sábado, 23 de fevereiro de 2019

Comentários e o ranking do Oscar

Todo ano é a mesma coisa. Nós esperamos aquele fim de semana mágico de fevereiro para podermos finalmente falar mal do Oscar! Este ano pode não estar entre os mais incríveis, mas apenas esperamos que a Academia opte pelo cinema e não por uma playlist do Spotify com imagens. 

Poucos filmes entre os indicados são excepcionais, mas há muitos muito bons e outros sobre o qual você pensa: “O que isso está fazendo aqui?”. Porém, a nota média do índice Corneta dos indicados a melhor filme ficou em 7,6. Isso é um pouquinho acima do índice Corneta do ano passado, que ficou em 7,5. 

Esse ano eu não vou ficar de mimimi lamentando a ausência de tudo. Tipo, ahh, e a Viola Davis? E a Nicole Kidman? E o Steve Carrell? E o Chalamet? E o Robert Redford? E o Damien Chazelle? Por que “Primeiro Homem” e “Beautiful Boy”, não estão concorrendo? Ok, eu já fiz o meu mimimi. 

Mas avancemos...

Está na hora de usar a manopla do infinito de Thanos e, mediante o poder absoluto dado por mim a mim mesmo, tecer os comentários e, claro, divulgar o RANKING final dos filmes do Oscar. Afinal, é só para criar essa polêmica que eu me dedico a isso todo ano. 

FILME - Nosso apoio geral e irrestrito vai para “Infiltrado na Klan”, vencedor do Corneta Awards de melhor filme de 2018 e, de fato, o mais interessante entre os oito indicados. Porém, se “Roma”, “Vice”, “Green Book”, “A favorita” ou “Pantera Negra” vencerem não reclamaremos. Já “Nasce uma estrela” seria forçado demais. E “Bohemian Rhapsody” seria um erro mil vezes mais absurdo do que o de “Spotlight”. De fato, seria o primeiro filme pavorosamente ruim a ganhar desde o Oscar de “Titanic” em 1998. E não queremos que isso aconteça. 

ATOR - Christian Bale é um gênio e tem que levar (Inclusive, saudades Batman). Mas não reclamaria se o careca dourado fosse para Viggo Mortensen. 

ATRIZ - Eu sei que Glenn Close e Lady Gaga andaram dividindo as atenções nas premiações pré-Oscar, porém a Glenn Close respirando já é melhor que a Lady Gaga. E por mais que a cantora não esteja mal em “Nasce uma estrela”, ainda a colocaria atrás de Olivia Colman, Yalitza Aparício e Melissa McCarthy no meu ranking. 

DIRETOR - Se o Alfonso Cuarón não ganhar eu desisto dessa vida de ver todos os filmes do Oscar. Porém, seria bem legal ver o Spike Lee vencendo. 

ATRIZ COADJUVANTE - AMY ADAMS, AMY ADAMS. É preciso dizer em letras garrafais para que o eco chegue em Los Angeles. Mas o meu plano B seria Regina King. 

ATOR COADJUVANTE - Mahershala Ali pareceu-me o melhor dentre os cinco indicados. Porém, também seria legal ver Richard E. Grant vencendo. O trabalho dele em “Poderia me perdoar?” é muito bom. 

ROTEIRO ADAPTADO - Não serei picareta neste ano. Impossível votar sem conhecer as obras originais para comparar. Embora eu duvide que o povo da Academia tenha esse cuidado. Mas, de forma leiga, eu gostei do que vi em “Se a rua Beale falasse”, “Infiltrado na Klan” e “A balada de Buster Scruggs”. 

ROTEIRO ORIGINAL - “Roma”, somente “Roma” e não se fala mais nisso. “Vice” e “Green Book” também têm o meu carinho. 

FILME ESTRANGEIRO - Quase sempre é a categoria mais forte. O que é normal. Afinal, o mundo inteiro é reduzido a ela. Todos os indicados são bons, mas “Cafarnaum” é excepcional e levaria o meu prêmio. 

ANIMAÇÃO - “Ilha dos cachorros” é o mais legal dos indicados, mas também seria bom ver “Homem-Aranha no Aranhaverso” vencer. É uma história que poderia correr mal, mas foi bem feita e ainda é melhor que o último filme do Homem-Aranha. 

