segunda-feira, 21 de março de 2022

O duelo entre fé e ciência em "Raised by wolves"

Mother se preparando para atacar
Dentre as séries que se passam em futuros pós-apocalípticos, “Raised by wolves” talvez esteja entre as mais irregulares, mas, paradoxalmente, interessantes.

Terminada a segunda temporada, tenho sentimentos distintos sobre esta obra criada por Aaron Guzikowski e que teve dois episódios dirigidos por Ridley Scott na primeira temporada.

A série se passa num futuro muito distante. A Terra foi destruída por conflitos religiosos, mas parte dos humanos viaja para colonizar outro planeta distante. No inóspito Kepler-22b, dois andróides batizados de Mother (Amanda Collin) e Father (Abubakar Salim) precisam criar seis crianças em meio as disputas entre forças ateístas e crentes num Deus Sol liderados por Marcus (Travis Fimmel).

A primeira temporada é mais marcada por episódios bonitos do ponto de vista de fotografia e direção do que propriamente por sua história. Também pesa contra o fato de os trabalhos das crianças não me convencerem. Por outro lado gosto e acho intrigantes os personagens Mother e Father.

“Raised by wolves” é mais forte quando investe na dualidade fé x ciência. Sim, é um tema batido, mas essa dicotomia não deixa de ser interessante de acompanhar. Todos os jogos de poder, convencimento, filosofia passam por aí. Por outro lado, ela enfraquece quando busca a narrativa do escolhido a partir do jovem Campion (Winta McGrath), talvez um nome propositalmente escolhido por se assemelhar a “champion”, ou o número 1 de qualquer disputa.

A segunda temporada recentemente terminada na HBO MAX começou sem a mesma qualidade estética da primeira e com alguns episódios bem fracos. Mas foi notório o crescimento ao longo da mesma a ponto de surgirem episódios muito bons. Especialmente o quarto (“Control”) e o quinto (“King”). Tudo culminando num bom desfecho.

A presença de um novo androide, batizado de Avó (Selina Jones), com motivações diferentes e que quebram a dualidade da série, trouxe uma lufada de ar fresco a “Raised by Wolves”, com novos dramas e dilemas que vão gerar conflitos interessantes de acompanhar numa potencial terceira temporada. Tudo porque a Avó é uma apologista da felicidade a qualquer custo e está disposta a fazer de tudo para que a humanidade sobreviva. Ainda que seja através não do conhecimento, mas da ignorância. Ou mesmo da destruição de algumas, digamos “maçãs podres” para que seja mantido o equilíbrio e a sobrevivência da espécie.

No fim, pode-se dizer que “Raised by wolves” avançou satisfatoriamente na história. E o futuro promete trazer bons conflitos para o tabuleiro da fé x ciência em que a série se insere.

Nota 7.

domingo, 6 de março de 2022

"The Batman": Quando apenas a vingança não é o suficiente

O Batman de Pattinson em busca de um caminho
Depois de cinco anos e três filmes com uma versão “velha e cansada” mostrada nos filmes mais recentes interpretados por Ben Affleck, fez bem ao Batman retornar às origens de sua história. Versão imaginada pelo diretor Matt Reeves, “The Batman” é um dos filmes mais inspirados do Homem-Morcego. Uma versão pé no chão e calcada em temas da atualidade que não víamos desde “O cavaleiro das trevas” (2008).

Misto de trama de investigação, ação e thriller psicológico, “The Batman” tem todos os elementos para os que gostam da versão mais detetive do vigilante de Gotham. E personagens absolutamente cinzentos, com uma moral maleável em uma Gotham sinistra e tomada pela corrupção em todas as escalas do poder.

O filme de Reeves mostra um jovem Batman lutando e reconhecendo que vem falhando no combate ao crime. Numa Gotham estrangulada pela corrupção e violência em todos os níveis, Bruce Wayne (Robert Pattinson) está obcecado pelo seu alter ego. Movido pela vingança contra todos os criminosos como forma de buscar uma resposta pela morte dos seus pais na infância, Wayne passa tanto tempo como Batman que ele é mais conhecido por ser um bilionário recluso do que pelas ações filantrópicas que seu pai comandava.

Em dois anos, o Batman consegue construir uma reputação de terror e onipresença nas trevas suficiente para aterrorizar qualquer criminoso com poucos recursos, que desaparece apenas por ver o sinal do morcego no céu.

Mas nada disso é suficiente. O Batman de Pattinson é inexperiente, mal visto pela polícia e vem falhando em proteger uma cidade cada vez mais decadente e que está passando por um processo eleitoral para eleger o novo prefeito.

