quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Os melhores e os piores filmes de 2020

Mank, Hamilton e Uma vida oculta
E assim chegamos ao final deste difícil ano de 2020. Mas antes de nos despedirmos, não podemos deixar de divulgar o grande prêmio Corneta Ballon D´Or Awards 2020 com os 30 melhores filmes do ano.

Foi um ano complicado, pois os cinemas ficaram fechados durante muitas semanas e, quando voltaram, foi num tom meio ressabiado, com poucas estreias, até porque muita gente não estava a fim de se arriscar a pegar corona. Com isso, muitas produções tiveram suas estreias adiadas para 2021 e 2022. Melhor para os serviços de streaming que já haviam sido incorporados à premiação na edição de 2019 do prêmio. Mas ainda assim foi difícil formar uma lista minimamente decente que chegasse a 30.

Porém, permaneceram os critérios estabelecido pelo júri formado por mim mesmo. Podiam concorrer todos os filmes que estrearam entre o primeiro e o último dia do ano nos cinemas do Brasil e de Portugal em circuito aberto e disponível para qualquer mortal assistir. Além dos filmes originais lançados por plataformas de streaming a qual o júri formado por mim mesmo têm acesso. São basicamente quatro, cujos nomes eu não direi, pois eu não sou pago para fazer propaganda.

Mas chega de conversinha. Vamos ao ranking dos filmes que brilharam e sobreviveram ao crivo SEVERO e IMPLACÁVEL da Corneta e foram escolhidos os melhores de 2020:

1- “Mank” (Mank — EUA). Diretor: David Fincher.

2- “Hamilton” (Hamilton — EUA). Diretor: Thomas Kail.

3- “Uma vida oculta” (A Hidden Life — ALE, EUA). Diretor: Terrence Malick.

4- “O som de silêncio” (Sound of metal — BEL, EUA). Diretor: Darius Marder.

5- “O mal não existe” (Sheytan vojud nadarad — ALE, IRI, CZE). Diretor: Mohammad Rasoulof.

6- “Retrato de uma jovem em chamas” (Portrait de la jeune fille en feu — FRA). Diretora: Céline Sciamma.

7- “A voz suprema do blues” (Ma Rainey´s Black Bottom — EUA). Diretor: George C. Wolfe.

8- “1917” (197 — ING, EUA). Diretor: Sam Mendes

9- “Os Miseráveis” (Les misérables — FRA). Diretor: Ladj Ly

10- “A despedida” (The Farewell — EUA). Diretora: Lulu Wang.

11- “Destacamento Blood” (Da 5 Blood — EUA). Diretor: Spike Lee.

12- “Belle Epoque” (La Belle Époque — FRA, BEL). Diretor: Nicolas Bedos.

13- “Malmkrog” (Malmkrog — ROM, SER, SUI, SUE, BOS, MAC). Diretor: Cristi Puiu.

14- “O diabo de cada dia” (The devil all the time — EUA). Diretor: Antonio Campos.

15- “O homem invisível” (The Invisible Man — CAN, AUS, EUA). Diretor: Leigh Whannell.

16- “Adoráveis Mulheres” (Little Women — EUA). Diretora: Greta Gerwig.

17- “O Farol” (The Lighthouse — CAN, EUA). Diretor: Robert Eggers.

18- “Uncle Frank” (Uncle Frank — EUA). Diretor: Alain Ball.

19- “Rainha de Copas” (Dronnigen — DIN, SUE). Diretora: May el-Toukhy

20- “Let Them All Talk” (EUA). Diretor: Steven Soderbergh.

21- “Verão de 85” (Été 85 — FRA, BEL). Diretor: François Ozon.

22- “Martin Eden” (Martin Eden — ITA, FRA, ALE). Diretor: Pietro Marcello.

23- “Soul — Uma Aventura com alma” (Soul — EUA). Diretores: Pete Doctor e Kemp Powers.

24- “Tigertail” (Tigertail — EUA): Diretor: Alan Yang.

25- “Mosul” (Mosul — EUA). Diretor: Matthew Michael Carnahan.

26- “A verdade” (La verité — FRA, JAP). Diretor Hirokazu Koreeda.

27- “O caso Collini” (Der Fall Collini — ALE). Diretor: Marco Kreuzpaintner.

28- “Os tradutores” (Les traducteurs — FRA, BEL). Diretor: Régis Roinsard.

29- “Os 7 de Chicago” (The trial of the Chicago 7 — EUA, ING, IND). Diretor: Aarom Sorkin.

30- “Dias sem fim” (All day and a night — EUA). Diretor Joe Robert Cole.

Além dos melhores, não podemos nos despedir sem divulgar o prêmio Uva Passa de piores filmes do ano. Vamos aos dez torpedos terríveis largados em 2020:

1- “The last days of American crime” (EUA). Diretor: Olivier Megaton.

2- “Mrs. Serial Killer” (Mrs. Serial Killer — IND). Diretor: Shirish Kunder.

3- “Troco em dobro” (Spenser Confidential — EUA). Diretor: Peter Berg.

4- “Power” (Project Power — EUA). Diretores: Henry Joost e Ariel Schulman.

