domingo, 14 de fevereiro de 2021

A grande DR de "Malcolm & Marie"

O casal discutindo a relação madrugada adentro
A pandemia de coronavírus que continua assolando o planeta prejudicou muitas produções de cinema e séries de TV, mas alguns artistas conseguiram driblar a doença da melhor forma possível e produzir trabalhos de excelência que começam a ser lançados especialmente em plataformas de streaming. Um deles é o diretor Sam Levinson. Num intervalo de três meses, o criador da ótima série “Euphoria”, lançou três trabalhos calcados na extrema força dos diálogos travados com muita sinceridade e autenticidade sobre diferentes temas. Falo dos dois episódios especiais de “Euphoria”, “Trouble don’t last always” e “Fuck anyone who’s not a sea blob”, ambos lançados pela HBO, e do filme da Netflix, “Malcolm & Marie”.

São três trabalhos que têm uma força em debater questões importantes sobre as quais daria para escrever toda uma dissertação acadêmica. Mas concentrar-me-ei aqui no recente filme da Netflix.

Curiosamente, embora de serviços diferentes, os dois episódios especiais de “Euphoria” e o filme poderiam guardar um parentesco interessante dado o background semelhante das personagens vivido pela atriz Zendaya (Rue e Marie).

Ê possível olhar a sua Rue saindo do encontro com seu patrocinador em “Trouble dont last always” e dos momentos finais que teve com Jules em “Fuck anyone who’s not a sea blob”, indo viver a vida dela, se endireitar, cair, levantar, cair de novo, levantar de novo e esbarrando na vida com o diretor Malcolm (John David Washington, filho do consagrado ator Denzel Washington), com quem constrói uma nova vida até o momento da grande discussão da relação que acompanhamos em “Malcolm & Marie”

No belíssimo filme todo feito em preto e branco, Levinson usou recursos mínimos, afinal estávamos numa pandemia, para contar uma história cuja potência vem do texto e da interação de Zendaya com Washington ao longo das duras horas em que ressentimentos e cobranças de parte a parte são desnudados a partir daquela que era para ser a noite de consagração do então diretor Malcolm, após um elogiado trabalho que ele havia exposto para crítica e público.

As idas e vindas do casal ao longo da discussão
O roteiro de Levinson busca debater duas questões. Uma central, que são as pequenas coisas que não são feitas, mas que minam a relação do casal, e eventualmente provocam uma explosão de parte a parte. E uma secundária, que são reflexões sobre o cinema, a indústria e a crítica.

Elas vão se alternando, mas com peso maior sobre os dramas do casal. O estado em que se encontram, uma reflexão sobre como eles chegaram ali e por que não conseguem dar o próximo passo para tornarem aquela vida a dois, onde o amor é inegável, mais confortável e melhor para ambos.

Em determinado ponto, “Malcolm e Marie” também guarde uma semelhança com outra produção da Netflix, “História de um casamento” (2019), de Noah Baumbach. Ali também o casal formado por Adam Driver e Scarlett Johansson também vivia uma crise e se amava. Mas se a dupla Zendaya-Washington quer seguir junta, mas levar a roupa suja logo antes que acumule e se torne insustentável, o casal Driver-Johansson precisa de separar para manter o amor e o respeito mínimo um pelo outro. Em “Malcolm & Marie”, a relação está por um fim. Em “História de um casamento”, há a compreensão mútua, que, apesar do carinho, aquele ciclo precisa ser fechado. É para não chegarem neste ponto que o casal de “Malcolm & Marie” precisam tentar se entender e, especialmente, Malcolm precisa entender e valorizar a companheira que diz tantas vezes se sacrificar por ele.

Portanto, o desejo que pontua a jornada deste casal é o do reconhecimento pelo outro. A busca para não invisibilizar uma das partes. E reconhecer que a força está na união.

E nesta história, Zendaya se mostra uma força da natureza. São delas as melhores cenas, os melhores monólogos, como o discurso do “obrigado” já perto do fim do filme. Não que David Washington esteja mal. Talvez seja um trabalho tão bom quanto o seu papel em “Infiltrado na Klan” (2019), ainda que sejam personagens completamente diferentes. Mas Zendaya mostra não apenas a força, mas uma capacidade de diversidade e total domínio em cena que consegue enganar até o espectador que assiste ao filme e te conduzir para onde ela quer.

Pela interpretação de Zendaya, vale a pena ver um filme basicamente de diálogos, em preto e branco e com uma produção mínima. Mas cujo texto tem uma beleza comparável aos dos dois episódios especiais de “Euphoria”, ainda que estes ainda sejam melhores do que “Malcolm & Marie”. De qualquer forma, são três trabalhos de muito fôlego de Levinson, que exibem o bom momento do diretor para escrever diálogos conectados a questão relevantes da sociedade.

Cotação da Corneta: nota 9.