segunda-feira, 27 de abril de 2009

Superando limites de chatice

É muito difícil um filme me fazer dormir no cinema. É muito difícil uma obra praticamente me expulsar, pois quase sempre eu sou receptivo e tento entrar em todas as histórias. Mas “A Fronteira da Alvorada” conseguiu superar todas as expectativas negativas. Há muito tempo eu não dormia dentro de uma sala. Tá certo, eu não cheguei a cochilar completamente, mas fechei os olhos incontáveis vezes e isso só não se transformou em sono de fato porque eu sou brasileiro e não desisto nunca.

Outro retrato de que a película é de uma chatice atroz é a quantidade de vezes em que eu olhei para o relógio de olho no tempo, contando os segundos que se arrastavam para me libertar daquela tortura.

Por que o novo trabalho do diretor Philippe Garrel, o mesmo do ótimo “Amantes Constantes” (2005) é tão insosso? São vários os motivos. Em primeiro lugar o filme é arrastado, mas não positivamente arrastado. A história não se desenvolve. E o pior, é entrecortada por saltos temporais na história de François (Louis Garrel, o filho do diretor) e Carole (Laura Smet) que você tem que refletir alguns segundos para deduzir o que aconteceu naquele hiato entre a cena anterior e esta nova.

Tudo bem, cinema é reflexão, é incômodo. Concordo. Mas estamos falando de uma história de amor. Uma simples, mera, história de amor. “A Fronteira da Alvorada” não é um filme filosófico, não é um, sei lá, “Ponto de Mutação” (1990). É apenas uma história de amor trágica entre François e Carole. É (ou deveria ser) Shakespeare passado na França atual, mas em preto e branco.

Mas ao contrário das histórias do bardo inglês, o roteiro de Marc Cholodenko e Arlette Langmann é fraco. Tudo bem que ele reflete a história conduzida por Philippe Garrel, cheia de silêncios, imagens paradas e com diálogos marcados por um incômodo “monossilabismo”. E este é o segundo problema do filme.

Estas duas questões refletem na interpretação dos protagonistas. Louis Garrel nem de longe lembra o outro François que interpretou em “Amantes Constantes”. Laura Smet não convence nem como mulher apaixonada, nem como suicida (pronto, falei, mas você pretendia ver o filme?). E sua aparição como fantasma, bem, acho que nessa parte eu já devia estar babando na cadeira.

O grande problema da história é que não há história e sim fragmentos, passagens sem um ponto mesmo que ínfimo de ligação para que possamos fazer um link. E os diálogos reduzidos ao mínimo fazem parecer que o filme foi feito num certo tom de improvisação em que os atores apenas sabiam duas coisas: vocês estão apaixonados e devem seguir mais ou menos esta linha do roteiro. Só que o resultado nem de perto lembra trabalhos excelentes e ricos em improvisação como os de Gus Van Sant, que alimenta a liberdade, mas dentro da linha central do seu roteiro.

Shakespearianamente ainda há espaço para um certo tom sobrenatural na história que supostamente era para ser de amor. Mas o resultado é esquisito. Há quem pense até que houve uma ressurreição. Uma catástrofe.

“A Fronteira da Alvorada” é, portanto, uma bola fora de Garrel. Está mais para crepúsculo do abismo cinematográfico do que para qualquer tipo de alvorecer. Passe longe. A menos que sofra problemas de insônia.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Quinze anos sem Kurt Cobain

Eu devia ter uns 10 anos quando tive meu primeiro contato com o rock and roll. Até então, eu gostava do que todo mundo gostava naquele final de anos 80 e início de anos 90. Ou seja, Madonna, Michael Jackson e Tina Turner. Bem, acho que nem todo mundo gostava de Tina Turner. Por outro lado, eu detestava e ainda detesto Prince, que era igualmente idolatrado como os ídolos pop aqui citados.

Mas como eu dizia, devia ter uns dez anos quando do rádio do carro do meu pai ouvi pela primeira vez “Smells like teen spirit”. Não entendia praticamente nada de inglês (um "yes", um "no" e um "apple pie" ou "chocolate cake" era o máximo que eu poderia arriscar), mas aquele riff de guitarra e a voz agonizante daquele vocalista que parecia estar expulsando demônios ou, vá lá, espíritos, do recinto, entraram pelo meu ouvido e eu não queria escutar mais nada dali para frente.

