza de 2007 por suas ardentes cenas de sexo, “Desejo e Perigo” conta a história da jovem Wong Chia Chi (Wei Tang), recrutada na escola pelo idealista Kuang Yu Min (Lee-Ho Wang) com um único objetivo: seduzir o senhor Yee (Tony Leung Chiu Wai) e levá-lo para o covil do leão onde o que deveria ser uma noite de luxuriosa dedicação ao adultério se transformaria numa sangrenta e patriótica morte.

Estamos na China em meio a Segunda Guerra Mundial e um colaboracionista da opressão japonesa, que reduz o povo chinês em geral a vermes que esmolam comida, vivem em condições subumanas e são obrigados a renegar sua cultura e aprender a língua dominante, é visto como um inimigo traidor.

Insatisfeitos, tomados pela fúria juvenil, Kuang e seus companheiros planejam uma vingança. Um ato terrorista-patriótico em nome e pela libertação da China. O plano grandioso, ousado e arriscado diante da implacável máquina de vigilância do Estado só não contava com o imponderável. O poder de um filete mínimo de amor e sexo sob um corpo e uma alma ávidos e naturalmente carentes.

A vida de Wei Tang é desde muito cedo dedicada a esta vingança que nunca foi dela, pois seus único desejo era fazer teatro. Por que ela terá entrado nesse plano? A troco de quê? Um plano pelo qual ela deu inclusive a própria virgindade, perdida com um qualquer mais experiente porque já fizera um pouco de tudo com prostitutas.

A resposta está em Kuang, jovem pelo qual ela sentiu uma atração imediata, por sua paixão e idealismo, mas que não foi homem suficiente quando deveria ter sido.

“Você deveria ter feito isso há três anos”, sentenciou ela, seca e asperamente implacável quando finalmente beijada por ele.

Agora já era tarde. Wei Tang, sob o disfarce da pequena burguesa Mak Tai Tai, estava completamente inebriada pelo amor de Yee, pela selvageria com que era tratada na cama, sempre explorando cada vez mais, indo até o limite ou além do limite que eles achavam que tinham chegado. O sabor é de uma maçã proibida no paraíso. A sensação é de uma cobra que rasteja pela corrente sanguínea para inocular o seu veneno no coração do alvo estrangulando-a de paixão, levando-a a aniquilação.

Céu e inferno estão juntos agora. Dão-se o diabólico abraço que engalfinha mais do que a vida de Wei Tang ou a honra de Yee, mas também condena a hesitação dos conspiradores. Num momento de decisão não se pode falhar. Seja na hora do ato político ou do beijo que pode transformar o amanhã em tragédia. No fundo, desejo e perigo caminham juntos em uma ponte velha sob o abismo.

domingo, 17 de maio de 2009

Um leigo na USS Enterprise

Nunca fui um trekkie. As imagens do capitão Kirk e de Spock são vagas na minha mente. Personagens de um outro filme de ficção científica que eu não acompanhava. Preferia Star Wars. Por isso fui ao cinema para ver “Star Trek” sem qualquer imagem do passado e como um leigo que nada entende o que está se passando e vê tudo como novidade.

E nada melhor para alguém com este “perfil” do que acompanhar um, para roubar uma expressão que li outro dia numa crítica da Isabela Boscov, da Veja, “filme de origem”. É o que J.J. Abrams, esse midas do cinema (e da TV) atual resolveu fazer ao aceitar o desafio de dirigir o 12º filme de uma das séries mais cultuadas da história da TV e do cinema americanos.

Não sei o que pensam os fãs da série, principalmente diante da destruição de Vulcano, quase um ato iconoclástico pelo que percebi, mas para os leigos “Star Trek” é um ótimo filme. Nele acompanhamos como Kirk (William Shatner na série original e hoje vivido por Chris Pine) e Spock (Leonard Nimoy na série original, que faz uma participação para lá de especial neste filme, e hoje vivido por Zachary Quinto) se tornaram os personagens cultuados que são.

Vemos um jovem Kirk lidando com sua hiperatividade, sendo um gênio passional que se mete em encrencas por causa de mulheres e mostra extrema autoconfiança. Acompanhamos o frio e matemático Spock tendo problemas na escola e resolvendo da pior maneira por sofrer preconceito por ser filho de pai vulcano e mãe terráquea. E mostrando exatamente o conflito entre esses dois mundos na sua mente. Acompanhamos a formação da personalidade deles enquanto entram, por diferentes meios, bem apropriados a cada um, naquela que se tornaria a lendária USS Enterprise para “viajarem onde nenhum homem jamais esteve”.