CATEGORIAS TÉCNICAS: 

Trilha sonora - “Se a rua Beale falasse”. Que trilha bonita. 
Fotografia - “Roma”, mas gosto também de “Guerra Fria”
Edição - “Vice”. Ou “Infiltrado na Klan”. A maior piada desta categoria é ver “Bohemian Rhapsody” entre os indicados,  pois entre seus milhões de defeitos está justamente a edição. O que só comprova que eu também poderia votar no Oscar mesmo sendo leigo em muita coisa. 
Figurino - Eu não entendo de roupa. Mas como já vimos que tem gente que vota sem entender de edição eu vou votar em “Duas rainhas”. 
Edição de som e mixagem de som - “Um lugar silencioso” e “O primeiro homem”. Só como prêmios de consolação para filmes que mereciam mais. 
Direção de arte - “Roma”
Canção original - “Shallow”, de “Nasce uma estrela”, só para vermos a Lady Gaga chorando de novo e achando incrível como se ela nunca ganhasse prêmios na vida. 
Efeitos visuais - “Vingadores: Guerra Infinita” porque aqui é team Marvel. 
Maquiagem e penteado - Eu mantenho o mesmo corte de cabelo há 30 anos. Não entendo de maquiagem e penteado. Mas eu vou votar em “Vice”, pois o trabalho em Christian Bale e Amy Adams pareceu muito bem feito. 

E para fechar vamos ao RANKING do Oscar: 

1- “Cafarnaum” (“Capharnaüm”)
2- lnfiltrado na Klan” (“BlacKKKlansman”)
3- “Um lugar silencioso” (“A quiet place”)
4- “Roma”

(Os filmes acima estão classificados para a Copa Libertadores)

5- “O primeiro homem” (“First Man”)
6- “Pantera Negra” (“Black Panther”)
7- “A balada de Buster Scruggs” (“The Ballad of Buster Scruggs”) 
8- “Se a rua Beale falasse” (“If Beale Street Could Talk”)
9- “Vice”
10- “Nunca deixes de olhar” (“Werk ohne Autor”)
11- “Green Book”
12- “A favorita” (“The favourite”)

(Os filmes acima garantiram uma vaga na Copa Sul-Americana) 

13- “Vingadores: guerra infinita” (“Avengers: Infinity War”)
14- “A esposa” (“The Wife”)
15- “Guerra Fria” (“Zimna Wojna”)
16- “Ilha dos cachorros” (“Isle of dogs”)
17- “Assunto de família” (“Manbiki kazoku”)
18- “Nasce uma estrela” (“A star is born”)
19- “Jogador número 1” (“Ready player one”)
20- “Homem-Aranha no aranhaverso” (“Spider-man: into the spider-verse”)
21- “RBG”
22- “Han Solo: uma história Star Wars” (“Solo: a Star Wars Story”) 
23- “No portal da eternidade” ("At Eternity’s gate”)
24- “Poderia me perdoar?” (“Can you forgive me?”)
25- “Duas rainhas” (“Mary Queen of Scots”)
26- “Os incríveis 2” (“Incredibles 2”)
27- “O retorno de Mary Poppins” (“Mary Poppins returns”)
28- “Wi-Fi Ralph: quebrando a internet” (“Ralph breaks the internet”)
29- “No coração da escuridão” (“First Reformed”)

(Os filmes abaixo foram rebaixados para a segunda divisão) 

30- “Christopher Robin - um reencontro inesquecível” (“Christopher Robin”)
31- “Bohemian Rhapsody”
32- “Na Fronteira” (“Gräns”)
33- “Mirai”

O manifesto Black Lives Matter de Barry Jenkins

Um romance interrompido pela injustiça
O cinema sempre tentou acompanhar as transformações da sociedade. Na maioria das vezes, de forma extremamente lenta e atrasada. Em outras, dando um bom retrato de um momento bem atual. Uma outra forma de ver, um pouco mais cínica, é verdade, é que o cinema sempre se aproveita de ondas para lucrar. Afinal, isso ainda é uma indústria. E indústria precisa dar lucro. Mas gosto de pensar, que a sede de faturar pode muito bem andar junta com a necessidade de um compromisso sociológico, político e cultural. E que ações e reações surgem a partir daí em movimentos peristálticos que geram bons trabalhos e outros nem tanto.

Dois movimentos, de certa forma, ajudaram a catapultar para um lugar de destaque, e muito próximo do topo em alguns casos, e dar visibilidade a alguns diretores negros que estão sendo responsáveis por fazer uma gama de bons filmes nesta década. Um deles é o Black Lives Matter (Vidas negras importam), iniciado a partir de protestos em torno da morte de negros por policiais nos Estados Unidos. Dois momentos de auge aconteceram em 2013 e em 2014. Em 2013, George Zimmerman foi absolvido da morte a tiros do adolescente negro Trayvon Martin, o que gerou muitos protestos. No ano seguinte, as manifestações de rua se intensificaram quando após a morte de dois negros nos Estados Unidos: Michael Brown e Eric Garner. O outro foi o #Oscarsowhite, protesto contra a edição do Oscar de 2016, quando não havia negros concorrendo nas principais categorias.

