sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A DC ainda está nos devendo um filme bom da Arlequina

Arlequina e as Aves de Rapina
Sabemos que por mais que filmes baseados em quadrinhos sejam enquadrados no gênero “filme de super-herói”, cada uma destas histórias são contadas de uma forma diferente, se inserem em gêneros diferentes e são voltadas para públicos diferentes. Mas é inevitável que depois de um filme tão fora da curva da DC como o “Coringa”, que mal ou bem foi indicado a 11 Oscars e ganhou duas estatuetas, e, principalmente, depois do fracasso retumbante do “Esquadrão Suicida” que se esperasse um pouco mais sobre o filme-solo da Arlequina. 

E o primeiro problema de “Aves de Rapina (e a fantabulástica emancipação de Arlequina)" está justamente aí. O que supostamente se vendeu como um filme-solo da Arlequina, tem um título que evoca um grupo de heroínas, mas ao mesmo tempo o que se vê na tela é 80% de sua real protagonista e tudo é tão confuso, que não dá para entender para onde a diretora Cathy Yan e os roteiristas do filme querem ir. 

“Aves de Rapina” (e vamos reduzir o enorme título a isso a partir de agora) era para ser um quase reboot de personagem que era uma das poucas coisas, talvez a única, de positivo em “Esquadrão Suicida”. De fato, Margot Robbie soube captar um pouco da loucura e da alma da personagem, que viria a ser a namorada do Coringa e se destacar naquele filme absolutamente esquecível. 

O problema é que colocaram a Arlequina num roteiro bobo e com tiradas dignas das piores comédias. É claro que é preciso levar em conta que o filme claramente é voltado para um público adolescente. Ninguém estava esperando reflexões como as que envolvem “Coringa” (2019) ou “Batman - O cavaleiro das trevas” (2008), mas ainda assim as ideias do filme parecem difíceis de comprar, até porque muitas coisas são jogadas na tela e elas tem uma ligação muito frágil dentro do filme e até dentro do universo da DC, se é que "Aves de rapina" terá alguma conexão com o universo expandido da DC. 
  
A ideia do filme é mostrar uma aventura divertida que viesse com o descolamento da personagem principal do Coringa a partir de uma quebra de relacionamento. Arlequina sofre como todo adolescente sofreria ao perder um amor, mas faz das suas para superar. Isso envolve mortes e loucuras em geral. 

E onde entram as Aves de Rapina propriamente ditas? Durante o filme vamos sendo apresentados as personagens Renée Montoya (Rosie Perez), Caçadora (Mary Elizabeth Winstead) e a mais conhecida de todos os que acompanham quadrinhos, a Canário Negro (Jurnee Smollett_Bell). Enquanto acompanhamos a aventura de Arlequina, as três vão cruzando o caminho dela entre confrontos e alianças momentâneas para resolver problemas pontuais. Basicamente, temos aqui a visão da Arlequina para a formação do grupo de heroínas e até de certa forma como ela foi decisiva para isso. A ideia parece boa, mas a execução não ficou tão interessante como poderia ter sido. No fim, temos três personagens cujas biografias não são muito aprofundadas e as motivações precisavam ser mais bem trabalhadas. Mas é preciso dizer que o tempo de um filme seria curto para tudo isso. Talvez as Aves de Rapina merecessem uma série de TV. Seria mais interessante do que inseridas num filme que era para ter sido todo da Arlequina. 
  
Mas alguns dos piores momentos do filme ficam mesmo com Ewan McGregor, um bom ator que se reduziu a uma figura canastrona no papel Máscara Negra com algumas das cenas mais constrangedoras de "Aves de Rapina". É possível perceber a tentativa de fazer do Máscara Negra um homem abusivo e aterrorizante para as mulheres ao seu redor. E há um mérito em trazer para os filmes de super-herói uma temática importante, mas o desempenho do ator aqui é sofrível.

O que sobra, portanto, é muito pouco. Talvez o que Aves de Rapina traz de melhor são as cenas de combate, todas muito bem coreografadas e divertidas. A cena da Arlequina na delegacia de polícia é ótima, divertida e muito plástica e toda a cena final, inclusive a parte da Arlequina surgindo de patins na perseguição ao carro do Máscara Negra é ótima. Mas é tão pouco, que fica difícil salvar o filme só com isso.

Falta a “Aves de Rapina” uma história interessante - a trama do diamante e a história cruzada com a família italiana é confusa - um norte que apontasse sobre o que o filme queria tratar (Uma aventura da Arlequina? A formação das Aves de Rapina, que nada tem a ver com a Arlequina? - coesão no argumento, diálogos melhores do que piadas bobinhas à moda Marvel filmes e até atuações mais inspiradas, ainda que Margot Robbie seja uma presença carismática na tela. 

É uma pena, mas a DC continua devendo um filme bom que envolva uma personagem tão legal quanto a Arlequina. “Aves de Rapina” está muito longe de ser isso e ainda é um filme problemático sob um aspecto que vemos também no “Coringa” e no “Venom” (2018). Ao filme de vilão como protagonista, falta o antagonista. No arquétipo natural da construção destas histórias, não existe vilão sem herói. E a Arlequina sequer entra em confronto de fato com as Aves de Rapina, que deviam ser suas antagonistas. Elas se associam, tem pequenos entreveros, mas não há nada que represente de fato uma cisão dela com as heroínas, que, na verdade, deviam é caçar a Arlequina, uma vez que, não podemos esquecer, ela é uma assassina. 

