terça-feira, 19 de abril de 2016

O analista econômico

Não estava fácil a vida naquele fim de tarde no Hell de Janeiro. Algo dera um enorme nó no trânsito e os ânimos ficaram exaltados com a imobilidade na velha cidade supostamente maravilhosa.

Rumores diziam que um acidente no bairro do Coisa-Ruim era o responsável pelo caos na South Zone. Ninguém confirmava. Nem negava.

Em meio ao caos estático, o intrépido Troncal 10, NOTA 10, singrava as ruas do bairro de PutFire. Ali, em um ponto qualquer, entrou um passageiro bufando como uma panela de pressão velha.

- Hoje está tudo PA-RA-DO - afirmava o cidadão fazendo pausas dramáticas e enfáticas, tal qual um Gil Gomes contemporâneo, aquele antigo repórter do "Aqui Agora".

Trajando uma camisa polo cinza, óculos escuros, o suor escorrendo pelo rosto e a pança saliente revelando o gosto pela sagrada cervejinha de cada dia, o homem bufava e seguia a sua sociologia particular versada em frases que caberiam num tweet.

- DE-MEN-TE. É a causa do engarrafamento. O DE-MEN-TE da fila DU-PLAAAAA - repetia o nosso Gil Gomes.

O homem era monossilábico e autossuficiente. Não precisava de ninguém para debater. Falava alto para o Brasil ouvir. Mas nunca em nome de Deus ou da família.

- Bairro-chave do EN-GAR-RA-FA-MEN-TOOOO. Bairro-chave do EN-GAR-RA-FA-MEN-TOOOO. O DE-MEN-TE da fila DU-PLAAA.

Os brados começaram a chamar a atenção dos passageiros do ônibus. A jovem de olhos verdes logo o fitou e trocou olhares com o rapaz ao lado. "Que louco", ela deve ter pensado.

Mas o homem não ligava para nada. Nem as impressões olfativas escapavam do seu julgamento.

- Que fedor. Lixo e PA-LÁ-CI-OOOOO. Qual o valor... da MAIS VALIAAAA?

O intrépido Troncal 10, NOTA 10, era um dos ônibus mais xexelentos do Hell de Janeiro. Dentro dele, humanos e baratas conviviam em harmonia involuntária. Sujo, desconfortável e caindo aos pedaços, o Troncal 10, NOTA 10, poderia desmontar a qualquer momento. Enquanto isso não acontecia, ele recebia todo tipo de passageiro.

Era o caso do homem com pinta de policial aposentado que não parava de fazer julgamentos aleatórios.

- TE-LE-FÉ-RI-COOOO. Mais vale do que mil casas - dizia, patinando no S. - TE-LE-FÉ-RI-COOOO. Qual o valor... do voto? Qual o valor... da MAIS VALIAAAA?

O show, porém, estava acabando. Pfff, pffff, bufava o homem quando levantou sob olhares curiosos. Deu o sinal e saltou quase em frente a Lady Martha Community.

- Hospedagem na FA-VE-LAAAAA.

Foi o seu último pronunciamento antes de seguir o seu destino.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Existe filme ruim com Darín?

Cámara e Darín, um show à parte
Está previsto na Convenção de Genebra. Todo filme com Ricardo Darín nos créditos deve ser visto. Afinal, você conhece algum filme com o ator argentino que seja ruim? Ok, tem "Amorosa Soledad" (2008), mas nesse filme a participação dele dura 15 segundos. Se você é daqueles que tiram cochilo em algum ponto da película pode até perder sua única cena. 

Como eu dizia neste exercício de lógica cinematográfica, todo filme com Ricardo Darín é bom. Logo, "Truman" é bom. 

Dirigido por Cesc Gay, a película conta a história de um ator argentino famoso na Espanha que desiste de continuar o tratamento contra um câncer no pulmão porque a sua morte é inevitável. Logo, ela pretende terminar a vida com alguma dignidade. 

Antes disso, porém, Julián precisa cuidar de alguns trâmites legais. Preparar o enterro e como ele será (enterro tradicional ou cremação?), se despedir do filho que estuda na Holanda e, a sua grande preocupação, arrumar um novo dono para Truman, o seu cachorro. 

Enquanto tudo isso se desenrola, ele recebe a visita de Tomás (Javier Cámara, excelente também), um amigo do peito, irmão camarada a quem ele explora financeiramente durante todo o filme. Pobre Tomás, bancou quatro dias de "Curtindo a vida adoidado" para Julián e pagando em euro. Ele deve ganhar bem no Canadá. 

Pensando bem, que indivíduo não faria isso para o seu melhor amigo? Não olhem para mim, eu sou jornalista e nem ganho em euro ou dólar. 

"Truman" poderia ser bem melancólico, afinal trata-se de um filme que fala sobre a morte e de um homem que decide abertamente por uma espécie de eutanásia quando está totalmente consciente e até bastante saudável na medida do possível. Mas o que o roteiro de Tomas Aragay e Cesc Gay nos exibe é uma série de sequências de bom humor, algumas cenas de humor negro, e um equilíbrio entre o difícil momento de lidar com a morte, as inevitáveis reminiscências do passado e um trabalho de aceitar o que virá pela frente. 