Na esteira, principalmente do primeiro movimento, Hollywood talvez tenha começado a perceber que as histórias negras também importam. Foi quando nomes como Ryan Coogler, Jordan Peele, Ava DuVerney, Dee Rees e Barry Jenkins começaram a ganhar destaque. Além de Steve McQueen, que não é tão contemporâneo deste quarteto.

Só a partir de 2013, Coogler foi responsável por revigorar a franquia de Rocky Balboa com “Creed: nascido para lutar” (2015) e por fazer um dos melhores filmes de super-heróis de todos os tempos, o “Pantera Negra” (2018). Ele ainda está envolvido na sequência do filme do herói da Marvel. DuVernay fez “Selma: uma luta pela igualdade”, sobre a marcha da cidade americana até Montgomery, no Alabama, em uma campanha idealizada por Martin Luther King pela luta dos direitos de voto dos negros. Dee Rees realizou "Mudbound", história de um negro que foi herói da Segunda Guerra Mundial e volta para o Mississippi para lidar com o terrível racismo na região. Pelo filme, ela recebeu uma indicação ao Oscar de roteiro. Jordan Peele realizou o “Corra!”, um dos melhores filmes de terror recentes, que aborda muito fortemente a questão do racismo. E neste ano lançará “Nós”, outro filme do gênero e também com uma série de atores negros. McQueen realizou “12 anos de escravidão” (2013), filme pelo qual ele ganhou o Oscar, e recentemente “As viúvas” (2018), cuja protagonista é a negra Viola Davis. E que merecia uma indicação ao Oscar.

Já Barry Jenkins fez “Moonlight” (2016), belíssima história sobre um homem negro e gay, cuja mãe tinha problemas com drogas, filme pelo qual ganhou o Oscar, e agora volta a disputar três prêmios da academia com “Se a rua Beale falasse” ("If Beale Street Could Talk", no original).

Seu novo filme é uma narrativa sobre a resistência. Ele tem a força de quem enche os pulmões para gritar que as vidas negras precisam importar. Ao mesmo tempo, é uma história de amor tão romântica e tradicional, por contar a história de dois jovens que cresceram juntos, se apaixonaram e planejavam construir a vida toda juntos até uma sentença falsa e uma prisão injusta mudarem a vida deles para sempre. Interromperem sonhos que já eram tão difíceis de realizar pela estupidez que é o racismo e o julgamento pela cor da pele das pessoas.

Ao mesmo tempo em que vai nos contando essa história tão bonita de amor entre Tish (Kiki Layne) e Fonny (Stephan James), Jenkins expõe as dificuldades que eles sofrem por serem negros, ainda que não tenham nada que lhes seja desabonador. A falta de um emprego bom, a dificuldade para alugar uma casa, o olhar enviesado da polícia... Cada dia é uma batalha vencida, cada novo dia é um recomeçar pisando em ovos, mas sem desistir na busca do sonho de uma vida melhor a cada geração. E o diretor mostra que só a força do amor daquele casal e da família no entorno seguram essa grande batalha que é viver.

De um lado, Jenkins conta o presente, a vida passando enquanto Fonny mofa na cadeia após ser acusado de estupro em um processo viciado, cheio de buracos na narrativa, mas com pouca esperança de reversão, pois onde o racismo ainda impera tão fortemente, suas chances são pequenas.

Do outro, há essa construção do romance a partir dos fatos passados, antes da prisão. Os olhares dos jovens, a primeira noite numa tocante cena de sexo. Tão ou mais bonita quanto a cena do metrô, quando eles se admiram num local tão banal. Tudo isso com uma trilha sonora de encher os olhos. Eis outro dos pontos fortes do filme.

Jenkins compõe sua história a partir de um mosaico. Não há uma linearidade nas ações. Cabe ao espectador compor e compreender o todo da história a partir dos fragmentos que ele vai colocando na tela. Mas ao mesmo tempo, tudo tem uma coesão que torna relativamente fácil o entendimento.

“Se a rua Beale falasse” pode não ser tão brilhante quanto “Moonlight”, mas quão bonito é o filme. Quão bonita é a forma com que Jenkins conta suas histórias. E seu desfecho mostra que o racismo continua vencendo e continuamos muito longe de uma igualdade. Até quando?


