sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Cotação da corneta: 'Jogos Vorazes: a esperança - parte 1'

Katniss sobre salvar o mundo: Tudo eu
Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence), “the girl on fire”, terminou "Jogos vorazes: Em chamas" (2013) botando para quebrar, quebrando a banca e mostrando que o Tordo é sinistro e o Distrito 12 é o que há. Se você não lembra o que ela fez, corre lá para rever o filme. Um ano depois, o que todos os seus fãs que não leram os livros de Suzanne Collins esperavam que ela fizesse? Ora, que reunisse um exército e fizesse um barulho na Capital. Revolution, baby, como já cantou o The Cult. Mas... Katniss se transformou numa garota lamuriosa, uma garota "ai, meu Deus, onde está o meu amado", the boring girl, a garota que chora demais! É too much para a corneta.

"Jogos vorazes - a esperança parte 1" (bom, a minha esperança é que melhore no segundo), pode ser dividido basicamente em dois temas.

1) É uma grande campanha política de fazer inveja aos marqueteiros dos dois partidos que andaram se digladiando até há pouco tempo no Brasil. Realmente o Ministério Público de Panem devia investigar de onde veio tanto dinheiro para patrocinar isso. Na Capital, com certeza rola caixa 2 e enriquecimento ilícito dos seus principais dirigentes. Não dá para confiar naquela cara de sonso do Donald Sutherland, vulgo presidente Snow. Cá entre nós, o único Snow que eu confio é o Jon de “Game of Thrones”. Mas se ali na Capital rola uma grande lavanderia, no distrito 13 também não me parece que seus governantes sejam tomados pela pureza da alma. A questão é que nunca antes na história de Panem se fez uma campanha política tão forte como a que vimos na primeira parte do terceiro filme.

2) É uma INSUPORTÁVEL história de amor adolescente com Katniss se equilibrando entre o jovem Gale (Liam Hemsworth), que a ama louca e incondicionalmente (que bonitinho né), e o fracote e peso morto do Peeta Mellark (Josh Hutcherson). Francamente, Katniss, ao invés de ficar sofrendo, talvez seja melhor você tentar alguém de outro dosha, como Vata ou Kapha. Dá uma estudada no Ayurveda. Os indianos eram sábios.

Dito isso, vamos começar a DESCONSTRUIR este novo “Jogos Vorazes”, onde a esperança não venceu o medo.

O filme se passa algum tempo depois daquela flechada que Katniss deu que abalou as estruturas do governo e aparentemente causou o fim do seu Big Brother sanguinolento. Quando todos imaginavam que a coisa ia ficar feia para a Capital e seria o início da reação dos rebeldes, a presidente Alma Coin (Julianne Moore), espécie de Bernie Ecclstone do distrito 13, e Plutarch Heavensbee (Philip Seymour Hoffman, a quem o filme é dedicado) resolvem fazer... MARKETING, campanha política, botar o bloco na rua.

A ideia seria conclamar os rebeldes em todos os distritos a lutarem pelo Tordo. Ou seja, Katniss seria transformada num cruzamento de Che Guevara com Martin Luther King. Se possível com um charme estilo Jacqueline Kennedy. A marca do Tordo seria espalhada pelo planeta a ponto de virarem produtos de merchandising (se rolassem uns brinquedos seria ótimo). Ai, bem, vocês sabem como isso funciona. Ficou lá o governo da Capital acusando a candidata de oposição de ser manipulada, mudar de posição ao sabor do vento, de ter posições radicais, campanha negativa, essas coisas. Enquanto isso, a oposição fazia campanhas criativas, dramáticas e que tentassem tocar o coração da população. Sem falar na repaginada no visual, nas promessas de campanha e visitas a lugares pobres como hospitais precários do distrito 8.

Os rebeldes têm até jingle. Não é tão bom quanto o do Eymael, é claro, mas Jennifer Lawrence se saiu tão bem no “The Voice” de Panem que a música que ela cantou, “The hanging tree”, chegou ao topo das paradas. Essa menina merece. É talentosa e já mostrava qualidade desde “Inverno da Alma” (2010).