Enquanto tudo isso acontece, se desenrola uma trama básica de um vilão, Nero, vivido por Eric Bana, querendo destruir os dois mundos que ele considera os responsáveis pela destruição de Romulan 120 anos a frente do tempo em que “Star Trek” se passa.

Sim, Abrams e seus ótimos roteiristas, Roberto Orci e Alex Kurtzman, usaram dois ou três truques de “Lost” neste filme. Um deles foi o da viagem no tempo numa trama que é bem mais fácil de entender do que a da série de TV e na qual não me aprofundo para não estragar a graça do filme. O outro é o confronto entre dois personagens de forte personalidade e visões diametralmente opostas. O Kirk e Spock de Abrams são até certo ponto como Locke e Jack na série de TV.

Mais do que um blockbuster com ótimos efeitos especiais – e que em alguns momentos respeita até o fato de no espaço o som não se propagar –, “Star Trek” é um filme absolutamente humano. A beleza de tudo o que é criado pela computação gráfica não é personagem principal no filme, mas um excelente coadjuvante que auxilia e não rouba a cena.

O fundamental em “Star Trek” é o conflito entre os personagens, a busca de Kirk em ganhar a confiança de uma tripulação enquanto Spock tenta “dominar seus demônios interiores”. É a valorização da amizade, da união, a importância do amor, a busca por vingança. Enfim, são os sentimentos humanos, demasiadamente humanos. Tudo isso valorizado por um roteiro simples com diálogos inspirados e situações bem humoradas. “Star Trek” é um filme que vai do drama à comédia numa roupagem de aventura de ficção científica.

É também uma película infinitamente mais bem sucedida do que a estréia de Abrams como diretor de longas metragens. Vamos combinar que “Missão Impossível III” (2006) é uma decepção e inferior aos dois primeiros. Mas tudo o que o criador de “Lost” erra neste filme, acerta com louvor em “Star Trek”.

Taí. Agora virei fã. Onde será que eu encontro os filmes e as séries antigas para recuperar o tempo perdido?

domingo, 10 de maio de 2009

Nem tão feliz assim

Poppy (Sally Hawkins) é uma mulher irritante e infantil que não pára de sorrir mesmo diante das maiores mazelas da vida ou uma personagem brilhantemente construída por Mike Leigh para nos mostrar que podemos encarar a vida de outra maneira mesmo diante dos nossos problemas mais terríveis com ou seu aspas? É uma dúvida que passa pela minha cabeça enquanto vejo “Simplesmente Feliz”.

Confesso que me irritou o jeito quase bobalhão de Poppy e poderia ter saído do cinema cuspindo abelhas africanas e reclamando do quão ruim era o filme que acabara de ver não fosse a cena definitiva no final do trabalho de Leigh com o desabafo do instrutor de auto-escola Scott (Eddie Marsan).

Scott diz um monte de coisas que gostaria de ter dito se passasse pela minha frente uma Poppy. E também outras que nem passou pela minha cabeça que ele sentia durante a película. As frases de Scott salvam o filme e me jogam numa sinuca de bico que gera a reflexão acima e coloca a personagem de Hawkins em outro patamar: a da maníaca por uma suprema atenção para si mesma. Aquela que quer fazer o mundo e as pessoas girarem em torno de si. Atitude de quem, como ela, passa por um momento de solidão na vida.

É quando o filme começa a ficar mais interessante e tudo aquilo que eu considerava irritante mais para trás começa a ganhar um significado desabando como uma fileira de dominós.

Poppy, a sorridente Poppy, não passa de uma mulher em busca desesperada de atenção. Ela é boazinha, gosta de ajudar as pessoas, oferece a outra face, mas, contraditoriamente, pode magoar as pessoas justamente por seu estilo de vida um tanto quanto avoado. E isso vale não apenas para Scott, mas também para sua irmã grávida, com quem ela disfarça dizendo que tem uma vida ótima e podemos ver pela primeira vez um sorriso amarelo ao perceber que está com 30 anos e não é casada nem tem filhos. Como se isso fosse importante, aliás.