Cotação da Corneta: nota 8.

Indicações ao Oscar: Atriz coadjuvante (Regina King), roteiro adaptado e trilha sonora original.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O implacável e odiado vice de Bush

Christian Bale monstruoso no papel de um monstro
Há quatro anos, Adam McKay fez um dos filmes mais divertidos e didáticos sobre a economia e a explosão da grande bolha imobiliária americana com “A grande aposta” (Thebig short, no original). Com uma linguagem ágil e fincada na cultura pop, o diretor explicava de forma simples como alguns quebraram e outros lucraram muito naquela crise das hipotecas americanas. Em resumo, havia ali um bando de falcões que souberam agarrar uma oportunidade e foram a caça. “Vice” segue o mesmo modelo de linguagem, narrativa e premissa. A única diferença é que não tem o mesmo humor de “A grande aposta”. Talvez haja uma leve ironia aqui, outra ali, mas era realmente impossível retratar a vida daquele que deve ter sido o mais ativo vice-presidente da história americana com humor. 

“Vice” é a história de um homem que não era ninguém e que se transformou no poderoso vice-presidente do governo de George W. Bush (2001-2009). O filme é impiedoso com Dick Cheney (um Christian Bale num estado em que não há adjetivos para elogia-lo). Na primeira parte, retrata Cheney como um fracassado, alcoólatra e aluno medíocre. No restante do filme, Cheney é um oportunista que soube montar no cavalo selado da história e conduzir-se aos mais altos escalões do governo americano com um pensamento extremamente conservador, sem medir quaisquer consequências e atropelando quem ele quiser para estar na crista do poder. E definitivamente este retrato não poderia deixar de ser diferente. 

Cheney foi durante muito tempo quase um fantasma, mas o filme compactua com e confirma a hipótese de que ele era o braço de ferro da administração Bush (Sam Rockwell). Coube a ele, com uma série de manobras e contando com a participação ativa de correligionários em várias instâncias do poder, esticar ao máximo a legislação americana para iniciar guerras infundadas no Afeganistão e no Iraque. Tudo com a anuência de um presidente fraco e quase servil aos desejos de Cheney e a quem fez todas as vontades para tê-lo ao lado na chapa quando concorreu pela presidência com o democrata Al Gore. 

Narrado por um soldado americano, o que foi uma boa sacada do filme, “Vice” mostra como uma pessoa medíocre e que tinha tudo para se transformar num ser humano irrelevante, acabou agarrando uma oportunidade de fazer um estágio no Congresso americano e se colou às pessoas certas no poder. A primeira delas, Donald Rumsfeld (Steve Carrell), ex-chefe de gabinete de Gerald Ford e que também ocupara cargos no governo Nixon e viria a ser o secretário de Defesa do governo Bush. 

O filme passa a impressão de que Cheney, na verdade, era um líder invisível para o público de toda uma geração de republicanos e a voz dos conservadores americanos contra os “avanços” implementados pelos democratas que, por ventura, ocuparam a Casa Branca. No caso, desde que Cheney surgiu no cenário político, os únicos democratas eleitos presidentes foram Jimmy Carter e Bil Clinton, que comandaram a Casa Branca por 12 anos. Já os presidentes republicanos foram quatro - Gerald Ford, Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush - comandando a Casa Branca por um total de 23 anos. Barack Obama representou de vez o fim da geração Cheney, hoje com 78 anos. Mas até lá muito estrago foi feito. 

De fato, o auge do poder de Cheney foi quando ele ocupou a vice-presidência. Cargo que, como mostra o filme, ele só aceitou depois de estudar em como transformá-lo de algo em que considerava insignificante a poderoso e sem qualquer tipo de fiscalização. Ao mesmo tempo, que exigiu ao então candidato Bush o direito de cuidar de uma série de áreas estratégicas para o governo americano, como a energia e as forças armadas. 

Cheney viu a oportunidade de, como brinca o filme, transformar-se num Galactus, o devorador de mundos das histórias em quadrinhos da Marvel. É assim o fez. Com a convicção de que estava fazendo o certo, e o melhor da atuação de Bale é a demonstração desta convicção de forma tão real e cristalina, Cheney transformou o mundo em um lugar pior iniciando uma guerra no Afeganistão contra a Al-Qaeda para caçar Osama Bin Laden. Mas a então chamada Guerra ao Terror do governo Bush não era suficiente para ganhar o apoio da população americana. Era preciso um alvo palatável para o povo. Um país com fronteiras e um líder. 