Se Julián está resignado com seu destino e tenta lidar bem com isso, seus amigos Tomás e Paula (Dolores Fonzi), precisam aceitar o desejo dele. Não é fácil, nunca é, mas Gay consegue construir a trama com delicadeza e refinamento para uma história difícil de entreter. 

As risadas no cinema mesmo diante de situações duras, as excelentes tiradas de um Darín com aquela cara de cachorro morto no fim da linha e cercadas de ironia e o próprio olhar cúmplice do amigo que sofre por dentro, mas aceita o destino traçado por Julián, são o ponto alto de um filme que mesmo quando se coloca em situações difíceis na história, consegue se sair bem. 

Gay apresenta em "Truman" um humor refinado e sarcástico digno de um bom Woody Allen. E não deixa espaço para o dragão Piegas agir. Seu trabalho diverte, entretém e, por isso, ganhará uma nota 7,5.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Não é 'A grande beleza'

Que visão!
O grande perigo de você fazer um filme incrivelmente belo nos mais diferentes pontos de vista estéticos, é desejar repetir essa fórmula de sucesso que, por vezes, ou eu diria muito provavelmente, soará pálida em comparação com a obra que tangencia a perfeição.

"A grande beleza", o lindo filme de Paolo Sorrentino, mostrava Roma em seus melhores ângulos - e você pode imaginar o quanto isso pode ser deslumbrante - enquanto fazia uma reflexão ensaística sobre o que é belo e o quão fútil ou não uma vida pode ser. 

O resultado foi um estrondoso acerto de roteiro, direção e trabalho dos atores premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2014. 

"A Juventude", o novo trabalho do diretor italiano, tenta ir no mesmo caminho de "A grande beleza", mas escorrega na tentativa de mimetizar um filme que alia competência a uma confluência cósmica de acertos que só encontra paralelos em explicações divinas. Para um diretor napolitano, oriundo de um país que é a sede da Igreja Católica, não soa como heresia esta evocação divina. 

É uma pena que nem sempre estes acertos se repetem. "A Juventude" pende para a caricatura na comparação com "A grande beleza" e não satisfaz plenamente mesmo quando descolamos o trabalho de qualquer passado de Sorrentino. 

Sim, o filme é belo. O cenário agora é um hotel-spa na Suíça que é a definição do conforto. Conforto inclusive para os olhos de quem vê a película com as paisagens típicas de um verão naquele país europeu. Campos verdes e cheios de flores, vaquinhas leiteiras, os Alpes ao fundo com neve eterna nos picos, a sensação eterna de tranquilidade e paz. O lugar ideal para o descanso de dois artistas ou para o desenvolvimento de um trabalho que exige a reflexão. 

É lá que se encontram o maestro Fred Ballinger (Michael Cane, tocante), e o diretor de cinema Mick Boyle (Harvey Keytel). Dois veteranos amigos que vivem momentos distintos de suas vidas. Um praticamente desistiu dela desde a morte da esposa e enfrenta problemas de relacionamento com a filha, Lena (Rachel Weisz). O outro está numa efervescência criativa e empolgado em trabalhar com jovens roteiristas para finalizar aquele que seria o seu filme-testamento. 

Música e cinema se aliam numa reflexão sobre a passagem do tempo, as fraturas acusadas por ele e o tempo que foi aproveitado ou desperdiçado numa existência que é única mesmo para os que acreditam em uma eventual volta. 

Enquanto Bellinger e Boyle vivem a amizade em que se eximem de contar frustrações um para o outro, o hotel paradoxalmente exibe uma coleção de hóspedes que passam, de certa forma, recados sobre a passagem do tempo. Isso vai do casal que não se fala, mas se entende, passa pelo personagem caricatural de Maradona, um ex-jogador genial que hoje se encontra obeso e decadente, e chega até ao monge budista que controla o tempo e espaço dentro de sua meditação. É senhor do seu tempo. 

Nas duas horas de filme, Ballinger e Boyle vão revelando desejos e frustrações. E nisso ganham a companhia de um ator que fez muito sucesso em um filme de ação e agora luta para ser reconhecido como artista pleno num filme de arte em que ele viverá Hitler. Trata-se de Jimmy Tree (Paul Dano). 

Não faltam reflexões também sobre o próprio cinema e a sua importância atual em comparação com a produção televisiva. Discussão bastante atual, pois há mais de uma década as séries de TV têm ocupado o lugar da arte e da vanguarda que já foi do cinema, hoje mais afeito a blockbusters e franquias que garantam um bom faturamento. Por mais que o circuito de arte sempre vá ter o seu espaço. 

"A Juventude", porém, não atinge plenamente o seu objetivo. Michael Caine e Keytel estão bem, mas o filme careceu de um roteiro que desenvolvesse melhor as questões abordadas. Paralelo a isso, há um excesso de cenas desnecessárias, que desviam do foco proposto. E pareceu um equívoco a tentativa de dar leveza ao filme (com o perdão do paradoxo) ao colocar um Maradona fake apenas pela piada (ou um capricho do diretor que, como eu disse acima, é de Nápoles, onde Maradona é rei). 


Entre o idílico das paisagens suíças e dos belos corpos de mulheres igualmente filmadas como presentes divinos, Sorrentino fica no meio do caminho no objetivo de buscar um novo "A grande beleza". Faltou a "A Juventude" estofo, camadas e melhor desenvolvimento de ideias. Sobrou beleza e um final impactante. Por isso, o filme receberá um 6,5 da corneta.