5- “Bloodshot” (Bloodshot — EUA). Diretor: Dave Wilson

6- “Entre realidades” (Horse Girl — EUA). Diretor: Jeff Baena

7- “Mulher Maravilha 1984” (Wonder Woman 1984 — EUA, ING, ESP). Diretora: Patty Jenkins.

8- “Scooby! — O filme” (Scoob! — EUA). Diretor: Tony Cervone.

9- “A terra e o sangue” (La terre et le sang — FRA, BEL). Diretor: Julien Leclerq.

10- “Mulan” (Mulan — EUA, CAN, Hong Kong). Diretora: Niki Caro.

É isso. Feliz ano novo aos amigos. E que venha a temporada do Oscar e a vacina! Não necessariamente nesta ordem.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

As melhores e as piores séries de 2020

Bob Odenkirk como Saul Goodman 
 No ano de 2020, a única coisa que avançou foi o contador de episódios de série. Foram mais de 1.100 ao longo dos meses de pandemia. Sendo assim, e dada a ROBUSTEZ de series vistas por este que vos tecla, o mega conglomerado Corneta Inc. resolveu lançar a primeira edição do Golden Cornetemmy Globe de melhores series e minisséries do ano.

 
Ao contrário, do Corneta Ballon D´Or Awards, tradicional prêmio da indústria cinematográfica com os 30 melhores filmes do ano e cujo resultado será divulgado amanhã, o Golden Cornetemmy Globe premiará as 15 melhores séries e minisséries que tenham começado e encerrado entre o primeiro e o último dia do ano corrente.
 
Mas não enrolemos mais. Vamos ao top-15 de 2020:
 
1-      “Better Call Saul” – A quinta temporada da série é a grande vencedora deste ano e que colocamos aqui apenas para repetir que “Better Call Saul” é melhor que “Breaking Bad”.
2-      “Dark” -  A terceira e última temporada desta série alemã que explodiu cabeças e foi brilhante do início ao fim.
3-      “Lovecraft Country” – A primeira temporada da série criada por Misha Green que, mostra que, parafraseando Sartre, os monstros são os outros. 
4-      “Normal People” – Uma linda jornada de Marianne e Connell que só durou 12 episódios basicamente porque eles não sabiam se comunicar.
5-      “I know this much is true” – Quanto sofrimento, Mark Ruffalo? Quer um abraço? A vida é mais fácil quando se é o Hulk.
6- “A amiga genial” – A segunda temporada só manteve lá no alto a qualidade desta série italiana baseada nos livros de Elena Ferrante.
7-      “The Mandalorian” – Como não amar o Baby Yoda? Como não amar uma segunda temporada tão maravilhosa? Como não amar aquele final? Obrigado, Jon Favreau, Dave Filoni e todos os demais envolvidos.
8-   “We are who we are” – Oito horas lindas de “Me chame pelo seu nome”, agora com adolescentes, concebidas pelo diretor Luca Guadagnino. E ainda tem imagens da Itália, o que eleva a qualidade de qualquer produção.
9- “Gangs of London” – Grande série em que todo mundo vale menos do que uma moeda de três libras. E ainda tem excelentes e bem cruas cenas briga.
10- “Defending Jacob” – O Capitão América se meteu numa cilada aqui, mas será que o menino é mesmo o assassino?
11- “The Last Dance” – Era para ser um doc sobre o Chicago Bulls, mas acabou sendo um desnude de Michael Jordan, mostrando a sua verdadeira face. 
12-  “The Crown” – Praticamente o “Gangs of London” que toma chá e pratica polo. A quarta temporada manteve o bom nível da série e acabou com todo o capital positivo que o príncipe Charles havia conquistado na terceira temporada. Saiu quase tão vilão quanto a Tatcher, até porque é impossível ser mais vilão do que a Tatcher.
13-  “Homecoming” – A segunda temporada estrelada pela Janelle Monáe focou em outro aspecto do universo e conseguiu ser ainda mais interessante do que a primeira.
14-  “Califado” – Série sueca muito interessante que retrata como organizações terroristas aliciam jovens, especialmente imigrantes, da Suécia para lutarem por suas bandeiras e praticarem atos terroristas.
15-  “Mrs. America” – Cate Blanchett é tão boa no que faz que conseguiu me convencer a odiar ela nesta série sobre a ativista conservadora Phyllis Schlafly e que também fala sobre a luta de mulheres por direitos iguais nos Estados Unidos dos anos 70 do século passado. 
 
E agora vamos ao prêmio Cachorro-quente com Purê de piores series e minisséries de 2020:
 