Assim eu era apresentado ao Nirvana e ao chamado “Movimento de Seattle”, uma vez que logo depois eu ouviria outro som definitivo, “Even Flow”, do Pearl Jam. Mas esta é outra história.

Eu já era um fã de rádio do Nirvana - não tinha discos, não gostava dos bolachões e quase não comprava fitas – quando Kurt Cobain foi encontrado morto no dia 8 de abril de 1994 em sua mansão em Washington. Eu tinha 12 anos e lembro vagamente da tristeza das pessoas. Lembro de uma senhora loura com cara de maluca completamente desolada (ela era Courtney Love, a então mulher de Cobain e vocalista do Hole), via várias pessoas chorando, lembro vagamente de outras cantando em volta do túmulo e de notícias começando a surgir de outros adolescentes tirando suas vidas pelo mundo afora como fizera Cobain na estufa de sua casa.

Não senti a dor lancinante de um ídolo que se fora, pois eu era novo demais para esses tipos de manifestações adolescentes. Mas tinha alguma noção da importância que ele tinha. Desconhecia seus problemas de depressão, seu vício em heroína, seus problemas com Love e as terríveis dores no estômago. E lamentavelmente não estava presente no show chamada por muitos de catártico e por alguns de desastroso do Nirvana no Hollywood Rock de 1992. Dizem que Cobain teria esculachado com a apresentação quando descobriu que o festival era patrocinado por uma marca de cigarro. Ele achava que o Hollywood fazia referência à meca do cinema. Pelo visto, no entanto, para a grande maioria o tiro saiu pela culatra.

Enfim, meu gosto se resumia a algumas excelentes canções contidas em “Nevermind” (1991), certamente um dos 100 maiores discos de rock de todos os tempos.

Mas tudo o que eu descrevi acima fui descobrindo conforme o Nirvana ia se tornando importante na minha vida e na minha discografia da banda orgulhosamente completada. Incluindo os caça-níqueis, para a alegria da gravadora.

Por isso neste mês quando se completou 15 anos da morte/suicídio de Cobain sinto falta dele. Lamento mais ainda saber que nunca poderei assistir a um show do Nirvana. É um vazio que jamais será preenchido.

Se não fosse pela banda formada por Cobain, pelo baterista Dave Grohl, hoje líder dos Foo Fighters, e pelo baixista Krist Novoselic, hoje um irreconhecível político, o grunge talvez não teria saído das garagens e porões de Seattle. Suas guitarras distorcidas e suas letras um tanto depressivas, que demonstravam ansiedade, infelicidade, a apatia da vida, enfim, um completo niilismo, contrastavam com todo o colorido e brilho que imperava até então sobre e através dos reis do pop.

Cobain foi um chute na porta da música e atrás dele vieram outras grandes bandas como o Pearl Jam, o Soundgarden e o Alice in Chains, além do Mudhoney, que até hoje permanece fiel e único sobrevivente do som de Seattle.

Dois discos são fundamentais para o movimento. “Ten”, do Pearl Jam, lançado em agosto de 1991 e o "Nevermind", lançado um mês depois. Eles são os pilares que sustentaram o grunge e possibilitaram o surgimento de outras bandas, além de uma maior atenção à música que se fazia por ali até então.

Curiosamente Cobain tinha uma rixa com o Pearl Jam. Neste mês, a “Rolling Stone” do Brasil resgatou duas matérias da “Rolling Stone” americana para lembrar os 15 anos da morte de Cobain. Numa delas, é reproduzida uma entrevista com o líder do Nirvana em que ele diz que não gostava da banda por ela não desafiar seus fãs fazendo novas experiências.

“É um exemplo de banda de rock segura e agradável que todo mundo gosta sem desafiar seu público”, disse ele, afirmando ser necessário usar novas idéias e conceitos, o que ele estaria propondo com o lançamento de “In Utero” (1993), terceiro e último disco de estúdio da banda, que realmente tinha uma sonoridade levemente diferente dos dois primeiros álbuns do Nirvana. Mas Cobain depois reconhecia na entrevista, feita seis meses antes do suicídio, que não deveria ter criticado o Pearl Jam, mas a sua gravadora.