Foi assim que Cheney uniu o útil ao agradável, o desejo de retirar Saddam Hussein do poder, e iniciou uma guerra no Iraque com informações falsas e manipulação de notícias que convenceram até a imprensa e os principais líderes do mundo. Em troca, o que Cheney ganhou foi a responsabilidade direta pela criação de uma das maiores organizações terroristas do mundo: o Estado Islâmico. 

“Vice” é implacável, didático e conta com um elenco de atores que só abrilhantam ainda mais o filme. Bale está um monstro no papel principal, mas Amy Adams não fica atrás ao fazer a esposa de Cheney, Lynne. E ainda há Steve Carrell e Sam Rockwell muito bem, além de atores em papéis menores que souberam incorporar bem a ideia do cinema de Mckay de contar histórias baseado em conexões com a cultura pop e linguagem ágil e leve, por mais que em vários momentos do filme dê um embrulho no estômago. 

De fato, Mckay seria um bom professor de história se não fizesse cinema. E a cena auto irônica no pós-crédito é a cereja no bolo. Além de mostrar como aquele período ajudou a inaugurar uma cultura de fake news que impera hoje em dia e que ajudou a eleger nomes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil. 


Cotação da Corneta: nota 8. 

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Cafarnaum, uma obra-prima dura e brilhante

Yonas, Zain e a jornada dura de "Cafarnaum"
Um antigo e famoso carnavalesco chamado Joãosinho Trinta dizia que “o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Era uma de suas frases mais marcantes. É muito fácil sentar na privilegiada cadeira de um cinema com ar condicionado e todas as facilidades que uma vida privilegiada pode dar e “admirar” com ares de sociólogo a miséria exposta pela diretora libanesa Nadine Labaki, e sair falando maravilhas sobre “Cafarnaum” (Capharnaüm, no original). É extremamente fácil contemplar a sofrida saga de Zain (Zain Al Rafeea), posar de intelectual de esquerda de mesa de bar e dissertar sobre as injustiças sociais e a necessidade de se buscar uma sociedade mais igualitária e menos cruel. 

Estas são interpretações legítimas, mas vou tentar fugir um pouco delas sob pena de parecer tão insensível e distante quanto a imagem da advogada de Zain na trama, vivida pela própria diretora, que fica sem reação diante do discurso da mãe do menino no tribunal dizendo que ela nunca saberia o que é ter a vida dela. E jamais aguentaria o que ela aguentou. Esta é uma das muitas cenas muito fortes deste filme. De fato, tal qual a advogada, por mais que eu pudesse me sensibilizar com todo o drama, por mais que eu pudesse mostrar empatia, eu jamais saberia o que é viver e como descrever o que é estar tão à margem de uma sociedade como Zain e sua família.  

“Cafarnaum” é uma obra-prima com a qual raras vezes nos deparamos diante de nós. É também um filme sobre como falhamos como seres humanos nos mais variados aspectos. A exploração da miséria, o trabalho escravo, a violação dos direitos mais básicos, famílias devastadas pela pobreza e pela falta de perspectiva de uma situação melhor, a ilegalidade da vida de imigrante, casamentos arranjados em troca de dinheiro, pais negligentes com seus filhos. “Cafarnaum” é um rosário de tragédias pessoais exibidos em 125 minutos de filme.

É quase como se a região permanecesse até hoje sofrendo da negação de Cristo. O nome do filme remete à cidade bíblica que ficava na margem norte do mar da Galileia. Perto passava a importante Via Maris (estrada do mar), que ligava o Egito, à Síria e ao Líbano. Na Bíblia, Cafarnaum é um dos lugares onde Jesus realizou uma série de milagres, como dois exorcismos, a cura da sogra de Pedro de uma enfermidade, e a cura de um paralítico, na tão conhecida passagem da Bíblia, onde Jesus disse ao homem: “Levanta-te e anda”. Mas, segundo consta na história, o povo da cidade também acabou por não se arrepender dos seus pecados e se afastou de Jesus, que teria previsto a destruição da cidade. A partir daí, Cafarnaum, que era um centro de cobranças de impostos e onde também havia um posto militar romano entrou em declínio tornando-se desabitada no século V depois de Cristo.

Se é possível traçar um paralelo entre a Cafarnaum bíblica e o Líbano traçado por Nadine ela está justamente na miséria moral do ser humano que explora uns aos outros, mesmo nas camadas mais baixas. O ser humano que não se arrepende dos seus pecados e segue reproduzindo os comportamentos exploratórios e vis a cada instante. 