1-      “13 reasons why” – Eu teria mais do que 13 razões para defender que esta série nunca deveria ter passado da primeira temporada. Mas eles insistiram e foram até a QUARTA, superando todos os limites possíveis de ruindade.
2-      “Cursed: a lenda do lago” – Olha, a intenção era boa. Eu tenho todo respeito pelo Frank Miller, mas…. é tão ruim que conseguiu roubar o segundo lugar de uma certa série espanhola.
3-      “La Casa de Papel” – Eu tenho também inúmeros motivos para dizer que esta série nunca devia ter passado da primeira temporada. Tudo nela é péssimo, tudo é ruim, tudo é pavoroso. E criou um trauma. Eu não vejo mais produções espanholas que não tenham o selo do Almodóvar.
4-      “The Rain” – Esta série dinamarquesa sobre um mundo pós-apocalíptico em que a humanidade foi sendo dizimada por um virus (qualquer semelhança é mera coincidência) nunca foi grande coisa, mas a terceira e última temporada superou as expectativas. Ainda bem que acabou. Não aguentava mais o chorôrô de Rasmus e Simone.
5-      “Drácula” – Eram só três episódios. Tinha tudo para dar certo. O primeiro foi bom, o segundo foi ok, até que veio o terceiro. E a gente começa a ver o Drácula usando Tinder para beber sangue. E fazemos a grande pergunta: Quem aprovou este roteiro? Quem aprovou o bordão maroto/cafajeste: “Eu não bebo… (pausa dramática)… vinho”? Por que ele precisava ser repetida o todo tempo? Esta série enterrou o Drácula por mais alguns anos. Vão ter que fazer o reboot com retcon lá para 2025.
 
Então é isso. Amanhã eu volto com os 30 melhores filmes do ano. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Tenet e o cinema pretensiosamente complexo de Nolan

Tenet tem personagens desinteressantes
Não é de hoje que o cineasta Christopher Nolan gosta de trabalhar com temas complexos e/ou conceitos científicos pouco conhecidos do espectador comum. Foi assim em “A origem” (2010), quando falava da extração memórias através dos sonhos, e também em “Interestelar” (2014), com suas teorias sobre buraco de minhoca e viagens no tempo. Mesmo em “Amnésia” (2000), o filme que o fez começar a ficar conhecido, Nolan já falava sobre uma história de estrutura complexa que alternava o tempo cronológico e o tempo invertido conforme as cenas surgiram coloridas ou em preto e branco na tela.

Intercalado com estas produções ditas complexas, Nolan produziu filmes mais palatáveis, mas sem descuidar de algumas de suas virtudes. Cenas bem filmadas, a beleza de suas tomadas, o excelente uso do som. São elementos que podem ser vistos tanto na sua trilogia do Batman (2005–2012), quanto em “Dunkirk” (2017).

Assistir a “Tenet” tendo essa perspectiva de sua carreira, é ver o diretor andando em círculos dentro da sua zona de conforto. Seu novo filme, lançado neste confuso ano de 2020 em meio a pandemia de coronavírus, é um suco de tudo o que Nolan já produziu. Com suas virtudes e defeitos.

“Tenet” pretende ser uma história de espionagem, onde um agente chamado apenas de Protagonista (John David Washington) precisa impedir a eclosão da terceira guerra mundial em uma trama que envolve viagens no tempo e conceitos com o de inversão da entropia.

A ideia de Nolan é que seu filme funcione como um palíndromo. Um palíndromo é uma palavra ou frase que pode ser lida tanto da direita para a esquerda, quanto da esquerda para a direita. Ou seja, em “Tenet”, palavra, inclusive, que é um exemplo de palíndromo, a sequência de acontecimentos pode ser lida/vista tanto em sua ordem cronológica, quanto em sua versão invertida. Pelo menos esta é a intenção.

Não é por acaso, inclusive, que “Tenet” tenha este nome. Palavra cuja tradução para o português significa princípio, mas num sentido de dogma ou doutrina, tenet é uma das cinco palavras latinas do quadrado Sator, encontrado em uma série de achados arqueológicos pela Europa. São elas: Sator, Arepo, Tenet, Opera e Rotas. Tenet está no meio deste quadrado formando uma cruz. Arepo é mencionado no filme, assim como Opera, que é onde se inicia a ação e Sator, nome do vilão vivido por Kenneth Branagh.

Nolan não vai muito além na explicação do palíndromo. Parece ser apenas uma pista que ele joga na tela para que desvendemos e nos leve ao que mais lhe interessa que é o conceito de entropia e inversão da entropia, que consiste na ideia de inverter o sentido do tempo das moléculas. Nolan usa de licença poética para usar esta possibilidade, que já foi testada em laboratório em escala microscópica, para construir toda uma história a partir da inversão do tempo. E claro que em algum momento passado e futuro literalmente se chocam num tempo presente misturando tudo, em algo que pode deixar o espectador um pouco confuso.

Mas Nolan se esforça para explicar e ser até didático, como na cena em que, no início do filme, a personagem Bárbara, interpretada por Clémence Poesy, tenta explicar para o Protagonista como funciona o conceito da bala reversa. E aqui temos um problema do filme. Por querer ser complexo, Nolan faz questão de explicar tudo ao longo de 2h30min de filme. O que faz com que o filme tenha problemas em sua evolução. É mais interessante quando ele joga na tela símbolos de fácil identificação, como os respiradores usados por quem está invertido, e os times vermelho e azul, identificando quem está em ordem cronológica correta ou invertida.

Paradoxalmente, Barbara ainda diz em sua explanação para que o Protagonista, e, consequentemente, nós todos, não tentemos entender. Só sentir. O problema é que fazer o espectador sentir não é uma virtude de Nolan. “Tenet” tem os personagens mais desinteressantes da carreira do diretor. Os arcos narrativos do Protagonista, de Sator e de Kat (Elizabeth Debicki) são extremamente pobres. Nenhum deles gera empatia, carinho, ódio, qualquer tipo de sentimento no espectador. Suas motivações não convencem. Eles estão ali, apenas porque estão e se fossem outros ali não fariam qualquer diferença.