Mas o problema é que apesar do trabalho dos marqueteiros, o mundo não vive uma democracia. Isso é um conceito arcaico que o distrito 13 aparentemente quer retomar numa política vintage. Ou seja, fica difícil engolir o marketing (e, convenhamos, a ideia não funciona direito) quando só pela força e derrubando a Capital é que as coisas podem ter alguma solução. Quero crer que algo maligno ou verdadeiramente interessante acontecerá no capítulo final dessa saga. Não ler o livro tem lá suas vantagens (mas não façam isso sempre. Ler é sempre melhor).

Aí chegamos na parte melodramática de “Jogos Vorazes”. Katniss não é uma candidata muito disciplinada. Ela tem (ou tinha) fogo no olhar. Mas o amor transforma as pessoas em malas. Ao menos para quem não está no meio de um. Então Katniss se transforma na chorona que fica gritando Peeeeetaaaa! Peeeetaaaa! o TEMPO INTEIRO. Se eu soubesse que seria assim, teria contado para dar um número preciso aos nobres leitores, mas me arriscaria a dizer que foram pelo menos 15 vezes gritando Peeeeetaaaa! Quem aguenta isso? Não foi para isso que você fazia Shakespeare quando era mais jovem, Jennifer.

No início da série, nossa heroína era apaixonada pelo Gale, mas é forçada a fingir um romance com Peeta dentro da lógica do show business para atrair audiência. O tempo passou, ela começou a lançar um olhar menos enviesado para aquele jovem frágil e agora quem está sobrando na pista é o coitado do Gale. Realmente não é fácil ser o irmão menos popular do Thor. O Loki que o diga. Ah, você não sabia que Liam era irmão de Chris Hemsworth? Liga não. O Woody Harrelson gravou quatro filmes com ele e também não sabia. 

Gale ainda demonstra espírito esportivo e altruísmo em meio a dor de cotovelo e até arrisca a própria vida por Katniss. Enquanto isso, ela fica ali no meio do fogo cruzado sentimental. E o que acontece quando uma heroína vive essa situação? Toma decisões erradas. É um tal de sugerir concessões bizarras para o presidente Snow, seguir direções equivocadas, todo o possível para comprometer a missão. Katniss parece a Carrie, de “Homeland”. Cega pelo seu Brody e só fazendo besteira. É preciso dar umas dicas para ela, mas como confiar em alguém se o seu guarda-costas é um lobista sem escrúpulos na Washington de “House of Cards”?

Assim, a franquia “Jogos Vorazes” nos coloca num impasse. Encerrará com chave de ouro e passará de ano ou será apenas mais uma história adolescente sem graça estilo “Crepúsculo”? Por enquanto estamos assim:

1) “Jogos Vorazes” (2012) – Razoável para bom. Um filme nota 6,5.

2) “Jogos Vorazes: Em Chamas” (2013) – Um filme bem bom. Talvez para um 8.

3) “Jogos Vorazes: A esperança – parte 1” – Decepcionante diante da expectativa.

Vamos ver o que o último capítulo nos reservará.

Ok, hora da média final. A história política não cola e é uma chatice o triângulo amoroso Katniss-Peeta-Gale. Mas o fim do filme dá uma compensada e deixa uma expectativa para dias melhores em novembro de 2015, quando estreia a segunda parte. E por mais que a corneta esteja aqui solapando o trabalho de Francis Lawrence, é preciso levar em conta que os fãs não saíram do cinema fazendo muxoxo. Ainda que eu também não tenha visto expressões do tipo: “Cara, tipo muuuito f...”. Deixemos, portanto, o novo Jogos Vorazes com uma nota 5. Mas, por favor, nada mais de Peeeetaaaa!!! no último filme, Jennifer.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Cotação da corneta: 'Trinta'

Matheus brilhando como Joãosinho Trinta
Se a corneta tivesse poderes celestiais, fosse uma espécie de Chico Xavier da galhofa, tentaria entrar em contato com Tim Maia, Cazuza e Renato Russo só para fazer uma pergunta. E ai? Viram o filme do seu colega Joãosinho Trinta? Queriam um igual né? Diante da provocação, Tim Maia provavelmente soltaria uma série de impropérios contra a corneta, que encerraria a comunicação antes que eles me matassem na Matrix do plano superior.