Seja como for, havia muito respeito entre as duas bandas. Tanto é que quando soube da morte de Cobain, Eddie Vedder cancelou o prosseguimento de uma turnê do Pearl Jam e disse durante um show em Washington que “nenhum de nós estaria aqui nesta sala hoje se não fosse Kurt Cobain”.

Cobain tinha um gosto mais refinado do que podiam imaginar os preconceituosos de plantão. Apreciava os clássicos – na entrevista à “Rolling Stone” citou os discos “Rocks”, do Aerosmith, “Led Zeppelin II”, do Led Zeppelin, “Never mind the bollocks”, do Sex Pistols, e “Back in Black”, do AC/DC, como os seus favoritos – e admirava o R.E.M. (“Se eu pudesse compor tão bem quanto eles. Não sei como conseguem fazer o que fazem. Meu Deus, eles são os maiores”, declarou ele, revelando que gostaria de trabalhar com Michael Stipe, projeto que realmente estava em andamento como revelou o vocalista do R.E.M. após a morte de Cobain).

Revelava ainda a sua preocupação em não ser rotulado (“Grunge é um termo tão potente quanto new wave. Não dá para cair fora. E uma hora vai ser um termo ultrapassado”) e sonhava em fazer coisas diferentes, trabalhos diferentes, o que desembocou na gestação de “In Utero” e o fez se “desarmar” para expor a voz que supostamente não tinha no acústico da MTV.

Gravado cinco meses antes da morte de Cobain, o acústico pode ser visto como uma espécie de despedida e uma biografia musical do cantor. Em um documentário feito pela MTV quando fez dez anos da morte do líder do Nirvana, o produtor do unplugged Alex Coletti contou que a decoração com velas e flores foi sugestão de Cobain, que respondeu positivamente quando ele perguntou se o cantor queria uma decoração como se “fosse um funeral”.

No set com um total de 14 canções, havia poucas músicas conhecidas do Nirvana e seis covers. Todas eram de certa forma autobiográficas como “Something in the way”, que fala de um período de sua vida em que ele dormiu embaixo de uma ponte, “All Apologies”, dedicado à sua esposa Courtney Love e sua filha, Frances Bean Cobain, ou “About a Girl”, que fala sobre uma antiga namorada de Cobain, Tracy Marander.

A expressão de Cobain durante o acústico era de alguém que havia sido realmente derrotado pelo vício em heroína, pela depressão, pelas dores no estômago, o estilo de vida que ele aparentemente detestava ou simplesmente não via mais sentido, ou todas as respostas anteriores. Enfim, era alguém cansado de tudo e preso em si mesmo. Cobain mergulhara fundo na temática do grunge e se fechara completamente para o mundo exterior. “Last Days” (2005), o filme de Gus Van Sant levemente inspirado em sua história, mostra bem como foram os últimos dias do cantor.

Com a sua morte todo o movimento grunge perdeu o fôlego. Poucas bandas ainda seguem o estilo e o outro ícone do movimento, o Pearl Jam, soa mais roqueiro desde “Yield” (1998). Prova de que o líder do Nirvana era o grande catalisador de tudo ou que talvez tivesse certo ao dizer que o grunge era um som que iria se tornar ultrapassado.

É difícil saber o que Cobain estaria fazendo hoje se estivesse vivo e com 42 anos. Nunca soube que tipo de projeto ele teria com Stipe. Ao mesmo tempo ele parecia inquieto com o som do Nirvana, em que não via muito futuro mais pelo castigo que ele trazia à sua garganta.

“É impossível olhar para o futuro e dizer que vou conseguir tocar as músicas do Nirvana daqui a dez anos”, declarou na já citada entrevista à “Rolling Stone” americana.

Cobain tinha 27 anos quando deixou o mundo. “Entrou para aquele clube idiota”, declarou na época sua mãe, Wendy O’Connor, num misto de revolta e tristeza, referindo-se a Janis Joplin, Jim Morrison e Brian Jones, também mortos aos 27 anos. Deixou um legado musical e muita saudade daqueles que amam a boa música.