O Protagonista é alguém que rejeita um trabalho, mas em cinco segundos muda de ideia para impedir a Terceira Guerra Mundial. Mas ao conhecer Kat, figura feminina com quem não demonstra qualquer interesse e sequer teve tempo para nutrir qualquer sentimento por ela, resolve que sua missão mudou: é preciso salvar ela do seu marido abusivo. Afinal, o que é a Terceira Guerra Mundial perto da missão virtuosa de salvar uma mulher indefesa? (inserir sinal de ironia).

Sartor é aquele vilão caricato de filme B num dos piores momentos da carreira de Kenneth Branagh. Ele está ali para gritar com a mulher, fazer cara de mal e inverter a lógica do vilão. Afinal, lembremos que é tudo invertido nesta história. Ele é um vilão que quer se matar para destruir o mundo. Já Kat é uma figura gélida na história. Zero emoção. Zero camadas. Está preocupada com o filho, mas tudo está sob controle. Odeia o marido e quer se livrar dele, mas é facilmente convencida a esperar a hora certa. E quando chega o seu momento, que ainda não era a hora certa, mas poxa, não deu para esperar, o diálogo com Sartor é um pouco constrangedor. E no fim tudo se resolve sem grandes dramas.

No fim, o personagem mais interessante acaba sendo Neil (Robert Pattinson). Ele é o que tem mais desenvolvimento na história e cria alguma empatia. E acaba por representar o princípio e o fim de tudo em ciclo que vai se repetindo.

O ápice do palíndromo de Nolan acontece na meia hora final do filme. E é aqui que Nolan mostra o quanto é bom diretor para imagens e som. A batalha final dos exércitos entre si e contra o traficante de armas é o momento mais marcante do que Nolan já havia ensaiado na perseguição de carros no meio do filme. Ali, os dois exércitos atacam o lugar ao mesmo tempo, mas metade na evolução natural do tempo e metade invertido. Com isso, Nolan cria momentos realmente muito bons, como a destruição e reconstrução de um mesmo prédio em diferentes pontos. A batalha é bem interessante e expõe as virtudes do diretor, ainda que neste ponto do filme, o interesse pela história já se perdeu consideravelmente. Vai-se na onda movido pela curiosidade de como aquilo acaba.

“Tenet”, portanto, tem virtudes e defeitos. Está longe de ser um dos melhores filmes do Nolan e é onde seus defeitos estão mais escancarados do que suas virtudes evidenciadas. Não é um mau filme, trabalha com ideias interessantes e tem um certo grau de ousadia. Mas se tecnicamente é até bonito, é um filme fraco de personagens e com uma história que quer ser mais complexa do que se fazer entender ao espectador comum. Para Nolan, neste filme o importante era ser difícil. E ser difícil não é necessariamente sinônimo de genialidade.

Cotação da Corneta: nota 7.



terça-feira, 7 de julho de 2020

Tom Hardy merecia um filme melhor para o seu Al Capone

Tom Hardy é o que há de melhor no filme

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Maratonar "The Wire" foi uma jornada fascinante

Os policiais que conduzem as escutas
Eu tenho uma amiga que sempre dá dicas certeiras sobre séries e ao mesmo tempo é necessariamente insistente e positivamente chata até que a gente finalmente as veja. E isso tudo contrasta com o meu ritmo lento para ver ou iniciar algo. Ela insistiu por mais de um ano para eu ver “Sopranos”. E quando eu finalmente vi, que jornada magnífica foi acompanhar a história de Tony Soprano. Terminado “Sopranos”, ela surgiu na minha frente tal qual os mentores dos heróis em suas jornadas e decretou: “Agora você tem que ver “The Wire”.
Eu estava em mais um limiar, mais um portal que eu precisava ultrapassar na minha jornada canônica das séries. Mas como eu disse no parágrafo anterior, meu processo é lento e gradual.
Mais de dois anos se passaram até que eu começasse a ver “The Wire”. Neste meio tempo, encontrei outro fanático pela série que insistiu. “Você tem que ver “The Wire”. E aquela minha amiga? Aquela lá de trás? Continuou insistindo tanto na esfera pública quanto na privada “Veja The Wire”!. Pareciam os mantras hipnóticos daquela antiga propaganda de chocolate “Cooooompre Batom…. Coooompre Batom…”