Tudo isso é porque "Trinta", a cinebiografia sobre o famoso carnavalesco Joãosinho Trinta (Matheus Nachtergale), nove vezes campeão do carnaval carioca, é beeeem superior ao filme dos seus coleguinhas artistas. Acho que ver este filme pode dar aquela vontade nos fãs dos músicos citados acima de torcerem por um novo trabalho, uma segunda chance para os três no cinema.

"Trinta" mostra como todo carnavalesco é um pouco MacGyver. Se o velho herói do seriado “Profissão Perigo” transformava um chiclete, um arame enferrujado e um isqueiro em bomba atômica, o carnavalesco consegue dar sentido a um enredo que começa nas lendas do Maranhão (e não estamos falando sobre uma famosa família local) e passa pela corte francesa. Bom, quem curte carnaval acha que tudo tem uma lógica e quem sou eu para contestar? O importante é fazer com que na quarta-feira de cinzas todos ouçam DEZ, NOTA DEZ!

Ao contrário dos filmes dos seus colegas famosos, o diretor Paulo Machline, acertou em um ponto que faz “Trinta” ser melhor: não tentou abraçar o mundo. Ele partiu de uma premissa do próprio carnavalesco, que no filme diz que “menos é mais”. Se na cena em questão, isso vira uma desculpa para uma personagem exibir, digamos, todo o seu esplendor, em “Trinta” é uma bola dentro que dá foco à história e a deixa mais coesa e amarrada.

O ponto fundamental aqui é o momento em que Joãosinho inicia a sua carreira solo substituindo Fernando Pamplona no Salgueiro. Ali, enquanto prepara o desfile “O rei de França na ilha da assombração”, em 1974, ele tem que lidar com a desconfiança da comunidade de que seria capaz de tocar um carnaval inteiro numa escola grande. Seu enciumado antagonista é o chefe do barracão Tião (o sempre ótimo Milhem Cortaz), que queria o emprego para ele e, diante da negativa de Germano (Ernani Moraes), o poderoso chefão da escola, faz de tudo para derrubar Joãosinho.

O carnavalesco, no entanto, consegue dobrar Tião e seu parceiro de barracão, Calça Larga (Fabricio Boliveira), outrora conhecido como João de Santo Cristo naquele filme “Faroeste Caboclo” (2013), baseado na música da Legião Urbana e que preferimos esquecer.

Enquanto isso, vamos acompanhando pílulas da vida de Joãosinho. De como o bailarino João Jorge veio do Maranhão para dançar no Theatro Municipal e acabou se transformando naquele que viria a ser um dos personagens mais importantes do carnaval carioca. Tudo com muito luxo e riqueza, afinal, quem gosta de miséria é intelectual. Ainda bem que a corneta é do povo.

Poderia dizer que dentre as cinebiografias recentes sobre personagens brasileiros, “Trinta” mostra ser a mais competente. Mas isso é papo de intelectual. Na linguagem da corneta, diria que Machline sambou na cara da sociedade. E por isso, o seu filme vai ganhar uma nota 7.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Cotação da corneta: 'Interestelar'

A dura vida dos astronautas
A corneta pensou em substituir o texto de hoje por uma bibliografia. Ao invés de parágrafos galhofentos, sugestões de textos e livros de nomes como Alexander Friedmann, Willem de Sitter, John Archibald Wheeler, Hermann Weyl e Kip Thorne. Ah, você não conhece estes cinco cavalheiros? Eu também não conhecia até a semana passada, quando Christopher Nolan bagunçou a minha cabeça com suas ideias absolutamente insanas. Os cinco são alguns dos nomes importantes de campos como matemática, física, astrofísica, cosmologia, entre outras coisas que vão se desdobrando a partir daí. Sim, amigos, é com isso que estamos lidando.

Além dos cinco cavalheiros acima (e poderia citar tantos outros), eu reforçaria os estudos de Isaac Newton e sugeriria um mergulho profundo nas teorias de Albert Einsten. Eu disse mergulho profundo. Não é sair por aí falando que E = mc2.

Terminado esse intensivão, você começará a entender "Interestelar". Sim, galera, Christopher Nolan abusou, forçou, arrombou a porta do espaço-tempo e chegou até a quinta dimensão porque para ele a complexidade de "A origem" (2010) era pouca. E fazer um filme de trás para frente como “Amnésia” (2000) era fichinha. Aliás, "Interestelar" faz "A origem" parecer quase uma comédia romântica. Pelo menos no quesito “entendimento da história”. Como filme, “A origem” é melhor.