É neste cenário que surge um novo assassino em série pronto para “desmascarar” os podres de Gotham. Em sua nova versão, o Charada (Paul Dano, numa interpretação impecável) é um vilão que se acha um salvador em uma missão. Expor as mentiras de Gotham e aniquilar os protagonistas da decadência moral e corrupta da cidade. E para completar com sucesso o seu plano, o Charada precisa usar o Batman como parte de uma trama criada por seus jogos de palavras.

E assim temos uma dinâmica interessante entre herói e vilão, uma busca de gato e rato que envolve outros personagens relevantes da cidade e com o Batman descobrindo a teia de crimes e imoralidade que vai escalando até a sua própria família.

Aterrorizante e inspirada num criminoso real, o Zodíaco, esta é uma das melhores versões do Charada. Uma versão que funciona perfeitamente com o clima soturno com pitadas de noir e inspiração gótica que o filme de Reeves quer mostrar.

Se “Cavaleiro das Trevas” era um filme sobre terrorismo com o Coringa sendo o arquétipo do terrorista psicopata em uma década que muitos filmes refletiam sobre a guerra ao terror comandada pelos Estados Unidos, “The Batman” é um filme que obriga todos os seus personagens a olharem para as raízes do problema em aspecto macro (toda a cidade) e microscópico (em suas próprias vidas) para enxergarem que a corrupção tem bases muito sólidas e muito perto de todos nós. E a cidade só se encontra em profunda decadência por causa de todos os atores que são protagonistas dela.

E isso inclui o próprio Batman, que passa o filme inteiro afirmando ser a vingança. Ainda que tenha limites que não ultrapassa como, por exemplo, cometer um assassinato, ele ainda é um homem tomado pela sede de sangue, pois a morte de seus pais é ainda fresca em sua memória. O Batman de Pattinson em sua jornada precisa entender que ao mesmo tempo em que deve inspirar medo nos bandidos, precisa que o seu sinal, o sinal do morcego no céu enevoado e chuvoso de Gotham, seja o da esperança para o cidadão comum.

Ao seu redor, temos dois personagens importantes que, de certa forma, o ajudam a entender a necessidade de buscar um outro caminho. James Gordon (Jeffrey Wright), o bastião incorruptível da polícia de Gotham, e Selina Kyle (Zoe Kravitz), ela também em busca de uma vingança pessoal em uma Gotham em que as famílias criminosas, os Maroni e os Falcone, ainda se digladiam pelo poder. Ainda que os Maroni estejam em decadência e Carmine Falcone (John Turturro) seja a voz mais forte por trás das sombras do poder da cidade.

E quem expõe as chagas da cidade acaba por não ser o Batman. Aos olhos do Charada, o Batman é um grande enxugador de gelo que prende batedores de carteira, enquanto não ataca o verdadeiro problema: o poder da corrupção que se imiscui na alta sociedade. O poder que à luz do dia veste a capa da justiça diante da imprensa, mas ao anoitecer mergulha nos mais profundos pecados na boate comandada pelo Pinguim (Colin Farrell, irreconhecível e muito bem no papel).

São estas as feridas que o Charada expõe e, com o seu discurso de ódio e extremismo, consegue angariar seguidores por toda a cidade, ultrapassando ele mesmo os limites e tornando-se ele próprio um agente do caos e da…. vingança.

Por isso o Charada se vê como um espelho e um parceiro do Batman em sua luta. E o Batman se enfurece em negação diante desta possibilidade, pois, no fundo, sabe que está caminhando sob um terreno pantanoso em sua cruzada de vingança.

Selina, Gordon, Alfred (Andy Serkis), Pinguim, Charada, Falcone, Thomas e Martha Wayne… todos são peças de um quebra-cabeça que vão indicando os sinais aos quais o Batman e, consequentemente Bruce Wayne, precisa prestar atenção para refletir como ele de fato pode fazer a diferença em Gotham.

É fascinante o trabalho de Matt Reeves em construir um filme tão rico do Batman, ainda que não tenha sido nada inovador seja em roteiro ou linguagem. “The Batman”, porém, tem o mérito de beber nas fontes certas para criar uma história calcada no melhor do gênero de thriller policial para construir um filme de super-herói que se desvia do padrão mais colorido, cômico e com proporções grandiosas estabelecido nos últimos anos para trazer uma história pé no chão. Afinal, o que não faltam são vilões terríveis e de carne e osso para combater nas quadras das nossas próprias cidades.