Pois bem. Forçado a ficar em casa de quarentena por conta de uma triste pandemia que, infelizmente, vai contando corpos pelo mundo todo, decidi finalmente maratonar “The Wire”. E foi a melhor decisão que eu tomei.
(E CUIDADO QUE A PARTIR DE AGORA AS ESCUTAS VÃO REVELAR DIVERSOS SPOILERS)
Escrevo estas linhas menos de 24 horas depois de ter visto o último episódio da série criada por David Simon e que foi originalmente ao ar pela HBO entre 2002 e 2008. Vi a conclusão de uma longa jornada de uma série de personagens em que o resultado foi tudo, menos feliz. Foi pragmático, político, foi o que deu para fazer dada uma série de situações ocorridas. Pessoas que não mereciam se deram bem. Pessoas com boas intenções se deram mal. E a vida seguiu no seu ritmo miserável dentro da dinâmica da sociedade.
O drama passado na cidade de Baltimore, principal centro urbano, financeiro e cultural do estado de Maryland, nos Estados Unidos é absolutamente excitante porque é sobre a vida. Na verdade, a cidade que no tempo da série tinha pouco mais de 650 mil habitantes é usada por Simon como um estudo do comportamento humano em comunidade a partir de um microcosmo. Estão ali, a corrupção policial, a manipulação dos números, todas as formas de ilegalidade, a corrupção e a manipulação na política, a insuficiência do estado, a falsidade, a burocracia que atravanca o avanço e traz desânimo, desespero e revolta. Estão ali todos os núcleos com seus vícios e problemas dissecados. Com suas vísceras expostas a céu aberto. E essa vida girando em ciclos enquanto uma meia dúzia de abnegados trabalha basicamente enxugando gelo numa cidade degradada.
Particularmente, “The Wire” é fascinante porque não é sobre um protagonista. Ou dois. Ou três. O protagonismo vai para a cidade de Baltimore, este organismo vivo que se move em meio a suas zonas decadentes, o crime organizado, as gangues, a alta taxa de criminalidade, a corrupção policial, os interesses políticos, a lavagem de dinheiro, o ensino decadente e o jornalismo em crise. Dentro deste organismo que parece tão caótico e desesperançado vamos acompanhando as histórias das pessoas que fazem parte da fauna de Baltimore.
McNulty, D´Angelo e Bunk no famoso sofá
“The Wire” teve cinco temporadas e um total de 60 episódios. Cada temporada funcionava como uma história fechada, mas dentro de uma perspectiva multilateral. Com isso, o protagonista de uma, passava a coadjuvante em outra ou mesmo tinha apenas uma pequena participação numa terceira temporada.
Cada temporada também era sobre um núcleo. A primeira, por se tratar de apresentar os personagens que vamos acompanhar até o fim, falava do cotidiano dos policiais de Baltimore, que enfrentam a burocracia e as próprias limitações financeiras do departamento, bem como o preconceito (e também medo) da chefia diante de uma nova forma de investigação, as tais escutas, para investigar um proeminente traficante de drogas denominado Avon Barksdale (Wood Harris).
Avon Barksdale, o grande gângster
Na segunda temporada, o foco central é o cotidiano dos estivadores. A trama segue acompanhando o tráfico de drogas, mas ruma para o porto de Baltimore, onde vemos o envolvimento de funcionários do local com contrabandistas gregos que mais a frente vão se revelar fornecedores das drogas que são vendidas nas ruas da cidade. Ao mesmo tempo, vemos a atividade econômica local enfrentando os desafios das transformações que o porto está sofrendo e os problemas enfrentados e também causados pelo sindicato.
A terceira temporada retorna ao núcleo policiais e traficantes, mas apresenta o aspecto político a partir da figura de um proeminente vereador Tommy Carcetti (Aidan Gillen), que começa a galgar as esferas do poder e terminará a série tornando-se governador de Maryland. Aqui vemos como a política interfere no trabalho policial para se beneficiar e atravancar o sistema.
Na quarta temporada, o tema são as escolas e como alunos e professores lidam com a presença do tráfico em suas vidas. Como são deixadas marcas profundas nos jovens. Muitos deles que acabarão trabalhando para os chefes do tráfico em Baltimore.
Na quinta, o centro das atenções passa a ser a redação do jornal The Baltimore Sun. Vemos o jornal lidando com a precariedade, a redução de quadros e acompanhamos histórias falsas sendo publicadas enquanto vemos a luta dos policiais para trabalhar com um orçamento precário, consequência de um problema nas escolas visto na temporada anterior.
A ideia de levar a trama para a redação na quinta temporada foi ótima, pois é numa redação de jornal que, em tese, todas as histórias circulam. Poderia ser uma forma de amarrar de vez a série que estava em sua última temporada, mas acabou que a redação se transformou num novo núcleo, também cheio de vícios e problemas. A conclusão da história, porém, seguiu a perspectiva multilateral idealizada para toda a série. E o desfecho não poderia ter sido melhor. De fato, se a redação do jornal se tornasse o centro de confluência da história, de certa forma “trairia” o espírito da série. As histórias em “The Wire” são interdependentes e cada temporada era como se David Simon nos apresentasse uma nova camada daquele universo compartilhado de Baltimore.
Freamon deu a dica: "Siga o dinheiro"