Discografia comentada:

“Bleach” (1989) – A estreia do Nirvana com suas marcas registradas. A guitarra distorcida, os vocais de Cobain e a temática grunge. Destaque para “Floyd the Barber”, “Negative Creep”, “Scoff”, “School” e “About a Girl”, a única canção mais diferente do resto do álbum e que se tornou um sucesso.

“Nevermind” (1991) – Um clássico. Poucos discos conseguem ser bons do primeiro ao último segundo. Tem “Smells like teen spirit”, “Lithium”, outra porrada espetacular, “Come as you are” e uma espetacular “Territorial Pissing” com Cobain perdendo a voz de tanto berrar.

“Incesticide” (1992) – Compilação de gravações demo e sobras não lançadas muito interessante. Tem “Sliver” e “Aneurysm”.

“In Utero” (1993) – Último álbum de inéditas do Nirvana. A banda soa mais pesada neste disco que tem com destaques “Heart-Shaped Box”, “Rape Me”, “Pennyroyal Tea” e “All Apologies”.

“MTV Unplugged in New York” (1994) – O acústico definitivo da MTV. Depois disso, a emissora seja aqui ou lá fora jamais conseguiu fazer um acústico tão bom. Colocar o Nirvana, banda explosiva, para tocar com banquinho e violão foi uma idéia sensacional que Cobain soube levar ao seu jeito para protagonizar uma apresentação histórica.

“From the muddy banks of the wishkah” (1995) – Disco que tenta captar algo próximo do que era o Nirvana ao vivo. Bom para fãs que nunca verão Cobain ao vivo.

“Nirvana” (2002) – Coletânia caça-níqueis que só vale a pena por ter uma canção inédita: “You know, you’re right”.

“Silver: The best of the box” (2005) – Mais restos de gravações demo e sobras jogadas por aí que a gravadora resolveu usar para fazer caixa. Só para fãs como eu e você que chegou até o fim deste texto.

Abaixo alguns momentos marcantes da carreira Nirvana:

Imagens do último show do Nirvana, em 1º de março de 1994:

Videoclip de "Smells like teen spirit":

Videoclipe de "Lithium":

Videoclipe de "Heart-shaped Box":

Nirvana tocando "Drain You" durante a turnê do disco "In Utero":

Nirvana tocando "Come as you are" durante o Hollywood Rock no Rio de Janeiro:

Nirvana tocando "Territorial Pissing" em apresentação na MTV americana:

Nirvana tocando "About a Girl" no Acústico MTV:

Nirvana tocando "Where did you sleep last night" no Acústico MTV:

sábado, 18 de abril de 2009

A redenção de Dirty Harry

Perto de completar 80 anos, Clint Eastwood parece ter resolvido fazer uma revisão ou um exercício de futurologia para um dos seus mais conhecidos personagens, Harry Calahan. Dirty Harry era basicamente um justiceiro na pele de um policial que fazia a justiça com as próprias mãos sem se importar com regras ou ter papas na língua.

Os filmes de Dirty Harry – “Dirty Harry” (1971), “Magnum 44” (1973), Sem Medo da Morte (1976), “Impacto Fulminante” (1983) e “Dirty Harry na lista negra” (1988) – fizeram muito sucesso nas décadas de 70 e 80, mas também eram bastante criticados pela postura politicamente incorreta, preconceituosa e misógina do seu principal personagem.

Há, portanto, uma semelhança entre Harry e Walter Kowalski, personagem central de “Gran Torino”, novo e elogiável trabalho de Eastwood. Recentemente, o diretor deu declarações criticando toda essa postura politicamente correta do cinema e até da vida atualmente. Foi apenas uma constatação. Não significa que Eastwood pense como seu personagem, mas revelou a sua necessidade de mostrar outras cores em sua obra. Por mais que elas não sejam das mais agradáveis.

Em “Gran Torino”, o diretor e ator vive um trabalhador aposentado da Ford que viveu as agruras da guerra da Coreia e hoje é praticamente um estrangeiro num bairro americano cercado de “chinas”, “pretos” e toda a “escória da humanidade”, como ele pensa.