No centro do filme está a história do jovem Zain (vivido monstruosamente pelo menino Zain Al Rafeea). O jovem de 12 anos forçado a ter a maturidade de um adulto por conta da negligência dos seus pais, foi preso e condenado a cinco anos na prisão por ter estaqueado um homem que se casara com a sua irmã, Sahani. O motivo do crime foi a morte da menina de 11 anos, logo após a sua gravidez. 

Mais velho dos seus muito irmãos, Zain fora obrigado a amadurecer a força para ajudar no sustento da família. E é por já ter uma consciência quase de adulto no corpo de uma criança que o jovem resolve processar os pais pelo crime de lhes ter dado a vida. Zain considera que seus pais foram criminosamente negligentes com toda a família e não podem mais ter filhos. As provas estavam na sua irmã morta e nele mesmo, um adolescente preso e que sequer fora formalmente registrado. 

O filme vai alternando cenas do julgamento com a jornada de Zain nas ruas do Líbano. A vida difícil, as dificuldades para comer, a falta de esperança após perder a irmã que tinha menstruado pela primeira vez recentemente para um homem que só queria abusar dela...

Até que vem a fuga e Zain se depara com a imigrante etíope Rahil (Yordanos Shiferaw), que o acolhe. Zain, então, passa a cuidar do seu filho, Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), até o dia em que ela simplesmente não volta. Ilegal, Rahil é pega pela polícia, deixando Zain sozinho cuidando de Yonas. 

É um dos momentos mais dramáticos do filme o período em que Zain se vê num papel de pai. É de partir o coração vê-lo tentar e tentar fazer o mais correto e se virar como dar para alimentar a criança e cuidar dela. Tudo até o momento em que não tem mais forças porque a vida entre os que estão à margem simplesmente não consegue avançar. 

Vemos tudo isso pelos olhos de Zain. Um menino que não encontra heróis de Hollywood para ajudá-lo. O mais próximo disso é o velho “Homem-Barata”, o “primo do Homem-Aranha”, que cruza o seu caminho. Zain precisa ser o herói dele mesmo. Tão jovem, o menino sente-se carregando um fardo enorme da existência quando tudo o que desejava era ser um homem bom. E o discurso dele ao fim do filme é absolutamente tocante ao mesmo tempo em que é muito duro.

“Cafarnaum” merecia mais do que uma mera indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Talvez seja o melhor de todos os que concorrem ao Oscar. Pelo menos Cannes reconheceu o seu valor, dando-lhe três prêmios no ano passado. Nadine Labaki realizou um filme duro e brilhante que merece ser visto por todos. 

Cotação da Corneta: nota 10.

Indicação ao Oscar: melhor filme estrangeiro.

As crianças mimadas da rainha em "A favorita"

Ciúme, inveja e muita sabotagem
É curioso pensar que o filme mais convencional e menos "insano" de Yorgos Lanthimos esteja sendo o mais bem sucedido de sua carreira. De fato, “A favorita” (The favourite, no original), que vem colecionando premiações. Já são um total de 134, com direito a um Globo de Ouro para a atriz Olivia Colman e sete prêmios Bafta, O filme ainda ganhou dez indicações ao Oscar. Mas “A favorita” está longe de ter as complicações, os sadismos e de causar aquele desconforto que tinham os seus trabalhos anteriores, “O sacrifício do cervo sagrado” (The killing of a sacreddeer) e “O lagosta” (The Lobster). Com um filme mais palatável e que não foi escrito por Lanthimos e seu parceiro dos últimos trabalhos, Efthymis Filippou, o diretor grego acabou conseguindo a chance de ganhar mais simpatia dos membros da academia. 

E isto prova que por mais que o Oscar tente ser eventualmente mais simpático a outros tipos de produção com menos cara de Oscar - e a indicação de “Pantera Negra” a melhor filme sinaliza para isso - a academia tem sempre seus limites. Filmes em que você tem que decidir sobre a morte ou não de um membro da família com ecos na mitologia grega como “O sacrifício do cervo sagrado” ou com roteiros um pouco mais intrincados como “O Lagosta” ainda não chegam tão longe. Tudo, no entanto, pode mudar com os ventos.

Mas é claro que “A favorita” não deixa de ser um bom filme por causa disso. Se há uma marca de Lanthimos neste filme é a ironia e o quase desprezo com que seus personagens são tratados. Lanthimos é quase maravilhosamente cruel ao ridicularizar a realeza com uma sutileza e ao mesmo tempo um tom caricatural de um grande chargista. Tudo com direito a algumas tomadas que remetem a um espectador que parece estar apenas a espreita, olhando pelo buraco da fechadura e cenários de um exagero kitsch, um luxo que beira de forma provocadora ao mau gosto.