Vivendo dentro desta realidade, temos oito personagens que formam o núcleo ou circundam a divisão de Crimes Graves da polícia de Baltimore. Eles são os responsáveis pelas escutas e as investigações mais importantes do crime organizado da cidade. São eles que começam a entender que mais do que prender pequenos traficantes e “tenentes” do tráfico, era preciso seguir a máxima de Lester Freamon (Clarke Peters), um dos principais personagens da série, e “seguir o dinheiro”. E quando se segue o dinheiro, pode-se parar no Olimpo de uma organização cujos tentáculos vai do gueto de Baltimore aos altos escalões de Washington.
Os personagens que circundam as investigações são estes:
. Detetive James McNulty (Dominic West)
. Tenente Cedric Daniels (Lance Reddick)
. Detetive William “Bunk” Moreland (Wendell Pierce)
. A advogada do Ministério Público Rhonda Pearlman (Deidre Lovejoy)
. Detetive Shakima “Kima” Greggs (Sonja Sohn)
. Detetive Ellis Carver (Seth Gillam)
. Detetive Thomas “Herc Hauk (Domenick Lombardozzi)
. Detetive Lester Freamon
A partir destes oito personagens as histórias vão ganhando corpo. Não há nada em “The Wire” que não passe por eles e é a vida deles que acompanhamos mais de perto. As ascensões e quedas, as decisões certas e erradas, os dramas, o continuum da existência daquela cidade passa por eles.
Seus adversários mudam a cada temporada ou estão sempre orbitando o espectro da investigação. Os antagonistas desta história são:
. O chefe do tráfico Avon Barksdale
. Seu sócio Stringer Bell (Idris Elba)
. O chefe do tráfico Marlo Stanfield (Jamie Hector)
. Senador Clay Davies (Isiah Whitllock Jr.)
. Spiros Vondas (Paul Ben-Victor)
. The Greek (Bill Raymond)
Interagindo entre os dois núcleos há uma séries de guardiões do limiar, personagens que em algum momento circundam as histórias trazendo problemas, por vezes sendo inimigos, outras vezes tornando-se aliados momentâneos. São aqueles que vão controlar o ritmo da história na interação com o núcleo que a protagoniza ou com o núcleo que a antagoniza.
Este grupo é formado por personagens de diferentes camadas sociais. São eles:
. O informante da polícia e usuário de drogas Bubbles (Andre Royo)
. O justiceiro Omar Little (Michael K. Williams)
. O vereador Thomas Carcetti (Aidan Gillen)
. O major Howard “Bunny” Colvin (Robert Wisdow)
. O traficante D’Angelo Barksdale (Lawrence Gilliard Jr.)
. O presidente do sindicato dos estivadores Frank Sobotka (Chris Bauer)
. Seu sobrinho Nick Sobotka (Pablo Schreiber)
. O jornalista Scott Templeton (Thomas McCarthy)
. O traficante Preston “Bodie” Broadus (JD Williams)
. O estudante Namond Bryce (Julito McCullum)
. O comandante da polícia William Rawls (John Doman)
. O detetive Roland “Prez” Pryzbylewski (Jim True-Frost)
. O traficante Proposition Joe (Robert F. Chew)
. O assassino Chris Partlow (Gbenga Akinnagbe)
. O comandante Ervin Burrell (Frankie Faison)
. O prefeito Clarence Royce (Glynn Turmann)
. O major Valchek (Al Brown)
. O juiz Daniel Phelan (Peter Gerety)
. O jovem traficante Michael Lee (Tristan Wilds)
. O advogado Maurice Levy (Michael Kostroff)
. O sargento Jay Landsman (Delaney Williams)
. A vereadora Nerese Campbell (Marlyne Barrett)
Como podemos ver, temos um grupo de oito protagonistas e outro de seis antagonistas. Além de um grupo de 22 personagens que vão ditando o ritmo dos conflitos. Sem contar outros coadjuvantes que não foram citados aqui. A maioria destes 36 personagens esta entre os 40 personagens que aparecem em todas as temporadas da série. Deste grupo de 36 personagens, oito estiveram em todos os 60 episódios da série: McNulty, Rawls, Pearlman, Bunk, Daniels, Kima, Carver e Herc. Sem contar o Freamon, que aparece em 59 dos 60 episódios.
A riqueza de “The Wire” está na construção deste universo. Muitas produções. Muitas mesmo, do seu blockbuster favorito àquele escondido e empoeirado e raras vezes visto filme iraniano que você cita para se sentir superior aos demais, são baseadas numa fórmula tradicional da jornada do herói. Aquela mesma que vem da “Ilíada” e da “Odisseia”, de Homero, e foi teorizada no século XX pelo russo Vladimir Propp em “Morfologia do conto maravilhoso” (1928) e pelo professor de mitologia comparada Joseph Campbell em “O herói de mil faces”(1949). Também poderíamos incluir os arquétipos do psicanalista Carl Gustav Jung nesta brincadeira toda a partir de suas ideias em “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” (1933).
A história do Superman é assim. A do Capitão América também. E a de “Parasitas”, filme ganhador do Oscar deste ano, também. Desculpe por decepcionar quem achava que era diferente.
Se fosse possível fazer um levantamento em toda a história do cinema, eu diria que 95% dos filmes são feitos organicamente a partir do conceito de jornada do herói. Contudo, isso é um número meramente especulativo e sem base científica. Mas é isso que acontece. Alguém vai de um ponto A ao ponto B passando por uma série de provações e recebendo a “recompensa” no final. E tudo bem. Não significa não haja filmes fascinantes, brilhantes até, feitos desta forma. Há muitos. De todos os tipos, orçamentos e alcances. Além disso, a história da humanidade sempre foi construída a partir destes parâmetros. É o que Campbell fala quando comenta as mitologias que vão de Zeus ao Rei Arthur, passando por Jesus Cristo.