Para todos eles, Kowalski rosna como um cão raivoso seja pelo seu comportamento, sua cultura e, claro, sua aparência nada caucasiana. A recente viuvez de Kowalski só aguça sua impaciência e preconceito, ainda ampliada por um padre mala que tenta cumprir o último desejo da esposa de Kowalski: fazê-lo se confessar.

Kowalski é, assim, alguém que só aceita viver entre os seus, o que exclui a sua própria e problemática família, cujos netos se vestem mal, são mal educados e apenas ambicionam o seu Ford Gran Torino estacionado na garagem, e os filhos usam carros japoneses, ou “chinas”, fabricados por gente que ele se “acostumou a empilhar e transformar em sacos de areia ou trincheira” quando estava no Exército.

Ao conviver forçosamente com os hmong, povo que lutou ao lado dos americanos na guerra do Vietnã e foi perseguido e massacrado pelos comunistas depois que os americanos abandonaram, derrotados, a região, ele vai perceber, no entanto, que tem mais em comum com aquela família de hábitos para ele estranhos do que com a sua própria.

O ponto de ligação com os hmong é Thao, jovem tímido que cultiva os valores que Kowalski admira e é importunado juntamente com sua família por uma gangue do bairro. É para ajudá-los que Kowalski entra em cena com sua pistola e escopeta e acaba virando, inicialmente a contragosto, o herói do bairro.

Ironicamente são os hmong outrora vistos como inimigos que vão lhe dar um sopro de vida na sua até então amarga existência e a chance de recomeçar, de rever os seus erros, tão perto do seu fim.

Pode-se dizer, portanto, que “Gran Torino” é a redenção de Dirty Harry. E seu desfecho não poderia ser mais apropriado a alguém que de qualquer forma sempre foi um herói.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O teatro do rock

Entre as grandes bandas do mundo, o Kiss talvez tenha sido a primeira a fazer com que um show de rock tenha um conceito maior do que simplesmente subir no palco e tocar algumas músicas por duas horas. Com o Kiss, o concerto ganha tons de espetáculo (em todos e positivos sentidos). Mais até do que o U2, que experimentou algo parecido na turnê “Zooropa” no início dos anos 90 e desde então vem realizando megaturnês com megashows, mas que são mais focados na sua música do que em efeitos mirabolantes e pirotecnias.

No caso do Kiss é diferente. Seus números vão do circense – e não é a toa que um dos seus álbuns de estúdio, o último, aliás, se chama Psycho Circus (1996) – ao teatro. Tudo é muito bem ensaiado para que não saia nada errado. Mas quando chove, evidentemente, planos devem ser desfeitos.

E o Kiss sabe dar o seu recado com tamanha competência que ficaria difícil contestar um de seus líderes, o baixista Gene Simmons, quando ele abre o show dizendo: “All right, all right, all right. You wanted the best. You got the best. The hottest band in the world: Kiss!!!!”.

Os bafos de labaredas que frequentemente vinham do palco e as explosões de fogos de artifício mostram que realmente o Kiss é uma banda quente. E quando eles entram no palco para abrir os trabalhos com “Deuce”, a platéia já está num transe digno do mostrado no videoclipe de “I Love it Loud”.

“Loud”, “love” e “hot”, aliás, são as palavras que mais se repetem no repertório do Kiss e o cantor e guitarrista Paul Stanley, o mestre de cerimônias na Apoteose, o senhor do picadeiro, se esforça para seduzir a platéia. Nem é preciso muito, diga-se de passagem. A galera já está de quatro pelos mascarados. Alguns, ou melhor, algumas até querem mais, como mostraram duas mulheres que jogaram seus respectivos sutiãs para Paul. Uma delas também resolveu pagar um peitinho para o telão para delírio dos presentes.

Dizendo que ama todo mundo, principalmente as garotas mais safadinhas, Paul toca uma música segurando as peças íntimas das moças que depois virariam um novo objeto de decoração do palco inspirado na turnê do disco “Alive” (1975), de onde a banda tira a maioria das músicas do show (14 das 19 canções) e da turnê que celebra os 35 anos de sua carreira. Uma atitude simpática e melhor do que o velho truque da bandeira nacional, aliás, usado por eles no bis.