Nas suas mãos, toda a tradição da monarquia é patética. Da forma como a rainha deve ser tratada (nunca se virar para ela, não olhar para ela sem ser solicitado) a maquiagem ridícula dos homens e até uma pífia corrida de patos e de lagostas. Tudo soa kitsch como se Lanthimos nos dissesse: “Como sustentamos esse teatro ridículo por tantos séculos e ainda hoje?” 

No centro de “A favorita” está uma disputa que envolve ódio, ciúme, inveja entre duas mulheres, Lady Sarah (Rachel Weisz) e Abigail (Emma Stone) pela atenção da rainha Anne (maravilhosamente vivida por Olivia Colman). A briga de é ridícula, infantil. Pior, de crianças ricas e mimadas.

Desde o princípio estabelece-se uma rivalidade entre as duas primas distantes. Uma querendo manter o poder de influência sobre a rainha e, por consequência, sobre o governo, que enfrenta uma batalha militar contra a França. A outra, uma ex-lady que perdeu tudo em algum casamento fracassado querendo recuperar o dinheiro e o status que outrora tivera. Tudo é sobre poder, influência e riqueza.

Para isso, as duas usam todas as armas que tem. Se sabotam, se ironizam, tudo com o olhar perceptivo da rainha, que adora a disputa das duas para seduzir ela. No fundo, a rainha tem uma sagacidade ao mesmo tempo em que Lanthimos expõe as esdrúxulas excentricidades dos monarcas. 

No fundo, a questão da guerra dentro e fora do palácio tem mais a ver com o humor da rainha e os jogos políticos e extra políticos dentro do palácio do que propriamente uma questão prática e objetiva. Mas é assim em qualquer cenário político, poderíamos argumentar? Sim, mas quando se trata da realeza isso ganha ainda mais proporções nas futilidades e excentricidades da corte. 

Lanthimos filmou o ridículo com uma mistura de sátira e veneno e, melhor de tudo, fazendo com que tudo pareça muito sério. Não é o seu filme mais interessante, mas como não se deliciar com a exibição do luxo e do kitsch numa corte de valores fúteis e miseráveis como a construída pelo diretor grego? 

De fato, Lanthimos conseguiu de novo. E sobre isso só podemos aplaudir. 

Cotação da Corneta: nota 8

Indicações ao Oscar: melhor filme, atriz (Olivia Colman), diretor (Yorgos Lanthimos), atriz coadjuvante (Emma Stone e Rachel Weisz), roteiro original, edição, fotografia, figurino e direção de arte.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

A volta do velho Clint

Esse é o Clint que queremos
Em seus últimos trabalhos, Clint Eastwood vinha se dedicando a heróis improváveis e traçando um quase memorial de um jeito de ser que o americano se vende para o mundo. Aquela figura que nos momentos mais improváveis salvará a pátria e revelar-se-á um grande nome para a história, ainda que apresente seus problemas. “Sully” (2016) é de certa forma desse jeito. Da mesma forma, “15h17: trem para Paris” (2018). E mesmo o “Sniper Americano” (2014) apelava para essa narrativa. 

Por acaso ou não, estes estão entre alguns de seus trabalhos mais fracos. Narrativas óbvias, poucos conflitos e até a ausência de uma história que realmente merecesse um filme a contá-la. "Sully" tinha conteúdo para, no máximo, um curta metragem.

“A mula” (The Mule, no original), no entanto, é um retorno de Clint aos seus bons tempos. A história real de um senhor nonagenário que vira uma mula do tráfico de Sinaloa, no México, transportando drogas desapercebidamente pelas estradas americanas é um prato cheio para o trabalho de Eastwood não apenas como diretor, mas também como ator. 

Earl Stone é aquele anti-herói que costuma render bons filmes. Péssimo pai, péssimo marido, péssimo avó, Earl dedicou toda a sua vida às flores. Sem perceber, porém, deixou de dar atenção as três mulheres da sua vida e foi perdendo uma a uma. A filha, a esposa, e quase a neta, que acaba se transformando na chance de redenção para ele quando percebe que dedicou toda a sua vida ao trabalho dirigindo pelas estradas do país, mas nunca deu a atenção merecida à família. 

É justamente quando vê a sua vida e seu negócio desmoronarem pela chegada da internet que Earl acaba caindo nas mãos do tráfico. O objetivo do cartel é fazer mulas circularem pelos Estados Unidos carregando drogas sem serem parados por policiais. É Earl é um talento exemplar. Em toda a sua vida, nunca levou uma multa. 