McNulty se sacrificou por sua causa
“The Wire”, contudo, é fascinante porque é diferente disso. Mas não há jornada do herói em “The Wire”? É claro que há. A história do detetive McNulty é a típica história do herói trágico. Ele é um Hamlet contemporâneo que passa pelas mais difíceis provações internas e externas e sacrifica-se ao fim da jornada.
Porém “The Wire” não é sobre McNulty. O personagem é apenas um vetor da história. “The Wire” é sobre Baltimore e sobre as misérias e degradações humanas a partir deste microcosmo. É uma reflexão a partir de causas e consequências de atitudes erradas ou corruptas tomadas num determinado ponto da vida e que acabam por se refletir na vida de toda a sociedade. Não há deus ex-machina em “The Wire”. Se você pegar uma determinada rua, pode realmente ser baleado e ter a sua vida abreviada. Se você embarreirar uma investigação, pode ver os tentáculos de um traficante chegarem até o governo da cidade. Se você não ajudar aquela criança, ela se transformará em tenente do tráfico no futuro. E todas estas ações passadas geram consequências futuras para todo o organismo da cidade. E cada indivíduo precisa lidar com as consequências das decisões tomadas por ele e por outros ao seu redor.
Omar morre estupidamente
Isso gera uma imprevisibilidade saudável à série. Stringer Bell é o grande vilão? Ele morre impiedosamente na terceira temporada. Avon Barksdale é o grande gangster perseguido pelos policiais? O maior alvo? Termina preso na terceira temporada e é quase esquecido nas temporadas posteriores, reduzindo a sua influência à chefia dos presos na cadeia. É quando surge Marlo Stanfield com a coroa de rei do tráfico. Uma coroa que durou pouco. Foi preso e deliberadamente aposentado para manter a sua liberdade. Omar é o nosso herói e justiceiro que vai fazer com os traficantes o que a polícia não pode? Acaba estupidamente morto por uma criança na quinta temporada, enquanto comprava cigarros.
Duquan, Wagstaff, Michael e Namond na escola
Por outro lado, personagens supostamente bons podem mudar de lado. E vice-versa. O exemplo mais cristalino está na polaridade entre os jovens Michael e Namond na quarta temporada. Quando ela começa, Michael parece um jovem longe da influência do tráfico, pois tem uma mãe viciada. Ele quer apenas cuidar do seu irmão para não vê-lo no mesmo ciclo do tráfico. Michael, inclusive, é o único do seu grupo de amigos a recusar o assédio de Marlo Stanfield. Namond, por outro lado, é um jovem problemático, filho do traficante Wee-Bey (Hassan Johnson), um dos braços direitos da dupla Avon-Stringer Bell. Ele é uma das ovelhas negras da escola, que não sabe o que fazer diante do seu comportamento violento e antissocial. E ainda tem ligações com o tráfico nas ruas.
Diante do que a série nos apresenta, parece que acompanharemos duas histórias opostas com finais conhecidos. Quão incrível é percebermos que Simon resolve inverter a polaridade desta dupla, jogando Michael nos colos do tráfico e Namond nos braços da redenção. E isso não tem volta. Pois cada passo que damos gera consequências quão mais graves eles são.
Michael tem outra função nesta história que é expor o círculo vicioso da vida em Baltimore. Seu destino final é virar um novo Omar, inclusive empunhando a mesma arma usada pelo anti-herói. Não mais um soldado do tráfico, mas jamais um mocinho, pois a sua vida já está manchada pelos caminhos tomados por ele anteriormente.
Bubbles tem a grande história de redenção
O círculo vicioso, ou a teoria do eterno retorno de “The Wire”, também aparece na relação Bubbles-Duquan (Jermanie Crawford). Eles nunca contracenam na série, mas são espelhos um do outro. São passado, presente e futuro desta história particular. Bubbles começa a série como um viciado em drogas que trabalha por esmolas dando informações para a polícia e passa os dias catando lixo nas ruas para vender. Ele vivencia uma série de provações, dificuldades e recaídas até finalmente conseguir a sua redenção conquistando novos espaços sociais dentro da casa da irmã e na vida em Baltimore, além do auto perdão pelos erros cometidos ao olhar a sua vida em perspectiva e através do olhar de um jornalista. Mas nunca soubemos qual é o seu passado. O que o levou a se tornar a figura miserável das três primeiras temporadas. Seu passado é espelhado em Duquan nas duas temporadas finais. Um jovem sem muitas oportunidades na escola, que sofre bullying dos colegas e tem uma vida financeiramente miserável. Um jovem que mostra algum talento quando lhe dão uma chance, mas não consegue dar continuidade aos estudos, não tem casa para morar, exibe uma bondade que não serve para o tráfico e acaba a série como um catador de lixo iniciando a sua vida como consumidor de drogas. Duquan é o passado de Bubbles e o alerta da série que, para cada ex-viciado surgem novos viciados, mostrando que algo nas políticas, no combate às drogas e ao vício e na recuperação social dos indivíduos precisam ser revistos para que não se repita o círculo do eterno retorno.