Tal qual a apresentação do Iron Maiden, o show do Kiss é para lembrar os grandes momentos da banda (para poucos que estiveram presentes no espetáculo de 1983 no Maracanã) ou apresentar aos novos membros do Kiss Army suas velhas composições ao vivo.

E havia muitos estreantes na Apoteose. Crianças, adolescentes, muitos pintados com as máscaras de Paul e Gene, todos num misto de empolgação e hipnose, mesmerizados pela magia daqueles senhores fantasiados.

Mas não havia novatos apenas na platéia. O guitarrista Tammy Thayer fazia sua segunda turnê após a saída/demissão de Ace Frehley, chamado por Gene numa entrevista ao GLOBO de “loser”. Mesmo adjetivo ganhou o baterista Peter Criss, substituído por Eric Singer, velho colaborador do circo do Kiss.

E Thayer se sai muito bem. Reproduz com fidelidade e desenvoltura as notas de Frehley e ainda tem espaço para brilhar num solo pirotécnico, com sua guitarra disparando fogos pelo palco. Teve gente até que disse que ele é melhor do que Frehley, mas não entrarei neste mérito. Gosto para guitarrista é algo que não se discute, pois há a parte dos fãs que sabem tocar o instrumento e geralmente preferem os guitarristas mais técnicos e há uma outra parte de apreciadores de música que gostam dos técnicos, mas também curtem aqueles guitarristas mais performáticos (e até presepeiros), que têm presença e carisma. Poucos unem técnica e presença de palco. Exemplo mais comum? Mestre Jimi Hendrix.

Talvez até pelo fator surpresa, Thayer tenha brilhado tanto quanto Paul e Gene. Até porque você já sabe o que esperar desta dupla. São as caras de mau, a espada de fogo (logo após a execução de “Hotter than Hell”), e o sangue cenográfico (já no bis, antes de “I love it loud”) de Gene e a lascívia/malícia de Paul, que, aliás, cantou bem em quase todo o show. No fim, durante “Detroit Rock City”, contudo, você nota que ele já está sem voz. Mas devemos dar um desconto. O rapaz tem 57 anos de rock and roll e nem a chuva o desanimou. “We don’t care about the rain. We gonna keep playing”, disse o cantor.

A chuva, todavia, atrapalhou um dos números mais aguardados. O vôo sobre a platéia de Gene durante “Love Gun”, música cortada do set list final que acabou ficando com uma canção a menos em relação ao show de São Paulo.

Nada que atrapalhasse um espetáculo impecável que conseguiu reunir só no bis e em seqüência “Shout it out loud”, “Lick it up”, “I love it loud”, “I was made for lovin’you” e a já citada “Detroit Rock City”.

Melhor do que isso só se eles tivessem colocado “Rock and roll all nite”, canção escolhida para encerrar a primeira parte do espetáculo sob outro imenso temporal, mas de papel picado que caia sobre a (abominável) área vip e sobre a platéia menos abastada. É o Kiss, a banda mais capitalista/consumista do mundo, socializando a festa.

Em resumo, mesmo com seus principais integrantes beirando os 60 anos (Gene tem 59), o Kiss sabe dar uma festa. Com “God gave rock and roll to you” tocando nas caixas de som e muitos fogos de artifício, o público deixou a Apoteose de alma lavada.

Set list: “Deuce”, “Strutter”, “Got to Choose”, “Hotter Than Hell”, “Nothin’to Lose”, “C’mon and love me”, “Parasite”, “She”, “Watchin”, “1000.000 years”, “Cold Gin”, “Let me go, rock’n’roll”, “Black Diamond”, “Rock and roll all nite”, “Shout it out loud”, “Lick it Up”, “I love it loud”, “I was made for lovin’you” e “Detroit Rock City”.

Abaixo alguns dos grandes momentos do show do Kiss.
"Deuce"

"Hotter Than Hell"

"Nothin' to Lose"

"Rock and roll all nite"

"Lick it Up"

"I love it loud"

"Detroit rock city"

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Um terrível massacre

Logo no início de “Katyn”, o diretor Andrzej Wajda mostra dois grupos de refugiados se cruzando numa ponte. De um lado, o grupo onde fazia parte Anna (Maja Ostaszewska), mulher do oficial Andrzej (Artur Zmijewski), fugindo do cerco alemão em plena Segunda Guerra Mundial. Do outro lado, aqueles que fogem da invasão soviética.