Nota 9.



sábado, 5 de março de 2022

"A filha perdida" e as escolhas certeiras nas adaptações de Elena Ferrante

Olivia Colman pegando um bronze numa praia grega
Se tem algo que o fã de Elena Ferrante ainda não pode reclamar é de como a obra da escritora italiana é adaptada para os meios audiovisuais. A série “A amiga genial”, que já está na sua terceira temporada, é quase uma cópia da sua tetralogia napolitana e tem um nível de qualidade que remete ao neorrealismo italiano ao mesmo tempo em que mostra um trabalho de atores, diretores, roteiristas, direção de arte e fotografia quase impecáveis. 

Adaptação de um romance anterior da escritora, “A filha perdida” (“The Lost Daughter”, no original) também não deixa a dever à série. O filme dirigido por Maggie Gyllenhaal consegue captar bem a essência da história de uma mulher que enfrenta os traumas do passado enquanto passa férias numa praia durante o verão europeu. 

Primeiro longa dirigido por Gyllenhaal, que também assina o roteiro, “A filha perdida” é bem sucedido também porque suas atrizes que dividem o papel principal, Olivia Colman, que faz a Leda madura, e Jessie Buckley, a Leda jovem, dão um show de interpretação à parte. 

Colman como a mulher mais velha, com seus traumas e remorsos, usa das sutilezas do seu olhar e do minimalismo de sua interpretação para passar todas as hesitações, dúvidas, incertezas e até um certo ar misterioso para a Leda de 48 anos que se sente uma mãe ruim pelas escolhas que fez no passado ao mesmo tempo em que não superou alguns traumas vividos na juventude. 

A Leda de Colman é mais experiente e a melhor versão de si mesma em que alterna hesitações com uma sabedoria tão latente que te faz querer conviver mais com ela, ainda que ela seja econômica em revelar-se. 

Ao mesmo tempo, sua personagem tem um ar nostálgico de quem deseja reviver alguns dos momentos mais libertadores de sua vida, como nas passagens do filme com Lyle (Ed Harris), mas algo a trava. Seja ela mesma ou o ambiente que se revela aparentemente inóspito. 

Já a Leda de Buckley é a natural jovem impulsiva com ânsia de viver, mas travada por um casamento, duas filhas pequenas e todos os freios sociais possíveis e imagináveis. Uma mulher que vai se revelando brilhante no mundo acadêmico ao passo em que vai sendo devorada por uma vida desonestamente assoberbada. Até que chega o dia em que ela joga a toalha numa atitude que gera consequências para toda a vida da personagem. 

Buckley está brilhante no papel de Leda jovem e mereceu demais sua indicação ao Oscar. Ela soube transmitir as dores, as crises e as frustrações da personagem, mas também um grau de sedução que a mesma deseja ressaltar. 

O trabalho de Gyllenhaal na direção também é notável. A diretora soube nos trazer a intimidade, a hesitação das personagens e seus plenos fechados nos levam a sentir a intimidade dos personagens, as incertezas, as frustrações latentes. Tudo isso é muito enriquecedor em um filme que é bem bonito visualmente.

Talvez a única nota negativa de “A filha perdida” seja mais algo menor. Mas em comparação com “A amiga genial” a série ganha por ser falada em italiano e estrelada por atores locais. É claro que, como já disse, os trabalhos de Colman e Buckley são impecáveis. Por outro lado, acho que o filme perde força porque americanos e britânicos estão tão fora do seu habitat natural que soa estranho todos ali passando dias na praia num verão europeu. E isso é algo muito europeu. 

Isso acontece porque, embora os temas de Elena Ferrante sejam universais, sua ambientação tem uma cor marcantemente local. Suas histórias são muito italianas. Quiçá muito napolitanas. Então soa estranho uma penca de personagens falando em inglês e comportando-se como tais italianos, ainda que o filme deixe bem marcado que eles não o são a partir de escolhas naturais da adaptação. 

Não ajuda o fato de o filme se passar na Grécia ao invés da Itália da obra original. No livro, a família que contracena com Leda é a típica – talvez até a partir de uma ideia generalista de quem lê a obra - família italiana numerosa e barulhenta que americano nenhum reproduziria no contexto específico que Ferrante descreve. 

Houve um estranhamento natural pelas escolhas da adaptação. Ainda que o trabalho de Gyllenhaal seja muito bom. 

Mas os acertos de “A filha perdida” são enormes. Ferrante definitivamente sabe para quem distribuir as suas obras para que elas permaneçam quase imaculadas quando saiam dos seus livros para ganharem vida em outros meios. 

Nota 8,5