Nolan é aquele cara com quem a gente combina as férias e você sugere: "Vamos para Paris? Berlim? Londres?". Aí Nolan para, pensa que isso é muito basicão, e diz: "Por que não vamos para Madagascar?". Simplicidade e obviedade não é com ele. Além de tudo o que vimos em “Amnésia” e “A origem”, o próprio "Batman - O Cavaleiro das Trevas" (2008) é muito mais um filme sobre terrorismo do que sobre quadrinhos tradicional com efeitos especiais e umas cenas maneiras para vender bonecos. Não é a toa que é um dos melhores do gênero. E agora que ele é uma grife, só fica mais fácil soltar, escancarar a criatividade.

Mas não tema "Interestelar". Mergulhe onde nenhum homem jamais esteve. Se jogue em quase três horas no desconhecido. Tire o pé do chão para flutuar na gravidade zero. Pois “Interestelar” é deveras interessante. E que vai te deixar meio atordoado ao sair do cinema, pensando naquela trama intrincada e naquelas teorias malucas que você não tomou conhecimento nem quando estava estudando para o vestibular. Buraco negro? Buraco de verme? Garganta? Tudo isso parece física, ops, acho que é física!

“Interestelar” pode ser visto de duas formas que se complementam, linhas paralelas que se encontram no infinito. Vamos a elas.

1) É basicamente uma história de amor e sobrevivência. Um pai que tenta salvar a vida dos filhos e consequentemente a vida da humanidade. Nada que você nunca tenha visto num filme de Bruce Willis ou Arnold Schwarzenegger.

2) É uma tentativa de Nolan de ganhar mais do que um Oscar, mas um Prêmio Nobel de Física. Então temos uma trama complexa que invade a cosmologia, manipula o tempo e faz você ver determinadas coisas sobre diferentes perspectivas. Enfim, aquele papo de quinta dimensão.

Vamos a história. Estamos num futuro apocalíptico pré-“Mad Max” (1979). A humanidade não ouviu os conselhos dos ambientalistas e agora a comida está ficando escassa. Água é luxo. E não se pode ver nem um jogo de beisebol dos Yankees comendo o tradicional cachorro-quente. Só resta pipoca, pois a única coisa que se pode cultivar na terra é milho. Mas isso também vai acabar. O planeta vive nas trevas e até a chegada do homem a lua foi desacreditada. A humanidade caminha a passos largos para acreditar no criacionismo.

É quando entra em cena Cooper (Matthew McCounaghey e seu sotaque de caipira do interior americano). No passado ele foi piloto da Nasa, era o cara, antes da agência ser desativada. Hoje ele é um fazendeiro, a profissão mais valorizada do momento. Mas, bem, a Nasa continuou funcionando na clandestinidade e Cooper chegou até ela por diversas razões sobre as quais não vou me estender.

Como a Terra está na U.T.I, caberá a McCounaghey e seus comparsas, a cientista Brand (Anne Hathaway) entre eles, encontrar um novo mundo habitável para a humanidade voltar a se reproduzir e viver feliz para sempre. E assim, em meio a todas as teorias cosmológicas, todas as equações complexas, todas as teorias explicadas no meio do nada e numa galáxia distante entre os cientistas como nas aulas de física do colégio (Ah, a cena do lápis perfurando a folha de papel...) temos a básica jornada do herói, que remete a Grécia antiga. Tudo acaba em Sófocles, Ésquilo ou Eurípedes.

No início, cheguei a pensar que “Interestelar” seria um cruzamento de “Sinais” (2002) com “Fonte da Vida” (2006) e “Gravidade” (2013) e mais uma pitada de "2001 - uma odisseia no espaço" (1968). Bom, em alguns exemplos isso não é necessariamente um elogio. O filme tem um lance de fantasma ou eles/os outros no estilo “Lost” no meio do milharal como no trabalho do M. Night Shyamalan, parece meio esquisito e hermético como o trabalho de Darren Aronofsky, e tem umas cenas bonitas e uma atriz que permanece com o cabelo impecável mesmo nos confins do Universo, como a Sandra Bullock no filme de Alfonso Cuarón. Sem contar que tem dois robôs inteligentes demais tal qual o Hal 9000 de Stanley Kubrick. Mas eu aprendi uma lição: Nunca se deve duvidar de Christopher Nolan.