Quando inicia sua jornada pelo submundo do crime, Earl também saboreia um pouco da vida que tanto deixou para trás. Conforme vai ganhando dinheiro, vai recuperando um pouco da sua história perdida por uma série de fatores: a casa de onde fora despejado, o clube de veteranos da guerra na Coreia, as datas importantes da sua família, ainda que sofra muitas resistências. 

Earl só quer recuperar o tempo. Justamente aquilo que ele nunca mais poderá ter ou comprar, pois encontra-se no fim da vida. 

É quase impossível torcer contra Earl, mesmo sabendo que ele está fazendo algo errado. Clint Eastwood constrói uma aura de simpatia por aquele senhor frágil que se arrisca nas estradas enquanto busca um sentido para a vida, mas mais do que isso, redenção. Earl quer a família de volta, algo que lhe dói profundamente, a ponto de aconselhar justamente ao seu algoz, o policial Colin Bates (Bradley Cooper) a lembrar que as datas especiais, os aniversários e a família são importantes. 

“A mula” pode não ser o filme mais brilhante de Eastwood, mas é um trabalho que merece ser apreciado pela jornada traçada por seu personagem. Ele não traz grandes reflexões, mas é possível encontrar beleza na busca por redenção de Earl. 

Cotação da Corneta: nota 7,5.

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Van Gogh merecia um pouco mais

Defoe até convence como Van Gogh
Nietzsche certa vez disse que há homens que nascem póstumos. Contemporâneo do filósofo alemão, embora não se saiba se em algum momento o tivesse lido, o pintor holandês Vincent Van Gogh talvez tivesse o mesmo sentimento. Um dos momentos mais interessantes de “No portal da eternidade” (At Eternity´s gate, no original), é a conversa de um Van Gogh (Willem Defoe) internado no sanatório e o padre vivido por Madds Mikkelsen. Em meio a reflexões sobre os papéis de Deus e Jesus Cristo, Van Gogh afirma que talvez tenha nascido na época errada e acabará pintando quadros para indivíduos que virão. 

De fato, hoje o holandês que teve uma vida cercada de problemas médicos, chegou a mutilar-se e só conheceu a miséria que não foi absoluta graças à ajuda do irmão Theo (Rupert Friend), só viria a ser mais fortemente reconhecido após a sua morte. Hoje, é um pintor celebrado por sua técnica e a maneira vigorosa, exagerada e intensa com que pintou seus quadros. 

Muito do que vemos em “No portal da eternidade” é a busca de Van Gogh por um elemento quase divino para a sua pintura. “Eu pinto a luz do sol”, ele diz. É de fato, a luminosidade do sul da França é o que o ajuda a alavancar a sua técnica. O filme de Julian Schnabel se envolve muito nessa busca pela luminosidade. São muitas as formas e lugares de onde Van Gogh olha para o céu para buscar a luz perfeita e pintar de uma forma nunca antes vista. 

E quanto mais mergulha nessa luz, curiosamente Van Gogh cai nas trevas da sua própria mente confusa e irrequieta. Nem o irmão, nem o amigo Paul Gauguin (Oscar Isaac) conseguem tirá-lo desse estado, que acaba por ser natural. 

O período em que Gauguin, aliás, vai para Arles gera outra das cenas boas do filme, que é justamente o debate entre os dois sobre pintar o que se vê da forma que se quer ver, como Van Gogh, e pintar criativamente a partir do que se está na cabeça, que é o que defende Gauguin. Obviamente não há conclusão. São apenas pontos de vista interessantes. 

Infelizmente, “No portal da eternidade” repete-se demais no ciclo pintura, loucura de Van Gogh e não revela novas camadas ou reflexões sobre o pintor. Da mesma forma não trás novas interpretações sobre a sua misteriosa morte, algo mais bem trabalhado na excelente animação “Loving Vincent”

A participação de Defoe no papel principal até justifica sua indicação ao Oscar. O ator convence no papel de um Van Gogh que não está em nenhum momento no seu lugar e que vive desesperadamente para pintar, o seu único talento, aquele que lhe foi concedido por Deus. 

Mas se “No Portal da eternidade” nos dá algumas belas cenas pela luz do sol, deixa a desejar com a sua narrativa baseada numa cinebiografia convencional  e naqueles insights de sempre de gênios. Sofrimento, prazer, queda, redenção, morte.... Van Gogh merecia mais do que apenas isso. 

Cotação da Corneta: nota 6,5

Indicações ao Oscar: melhor ator (Willem Defoe).