Enfim, o filme é uma grande confusão. Esperemos que a Arlequina seja melhor aproveitada em futuros filmes da DC. “Aves de Rapina”, no entanto, é só mais um filme ruim do estúdio. 


Cotação da Corneta: nota 4,5.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Sam Mendes expõe os horrores da guerra numa história sem heróis

A batalha nas trincheiras da primeira guerra
É muito comum que filmes de guerra sejam construídos a partir de um olhar de seus heróis e seus feitos heroicos e sacrifícios. O diretor Sam Mendes resolveu caminhar por outros percursos. Baseado nas histórias contadas por seu avô, Alfred H. Mendes. Sam fez do seu “1917” um épico sem rosto apenas para falar sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial. 

Ocorrida entre 1914 e 1919, a primeira guerra não costuma ser retratado com tanta frequência quanto a segunda no cinema, mas foi um conflito extremamente duro e que causou a morte de 16 milhões de pessoas entre soldados e civis. 

A história que Mendes retrata se passa no ano descrito no título do filme. Na ocasião, soldados britânicos preparavam um ataque que supostamente seria decisivo contra o exército alemão. Mas o que os britânicos não sabiam é que se tratava de uma emboscada que causaria a morte de pelo menos 1.600 soldados. 

É neste contexto que o general Erinmore (Colim Firth), envia os soldados Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman) para o meio do conflito na França com o objetivo de avisar a tropa do coronel Mackenzie (Benedict Cumberbatch) que havia uma emboscada e cancelar o ataque. 

Assim Schofield e Blake partem numa missão quase suicida. Acompanhando a jornada deles, Mendes vai nos expondo a crueza e implacabilidade do confronto mundial ocorrida há pouco mais de cem anos. Passamos pelas trincheiras enlameadas e cheias de armadilhas, por cidades completamente devastadas e por bombardeios e tiroteios que podem surgir a qualquer momento quando o silêncio parece imperar. 

Acima de tudo, Mendes exibe as marcas do conflito. Os corpos putrefatos a céu aberto, os ratos devorando tudo a frente, a sujeira inerente e os traumas psicológicos sofridos pelos soldados. 

Tudo isso vem acompanhado pelos olhos dos soldados Blake e Schofield, que estão longe de serem heróis nesta história. Blake é um soldado qualquer escolhido por sua habilidade em ler mapas e por ter um irmão na tropa que precisa ser informada da armadilha. Já Blake escolhe o amigo com quem estava para ir com ele simplesmente porque ambos descansavam ao pé de uma árvore quando ele foi chamado. 

Protagonistas da história, eles são rostos desconhecidos enquanto passamos por atores com mais história fazendo quase participações especiais no filme. Além de Firth e Cumberbatch, vemos Mark Strong e Richard Madden, que interpreta o irmão de Blake.

Não sei se esta sempre foi a ideia de Mendes, mas acabou caindo bem dentro de um conceito de despersonalizar, e tirar o heroísmo da guerra. Chapman e MacKay, por exemplo, são rostos comuns e ainda não estrelados em Hollywood. 

Combinando isso com o comportamento que as personagens têm no filme, que chegam até a negação do desejo de seguir em frente, temos anti-heróis aqui não fazendo nada além de cumprir ordens. Morrendo de medo de dar cada passo e com uma fragilidade e um instinto de sobrevivência pouco comum em filmes do gênero. A guerra de Sam Mendes não é a dos grandes feitos. É a de pequenas conquistas de cada trincheira por homens que queriam estar em qualquer lugar, menos naquele ao qual foram destacados para defender violentamente territórios que a política falhou em negociar. 

E tudo isso é realizado pelo diretor em dois planos-sequência que trazem todo um olhar especial e dão um tom realista à jornada. Com sua câmera, Mendes vai passeando pelos horrores dos cenários, revelando corpos mutilados, soldados apodrecendo, ratos comendo restos de corpos... esmiúça-se nos arames retorcidos das trincheiras, reforça a tensão por cada casa, porta ou fresta pelas quais os soldados precisam passar. No meio do filme, temos um corte para acelerar a passagem de tempo. O resto fica com truques de câmeras para que as 24 horas de ação se condensem em duas de filme. 

Acho sempre um trabalho fascinante o de fazer um plano-sequência, pois tudo precisa ser muito bem ensaiado para dar certo e os cortes precisam ser imperceptíveis. Foi uma tarefa ao qual Mendes conseguiu realizar com sucesso para entregar um filme que fica marcado por cenas impressionantes. Isso porque mesmo que em boa parte do filme não haja ação, o espectador é envolvido pela enorme tensão de que algo iminentemente irá acontecer e porque a câmera nunca revela a amplitude do cenário. A próxima trincheira, o próximo obstáculo pode sempre ser fatal. 

“1917” é um belo filme de guerra. E uma história impressionante que sobre a primeira guerra que estava escondida. Tem defeitos, como um roteiro que praticamente não tem história. Mas tem o mérito de trazer um pouco mais de realidade e menos heroísmo aos filmes do gênero, ainda que isto não seja necessariamente original. Também tem como mérito nos mostrar o quão terrível é a experiência de uma guerra mundial. Esperamos que conflitos deste tipo jamais voltem a ocorrer. 

Cotação da corneta: nota 8,5.