Em toda a sua busca por uma nova fonte de vida para que a humanidade pudesse prosperar, Cooper terá que passar por diversas provações e fazer escolhas sobre qual dos três planetas previamente escolhidos tem condição de ser habitável. No meio disso, eles terão que lidar com forças da natureza que vão de uma onda gigante que faria o surfista Carlos Burle tremer nas bases a um frio polar daqueles que só a Islândia tem.

Tudo estava indo bem com Nolan usando os seus truques para nos entreter, mas ai o diretor dá aquela escorregada inaceitável ao fazer aquele discurso de que o amor vence tudo nessa vida. Foi o momento em que Nolan garoteou como um adolescente que acabou de encontrar a mulher da vida dele desta semana no baile da escola. Não me convenceu essa parte que mostra que por trás de todo o conhecimento e a ciência exibidos no filme, o coração é o essencial. Normalmente isso dá é em roubada.

Por falar em ciência, Kip Thorne, aliás, é o grande responsável pela viagem atual de Nolan. O físico americano é o cara cujas pesquisas se concentram em buracos negros, buracos de verme (ou de minhoca), deformações no tempo e ondas gravitacionais que tanto vemos no filme. Tudo desenvolvido a partir da teoria geral da relatividade. Pois é. Einstein é o outro culpado.

“Interestelar” é ambicioso. Alguns podem achar pedante ou pretensioso. Mas a corneta não vai se aliar a esse grupo. Prefere caminhar com os que acham a nova viagem de Nolan fascinante. Até porque, por trás de tantas teorias e cálculos complexos, há uma boa história. Por isso, Nolan vai ganhar uma nota 8.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Cotação da corneta: 'Boyhood'

As dores do crescimento
Richard Linklater adora uma DR. Se vocês lembram bem, ele fez Ethan Hawke e Julie Delpy discutirem a relação em três filmes separados num espaço de 18 anos: "Antes do Amanhecer” (1995), “Antes do Pôr-do-Sol” (2004) e “Antes da Meia-Noite” (2013). Tudo bem que em Viena, Paris e na Grécia eu discutiria fácil qualquer relação, mas isso não vem ao caso. Eu até desconfio que Linklater não fez mais filmes do gênero porque o dia só tem basicamente três estágios (manhã, tarde e noite) e faltaram ideias para novos títulos.

O tempo passou e dessa vez Linklater resolveu ser mais ambicioso. Colocou toda uma família para discutir a relação por 12 anos! E entre mortos e feridos... bem, veja o filme para saber se salvaram-se todos.

Vocês certamente já leram sobre a história de “Boyhood”. O filme passou no festival do Rio, está bem cotado e é figura fácil aí nas paradas de sucesso e nas redes sociais. Todo mundo está falando de "Boyhood" e a corneta não ia ficar de fora desse debate. A ideia de Linklater era contar a história de uma família por 12 anos, mas dispensando a maquiagem. O envelhecimento seria mostrado em tempo real.

Assim, anualmente o diretor se reunia com seus atores por uma semana ou mais para fazer uns takes descompromissados. Quase um hobby que cada um tinha entre um projeto e outro (e foram muitos como vocês podem ver aqui). “Boyhood” foi neste tempo para Linklater e seus atores como aquele projeto paralelo interessante que os integrantes de bandas de sucesso têm. Uma espécie de Gorillaz do Damon Albarn ou o The Raconteurs do Jack White.

É assim que começamos a acompanhar a história de Mason (Ellar Coltrane), um menino monossilábico de seis anos que pelos próximos 12 passará por tudo o que um jovem passa nessa fase de tanta intensidade, desconfiança e incertezas da vida. Inclusive será o adolescente mala que todos nós já fomos um dia. Mas se você leitor for adolescente, saiba que és uma exceção. Você é incrível.

No início, a vida de Mason era muito difícil. Só para vocês terem uma ideia, Steve Jobs ainda não tinha inventado algumas das maiores invenções da humanidade no século XXI, Mark Zuckerberg ainda não tinha lançado o Facebook, a melhor rede social que existe para falarmos de como está calor lá fora e postarmos fotos de bichinhos fofos, e o COLDPLAY era a banda do momento.