Contudo, Poppy pode ser também uma metáfora para levarmos uma vida menos na ponta da faca em que deveríamos dar importância a coisas que realmente valem a pena. Confuso leitor? Só estou oferecendo duas interpretações possíveis entre outras tantas que você poderia estar aí imaginando. Quem disse que a arte é uma via de mão única? O cartaz brasileiro do filme, por exemplo, fala que “é um filme sobre o otimismo, uma celebração da vida”. Então tá... Quem sou eu para contrariá-lo.

Mais do que gostar ou não – e eu tenho minhas ressalvas pessoais que independem da qualidade do filme – “Simplesmente Feliz” tem seu valor por pelo menos abordar os assuntos listados acima de uma maneira diferente da melancólica a que estou acostumado com aqueles filmes, normalmente franceses, de cortar a alma com estilete. E prefiro, diga-se de passagem.

O único conselho que este blog dá é para assistir ao filme. Veja e saia feliz. Ou nem tanto assim. Fica ao gosto do freguês.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Só Hugh Jackman se salva

Eu já disse aqui neste espaço que Hugh Jackman nasceu para ser o Wolverine. Ele nasceu para ser o substituto ideal de Pierce Brosnan no papel de James Bond também, porém os produtores da série ainda não descobriram isso. Mas enfim, o papo aqui é quadrinhos e o carismático Jackman é a maior estrela de todos os atores que filmam adaptações de HQs.

Em “X-Men Origens: Wolverine”, ele faz o vôo solo que já era bastante aguardado para o mais famoso personagem da trupe de mutantes que “protege a humanidade que os teme e odeia”. É uma pena que o filme do Wolverine seja um tanto quanto decepcionante.

Como o próprio título do filme já diz, a película dirigida pelo sul-africano Gavin Hood, mais conhecido por “Tsotsi” (2005), vencedor do Oscar de filme estrangeiro, foi feita para contar a história do herói antes de entrar para o time de mutantes comandado por Charles Xavier.

A questão é que a história de Wolverine é cheia de pontas soltas. Primeiro porque o personagem não se lembra muito do seu passado, que mais tarde vai descobrindo aos poucos. Na revista “Arma X – A Origem de Wolverine” é que conhecemos mais sobre o projeto Arma X, como o herói ganhou o esqueleto de adamantium, etc... O gibi, aliás, foi uma das inspirações para a construção do roteiro.

Roteiro, no entanto, que tem muitos problemas. A começar pelo excesso de licenças poéticas. Mesmo para alguém que não é xiita como no meu caso, acho que Hood e os roteiristas David Benioff e Skip Woods exageraram em inventar situações que não acontecem nos quadrinhos. Claro que é preciso dar um norte ao filme que por sua vez precisa de uma história linear com começo, meio, clímax e fim. Mas algumas situações ficaram surreais. Além disso, os diálogos são fraquíssimos e cheios de frases clichês.

E o excesso de explicações também atrapalha e muito. Tudo bem que é um filme de origem, ou seja, é preciso mostrar toda a construção da personalidade do herói, mas não era necessário explicar porque Wolverine gosta de motos ou como ele consegue o casaco de couro que gosta de usar. Só faltou explicar quando ele começou a fumar charutos e a beber cerveja. Enfim, desnecessário. Estas são marcas do herói e ponto. Não precisavam de momentos que paralisam o filme para mostrar: “olha, foi assim que aconteceu”. Ainda mais porque não foi bem assim.

E aí entramos em outro problema de “Wolverine”. Talvez o projeto “Origens” não tenha vindo em boa hora. Isso é algo até que poderemos comprovarar melhor em 2011, quando o segundo filme da série dedicado ao Magneto aportará nos cinemas. Uma ousadia, aliás, fazer um filme dedicado a um vilão. Isso porque o filme chega quando o personagem já está consolidado com suas características e personalidade no imaginário cinematográfico coletivo por causa da trilogia dos X-Men.

Se já sabemos que o Wolverine é de um jeito não dá para voltar atrás e vê-lo aprendendo a ser do jeito que conhecemos. Isso pode até funcionar nos quadrinhos, mas nos cinemas ficou esquisito.