Estamos em 1939 e a Polônia acaba de ser duplamente invadida. De um lado, os nazistas de Hitler querendo expandir o domínio da raça ariana. Do outro, os soviéticos também querendo ampliar o domínio comunista sobre o planeta. Na conversa entre Andrzej e Jerzy (Andrzej Chyra), há uma dúvida do que poderia ser pior. A única certeza é que a Polônia está sitiada.

Os crimes alemães naquela guerra já são mais do que conhecidos e “Katyn” apenas passa por alguns deles como a morte de intelectuais levados para campos de concentração. O propósito do filme, portanto, não é tratar dos crimes cometidos por Hitler, mas pelo massacre impetrado por Stálin na floresta de Katyn em abril de 1940, onde mais de 20 mil poloneses entre militares, intelectuais e meros civis foram cruelmente assassinados e jogados em valas comuns.

Tão pior quanto o genocídio, foi a cruel ditadura soviética impetrada no país reforçada por uma revoltante máquina de propaganda e censura que divulgava uma mentira: de que o massacre foi cometido pelos alemães. O objetivo é fazer com que os poloneses acreditem que os soviéticos são amigos e aceitem seu domínio.

Desnecessário dizer que a mentira não conseguia se disseminar facilmente como desejavam os acólitos de Stálin. Nada que o Exército não pudesse resolver com mais seqüestros, torturas e até mortes. O importante era manter a farsa.

Ao se propor a contar esta história, Wajda não trata apenas do massacre, mas também da maneira como a ditadura soviética deixou suas marcas no povo polonês. As cicatrizes estão no próprio diretor de 83 anos, cujo pai foi uma das vítimas do império soviético em Katyn. Assim como Anna, ele e sua mãe esperaram por anos pelo retorno do pai que nunca aconteceu.

Enquanto a névoa do massacre pesa sobre aquela Polônia, acompanhamos a angústia de um país que não tem voz, onde pessoas vivem acuadas e deve-se tomar cuidado com tudo o que se diz, para quem se fala e com as atitudes tomadas. A atmosfera criada por Wajda é claustrofóbica, pesada como uma cortina de ferro. As terríveis marcas da saudade, da desesperança, da falta de informação podem ser vistas nos rostos cansados, desolados e/ou cínicos de uma população que aparentemente não tem escolha e até acredita que a Polônia jamais vai se reerguer novamente.

Esse retrato é o que faz de “Katyn” um grande filme. As cenas do massacre são apenas o clímax do horror. O início, o meio e o fim da tragédia causada pelos soviéticos. E ainda há quem considere Stálin um exemplo a ser seguido. Lamentável.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Um pouco de luz sobre o mito

Cinco anos depois de a juventude de Ernesto Che Guevara ter sido descrita sob a ótica de Walter Salles em seu “Diários de Motocicleta”, o cinema volta suas atenções para uma nova cinebiografia do ex-líder revolucionário que ajudou a libertar Cuba da ditadura de Fulgêncio Baptista e acabou morto na selva boliviana. “Che”, a biografia de Steven Soderbergh com Benício Del Toro no papel principal é um épico de 4h30m dividido em duas partes.

A primeira, “The Argentine”, chegou aos cinemas tentando dar uma visão menos romântica, mas ao mesmo tempo complementar, do médico argentino que se juntou a Fidel e Raul Castro na revolução cubana durante o exílio no México.

É lá que o filme começa, com Che conversando sobre a revolução com Raul (Rodrigo Santoro) e aguardando a chegada de Fidel (Demián Bichir), que o convidaria a participar do combate em Sierra Maestra.

A partir daí, a película se divide em duas partes mostradas alternadamente. O treinamento e combate na floresta e a invasão de Cuba até a chegada a Havana e o discurso de Che na Assembléia Geral da ONU, quando reconheceu os fuzilamentos durante a sua revolução, defendeu Cuba, rebateu as críticas e proclamou o conhecido “pátria ou muerte”, e uma entrevista dada à imprensa.