Outro exemplo de personagens cujas trajetórias se espelham são o tenente Daniels e o detetive Ellis Carver. Quando a série começa, Daniels é um homem de reputação ilibada, mas que cometeu um grave erro no passado. Erro este que é recorrentemente lembrado durante todas as cinco temporadas da série. Um erro que assombra Daniels a cada momento de tentativa de mudança e subida na escala de poder da polícia. E na série, Daniels passa por capitão, major e tem uma curta passagem no comando do departamento. Nunca sabemos em detalhes qual foi o crime cometido por Daniels, mas sabemos o suficiente para saber que é grave e pode acabar com a sua carreira no alto escalão se isso vier a ser revelado. Carver, por sua vez, é um jovem policial que vemos logo na primeira temporada cometer um grave crime, imoral dentro da polícia, que seria o suficiente para marcar de vez a sua carreira. Daniels, que então é o seu chefe direto, lida com o problema muito provavelmente da mesma forma que algum chefe lidou com ele no passado. Na temporada seguinte, Daniels dá uma segunda chance a um Carver que ainda se vê como culpado pelo erro cometido. Seu personagem cresce e, não por acaso, a última cena de Carver é com Daniels, em seu último ato na polícia, o empossando como tenente, justamente o cargo que Daniels ocupava no início da série. Carver tem um crescimento moral e vira o sucessor natural de um cansado Daniels, que, por sua vez, vai para a vida civil de advogado, onde acredita poder ser plenamente correto sem lidar com as diversas pressões políticas e burocráticas da vida pública.
O círculo desesperador do eterno retorno é algo que enriquece “The Wire”. Ele mostra que não importa quem está no comando da polícia ou da prefeitura, as taxas de criminalidade precisam ser manipuladas para favorecer A ou B. Os nomes mudam no comando da polícia (Burrell-Rawls-Daniels-Valchek) ou da prefeitura (Royce-Carcetti-Nerese, mas os números que precisam ser mostrados são aqueles que precisam ser mostrados de acordo com os interesses necessários. Não importa como eles são conseguidos. São também os malditos números que fazem a escola não optar pelo ensino dos seus alunos ou o Baltimore Sun fechar os olhos para o fato de ter publicado reportagens mentirosas do jornalista Scott Templeton. O que são mentiras perto da exibição de um Pulitzer por um jornal em decadência pelos cortes de pessoal e orçamento?
Em “The Wire”, personagens de reputação ilibada também podem tomar decisões erradas. E não serão salvos por isso. O maior exemplo está no brilhante detetive Freamon, que na única vez em que saiu dos trilhos da lei pagou por isso, sendo obrigado a abandonar a carreira. Mesmo destino, aliás, de McNulty.
Freamon e McNulty, aliás, são o retrato da apoteose trágica que é a quinta temporada. As decisões que tomam ao inventar um serial killer na cidade para conseguir recursos financeiros para uma polícia financeiramente em crise resolver seus casos é a mesma manipulação, mas em outra ordem e escala, feita pelas esferas superiores do poder. Eles representam o desespero e a raiva por serem manipulados há anos e nunca conseguirem recursos para investigar os grandes culpados pela situação degradante de Baltimore. No fim, são parcialmente bem sucedidos em sua empreitada, pois em “The Wire” não existe felicidade nem tristeza plena, apenas causas e consequências dos seus atos, e pagam por isso.
Narratologicamente, “The Wire” segue o conceito de jornada coletiva, que se baseia numa jornada de múltiplas personagens que, eventualmente, se reúnem no percurso de uma história para a resolução de um problema comum. De certa forma, David Simon já fazia há 18 anos na TV o que a Marvel vem construindo em maior escala financeira e de difusão no cinema. Claro que a Marvel usa de outros recursos e também tem a importante componente transmedia nesta história, mas, na essência do que é a jornada coletiva, Simon já estava fazendo isso lá atrás e, de certa forma, repete o mesmo modelo em “The Deuce”, série que foi ao ar entre 2017 e 2019 também na HBO.
Não é fácil fazer uma jornada coletiva. Para isso, é preciso criar um universo e uma gama de personagens muito mais ampla que verdadeiramente interaja nele. Foram destacados aqui 36 personagens, mas há ainda pelo menos mais cinco ou seis que de alguma forma entram na dinâmica coletiva da série e um sem número de personagens fazendo pontuais elos de ligação em momentos específicos dela. Um filme ou uma série normal faz-se com muito menos personagens.
O escritor e produtor transmedia Jeff Gomez diz que “as histórias de jornada do herói são sobre como o indivíduo se atualiza ao alcançar uma mudança pessoal”, enquanto “as histórias de jornada coletiva são sobre como as comunidades se atualizam em sua tentativa de alcançar uma mudança sistêmica” [1].
Em “The Wire”, esta tentativa de mudança muitas vezes é frustrada. Há pequenos avanços em meio a grandes retrocessos e o círculo de eterno retorno sempre presente enquanto, filosoficamente, a série abraça o amor fati nietzschiano, o amor ao destino, mesmo em seus aspectos mais cruéis e terríveis.
“The Wire” é uma jornada extremamente rica e niilista. Terminá-la trouxe a contraditória sensação de prazer e tristeza. E assim são as grandes séries.
PS: Minha amiga diz há algum tempo que eu ia gostar de ver “Gilmore Girls”. Desta vez, vou tentar não demorar muito para ver.
[1] Jeff Gomez, “The collective journey comes to television” (Fevereiro 2017): https://blog.collectivejourney.com/the-collective-journey-story-model-comes-to-television-151bb4011ce2