Talvez tenha sido melhor – e aí caberia uma interessante licença poética – que o primeiro filme do Wolverine começasse a partir da saída dele temporariamente dos X-Men após o filme “X-Men: O Confronto Final” (2006). Poderíamos encontrá-lo no Japão, quando conheceu Mariko (deixa que o atual filme dá para uma possível e até provável continuação) ou embarcar com ele para outras viagens. Acho que seria mais proveitoso continuar a voltar atrás. Do jeito que ficou, “Wolverine” é uma película perdida no limbo. Mas é só uma opinião.

Claro que o trabalho de Hood tem bons momentos. Além das cenas protagonizadas por Jackman, que salva o filme do completo desastre, há ainda o Dentes-de-Sabre vivido por Liev Schreiber e suas batalhas com Wolverine. Físicas e mentais, pois mais do que um meio-irmão Dentes-de-Sabre é o que Logan poderia ter se tornado se tivesse se deixado dominar pelo seu lado animalesco. E olha que no cinema até teria sido melhor para evitar frases bobas e interpretadas de forma canastrona por Lynn Collins, que no papel de Silverfox diz: “Logan, you are not an animal”. O trabalho está cheio de momentos de canastrice, diga-se de passagem.

Aliás, o filme de Hood não é plenamente satisfatório como película de ação, muito menos como trabalho que se disponha a ser “filosófico/freudiano” debatendo como se livrar dos monstros interiores de cada um. Fica no meio do caminho de ambos, sem agradar a nenhuma corrente.

Apesar disso, há um outro ponto positivo no filme que é o surgimento de Gambit (Taylor Kitsch) na história dos mutantes. Um dos meus X-Men favoritos, Remy LeBeau tem seus bons momentos. Tomara que volte a aparecer nas franquias.

No fim, a conclusão a que se chega é que Jackman e seu personagem mereciam um filme melhor, mais bem construído, mais bem acabado e com diálogos mais inspirados. “X-Men Origens: Wolverine” fica bem abaixo dos filmes dos X-Men, algo imperdoável em tempos de trabalhos tão bem feitos como os recentes “Watchmen” (2009) e “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Vamos ver se acertam da próxima vez, pois o personagem que é “o melhor no que faz” merece algo que pelo menos chegue perto destes seus atributos.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Um herói chamado Ayrton Senna

Onde você estava no dia 1º de maio de 1994? Esta data é uma daqueles que ficam para sempre guardadas na memória coletiva por causa de um acontecimento marcante. Eu lembro bem onde eu estava no dia 11 de setembro de 2001 assim como lembro bem onde estava no dia 1º de maio de 1994. Diante da TV, assistia ao terceiro Grande Prêmio do mundial de Fórmula 1 daquele ano, disputado em San Marino, em Ímola, na Itália.

Ayrton Senna havia acabado de se transferir para a Williams, então melhor equipe da categoria, após seis anos e três títulos mundiais na McLaren. Mas vivia uma fase difícil. Abandonara os GPs do Brasil e do Pacífico todos vencidos pelo jovem piloto da Benetton que conquistaria seu primeiro título naquele ano e atendia pelo nome de Michael Schumacher.

O fim de semana havia sido tenso após a morte do piloto austríaco Roland Ratzemberger no treino classificatório do dia anterior. Senna estava preocupado e disposto a criar novas regras para aumentar a segurança dos pilotos.

Mas ainda no início da corrida, tinha 10, talvez 15 voltas, o piloto brasileiro bateu muito forte na curva Tamburello. A mesma em que Nelson Piquet havia sofrido um sério acidente em 1987. A curva da morte. Ali, num muro sem proteção de pneus ou caixa de brita, acabou estupidamente a vida de um herói do esporte.

Há 15 anos eu vi aquela cena ao vivo pela TV. Revi incontáveis vezes. Muitas explicações foram dadas. Mas até hoje não consigo acreditar que tudo acabou ali naquela maldita curva.

Ayrton Senna foi um dos maiores gênios do esporte mundial. Seus críticos costumam dizer que Senna só dirigiu aviões e nunca teria a coragem de fazer o que fez, por exemplo, Schumacher, que reergueu uma Ferrari que amargava duas décadas sem títulos de suas cinzas. Schumacher era outro gênio, diga-se de passagem.