Eles tinham lançado dois anos antes o “Parachutes” (2000) e vocês não têm noção do pesadelo que era ligar a rádio e ouvir "Yellow". Ir ao dentista e na sala de espera ouvir “Yellow”. Abrir a janela, vislumbrar aquele sol bonito e amarelo e lembrar de... “Yellow”! Nem a Gwyneth Paltrow aguentou muito tempo com o Chris Martin. O casamento se encerrou em dez anos, menos tempo do que Linklater levou para filmar “Boyhood”. Como era possível viver nesse mundo com tão poucas possibilidades de entretenimento?


Eram tempos difíceis, mas Mason tinha mais pedras no meio do caminho. Entre elas, uma família para lá de problemática. Através do jovem observamos o seu pai, também chamado Mason (Ethan Hawke, um especialista em DR), tentando crescer. Ele teve dois filhos muito jovem, e ainda é um irresponsável que sonha em ser músico ao invés de ir garantir o leite das crianças num emprego sério. Vemos ainda a sua mãe (Não, não é Julie Delpy e sim Patricia Arquette), uma mulher especializada em maridos com alto teor alcóolico, mas que se dedica com afinco e amor à criação dos seus filhos. É aquela mãe especial que todos amamos. E observamos Linklater praticando nepotismo ao escalar a própria filha, Lorelei, para o papel de Samantha, irmã de Mason. Que mau exemplo, tsc, tsc...

E assim a vida vai passando. Acompanhamos Mason e Samantha crescendo e mudando completamente nesse tempo, passando por conflitos típicos de adolescente (quem nunca?) e a trilha sonora melhorando sensivelmente. Neste ponto é sempre bom ter um pai que gosta de Beatles e que te prepara um Black Álbum só com o best of jamais feito das carreiras-solo de John, Paul, George e Ringo. “Band on The Run”, “Sweet Lord” e outros clássicos são fundamentais para a formação do ser humano.


Com o tempo passando, Mason vai descobrindo um talento para a fotografia, se questionando sobre que lugar tem ou deseja ter no mundo, reflete sobre as idiossincrasias do Facebook e pinta as unhas de roxo, lançando tendências. E, claro, como se não bastasse todos os problemas pelos quais passa, tem o pior aniversário da vida (quem nunca?), quando recebe, aos 16 anos, uma Bíblia, um terno e uma espingarda de presentes. Típico kit do conservador básico do Texas. Por sorte, o pai está por perto e sempre existirão os Beatles.


Já se passaram duas das quase três horas de “Boyhood” e a corneta se questiona: Como pode um filme sobre a vida como ela é ser tão bom? “Boyhood” não tem efeitos especiais, atuações daquelas de Oscar, truques e viradas de roteiro mirabolantes. Poderia ser um documentário sobre a vida de uma família americana se não fosse um roteiro escrito, lapidado por mais de uma década.

“Boyhood” é a vida comum, o dia a dia lavando pratos, limpando a casa, lidando com os problemas, procurando emprego, fazendo escolhas, tomando decisões certas e erradas... situações pelas quais todo mundo passa. E talvez por isso seja tão interessante a participação de Patrícia e das duas crianças.

Vou fazer a minha filosofia de botequim agora. Talvez tudo seja tão naturalmente real porque os jovens provavelmente passaram por problemas e questões semelhantes aos exibidos no filme em todo o período de filmagem. E Patricia sabe como é criar duas crianças. Ela vive isso em casa. Os demais atores "interpretam" mais. E é fantástico perceber a passagem de tempo neles sem qualquer recurso que não seja a própria passagem da vida. Essa foi realmente uma ótima ideia.

O projeto de Linklater era ambicioso porque o tornava refém do tempo. Muita coisa podia acontecer em 12 anos. Mas o diretor confiou na velha canção de Jerry Ragovoy, regravada pelos Stones, que diz que o tempo está ao seu lado e seguiu em frente. E o resultado foi fascinante. “Boyhood” tocou o coração da corneta (ela não é tão má assim, vai). Um filme simples, mas paradoxalmente complicado de realizar que Linklater transformou numa pequena obra-prima. Quem deu Jesse e Celine ao mundo já tinha o total agradecimento da corneta, mas o diretor conseguiu se superar. A nota de “Boyhood” é 8,5.