Em Cuba, a revolução é mostrada em todas as suas cores, enquanto nos Estados Unidos Soderbergh opta por filmar em preto e branco, como são conhecidas, aliás, as imagens de Che na ONU.

Se em “Diários de Motocicleta” Walter Salles mostra uma visão quase heróica do jovem Che Guevara (na pele de Gael Garcia Bernal) na sua fase pré-revolucionária - é emblemática a cena dele, que sofre de asma, mas vence a travessia de um rio – em “Che”, Soderbergh não se afasta completamente do mito imortalizado na foto de Alberto Korda, mas tenta mostrar um outro lado de Che, seja na insegurança de liderar um grupo por se considerar um estrangeiro, nas sérias crises de asma, que o fragilizavam ou na crueldade de quem expõe à humilhação aqueles que não o seguem e assassina friamente os que não obedecem as leis impostas pela “revolução”.

Mas o herói não deixa de aparecer no filme. Che é saudado como mito a cada cidade que domina na guerrilha urbana. É visto como o grande herói da revolução quando toma Santa Clara, a penúltima e cidade-chave antes de partir para a capital Havana apenas para consolidar algo que já estava certo com a ridícula fuga de Fulgêncio Baptista.

Contudo, mesmo essa mitificação vem mais de um campo externo do que num foco dado por Soderbergh ou por Del Toro. E o principal “culpado” disso é o ator, que empregou muito tempo neste projeto de filmar estas partes da vida de Che e interpreta a figura histórica com a correção de quem tem o cuidado e o equilíbrio de não descambar para a glorificação do mito ou para a completa iconoclastia.

Surgiram críticas, porém, de que o filme é panfletário, esquerdista, essas bobagens ainda vigentes (direita e esquerda, sinceramente, são versos de um poema ultrapassado). Talvez pelas cenas exatamente de Che figurativamente carregado nos braços do povo e demonstrando alguma humildade ao dar o crédito a todos pela revolução ou grandeza/honestidade, ao mandar um grupo de soldados comandados por ele devolver um carro roubado.

Ora, mas Che era então visto como herói pelo povo cubano. Se ele cometeu erros, crimes ou qualquer outra coisa que o desabone, é algo que pode e deve ser discutido. Mas é impossível remar contra a história. Da mesma forma, ele é chamado de assassino por manifestantes na porta da ONU em outra parte do filme. Estas críticas, acredito, são mais partidárias e de um pseudo-ideologismo do que pelo filme, que acredito ser bastante equilibrado.

Isso me faz lembrar certa vez as críticas de uma amiga ao filme “A Rainha” (2004), que ao deixar o cinema disse que a película era muito pró-Tony Blair. Na época em que o filme foi lançado, Blair já não gozava de muita popularidade no Reino Unido e no resto do mundo por causa da guerra do Iraque e era chamado pela imprensa de poodle de George W. Bush. Acontece que no período em que o filme se passa, quando o Partido Trabalhista finalmente chega ao poder após os 11 anos de Margaret Tatcher, Blair tinha todo aquele capital político, que seria mantido próximo do intacto não fosse a excessiva proximidade com o governo americano.

Da mesma forma, gostando ou não de Che Guevara, é preciso entender que ele era visto como herói, como é visto até hoje por muitos círculos ditos socialistas. E sua morte aos 39 anos, muito jovem, portanto, reforça o mito. Enquanto Fidel agoniza nos erros cometidos e na longevidade que transformou a revolução libertadora em cruel ditadura, Che foi parcialmente absolvido pela sua morte.

Mas no caso dos filmes de Soderbergh, este é um capítulo para ser analisado na segunda parte, "Guerrilla", que vai abordar o momento de Che levando sua revolução para a Bolívia (no filme, ele diz que quer levá-la para toda a América Latina), onde sucumbirá diante do exército local. No Brasil, a película tem previsão de estrear em maio, data que, no entanto, pode ser alterada. Por enquanto, o resultado do trabalho de Soderbergh e Del Toro é satisfatório.

Abaixo, como curiosidade, alguns trechos do discurso de Che Guevara na ONU na década de 60.