Bem, eu diria que tanto Lotus quanto Toleman não eram exatamente "boings". E ele brilhou intensamente nas duas equipes. É verdade que só veio a ser campeão na McLaren, mas na Fórmula 1 nenhum piloto, friso bem, nenhum piloto é campeão sem ter um carro bom. Você não precisa ter o melhor carro, mas necessita de um carro bom. Bicampeão em 94 e 95, Schumacher não tinha o melhor carro, título que pertencia aos bólidos de Frank Williams, mas a Benetton era um bom carro que o talento do alemão amplificou diante dos insossos Damon Hill e David Coulthard, que nunca passaram de pilotos razoáveis.

Além disso, ninguém corria na chuva, quando as provas são ainda mais desafiadoras, como Senna. Seu maior rival, o francês e tetracampeão do mundo Alain Prost, por exemplo, era péssimo com pista molhada enquanto Senna corria como se nem ligasse para estes detalhes.

Era alguém que só admitia vencer. Que queria bater todos os recordes e que viu um legítimo sucessor e fã, Schumacher, suplantá-lo, ao menos nos números, brilhantemente. Sua morte deixou uma lacuna difícil de preencher: a do ídolo brasileiro nas pistas, jamais conquistada por Rubens Barrichello e que tenta ser agora preenchida por Felipe Massa.

Senna brilhou numa época tomada por feras ou pilotos de muito respeito na Fórmula 1. Disputou duelos com Prost, Gerhard Berger (AUT), Piquet, Nigel Mansell (GBR), Riccardo Patresi (ITA), Niki Lauda (AUT), Michele Alboreto (ITA), Keke Rosberg (FIN), entre outros. Entre tantos, foi, ao lado de Prost, um dos melhores. Com ele, morreu uma era, perdão pelo clichê, romântica na Fórmula 1.

É difícil saber até onde teria ido Senna se sua carreira não tivesse sido interrompida. Ele tinha 34 anos. Em tese, forçando a barra, poderia ficar mais umas duas temporadas na Fórmula 1. Certamente não teria sido campeão em 1994. Mas será que não viria forte para o ano seguinte em busca do tetra? Teria sido ele capaz de igualar o feito do argentino Juan Manoel Fangio de cinco títulos, ultrapassando o tetra de Prost?

Talvez. Senna era tão genial que acho que o ranking dos campeonatos mundiais seria mais equilibrado hoje. Acho difícil que Schumacher não fosse o recordista, pois estava claro que ele seria o piloto da vez, o substituto de Senna, com quem pouco duelaria na pista devido a diferença de idade. Senna hoje estaria com 49 anos enquanto Schumacher tem 40 anos. Talvez o confronto iniciado em 1993 terminasse numa possível aposentadoria do brasileiro em 1996. Pouco tempo, mas o suficiente para que Senna tomasse pelo menos um dos sete títulos do alemão, que hoje poderia ter algo em torno de seis conquistas contra cinco de Fangio e quatro de Senna e Prost.

Mas isto é só um exercício retórico de possibilidades, futurologia, seja lá o que você quiser imaginar. Uma brincadeira para reescrever o passado. A verdade, a terrível verdade é que a Tamburello estragou todos os sonhos de Senna e de seus fãs que hoje vêem a Fórmula 1 completar 18 anos sem ter um brasileiro campeão. Senna deixou saudades.

Abaixo, alguns dos momentos mais marcantes da carreira de Senna nas pistas:
GP da Europa de 1993, em Donnington Park: a volta mais perfeita da história de um piloto na Fórmula 1:

GP do Japão de 1991: Senna garante o tricampeonato sobre Nigel Mansell e na última volta deixa seu companheiro de equipe, Gerhard Berger, passar, dando a vitória ao austríaco

GP do Brasil de 1991: A primeira vitória de Senna no seu país, com direito a drama, emoção do público e o esforço do piloto para erguer o troféu após uma corrida exaustiva.

GP do Japão de 1988: O primeiro título de Senna. Depois da largada, o motor morre e o piloto cai para a 14ª posição. Vai passando um a um até garantir a vitória e o campeonato

GP de Mônaco em 1984: Começa a surgir o mito do Rei de Mônaco, onde Senna venceu seis vezes. Brilhante sob uma Toleman largou em 13º foi conquistando posições até ultrapassar o bicampeão do mundo Niki Lauda. Quando iria ultrapassar o líder Prost, a direção da prova interrompe a corrida por causa da chuva tirando o que seria a primeira vitória do brasileiro