terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Os melhores e os piores filmes de 2019

Cafarnaum, O Irlandês e Parasitas

Eis que chegamos ao grande momento do ano. A divulgação do prêmio Corneta Ballon D’Or Awards com os 30 melhores filmes de 2019*. 

Vamos ao ranking contendo aqueles trabalhos que de alguma forma foram aprovados pelo crivo SEVERO e IMPLACÁVEL da Corneta: 

1- Cafarnaum (Capharnaum, LIB, FRA, EUA, Chipre, QAT). Diretora: Nadine Labaki. 
2- O Irlandês (The Irishman, EUA). Diretor: Martin Scorsese. 
3- Parasitas (Gisaengchung, Coreia do Sul). Diretor: Bong Joon Ho. 
4- Bacurau (BRA). Diretor: Kléber Mendonça Filho. 
5- Ad Astra: Rumo às estrelas (Ad Astra, EUA, CHI). Diretor: James Gray. 
6- Nós (Us, EUA, CHI). Diretor: Jordan Peele. 
7- História de um casamento (Marriage Story, ING, EUA). Diretor: Noah Baumbach. 
8- Se a rua Beale falasse (If Beale Street could talk, EUA). Diretor: Barry Jenkins.
9- Vice (Vice, EUA). Diretor: Adam McKay. 
10- Nunca deixe de olhar (Werk ohne Autor, ALE, ITA). Diretor: Florian Henkel Von Donnersmarck. 
11- Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, EUA). Diretores: Anthony e Joe Russo. 
12-  Você não estava aqui (Sorry we missed you, ING, FRA, BEL). Diretor: Ken Loach. 
13-Dor e Glória (Dolor y Gloria, ESP, FRA). Diretor: Pedro Almodóvar. 
14- Coringa (Joker, EUA, CAN). Diretor: Todd Phillips. 
15- Era uma vez... em Hollywood (Once upon a time... in Hollywood, EUA, ING, CHI). Diretor: Quentin Tarantino. 
16- Quem você pensa que sou (Celle que vous croyez, FRA, BEL). Diretor: Safy Nebbou. 
17- Green Book (Green Book, EUA). Diretor: Peter Farrelly. 
18- A favorita (The Favourite, IRL, ING, EUA). Diretor: Yorgos Lanthimos. 
19- A professora do jardim de infância (The Kindergarten teacher, EUA, ISR, ING, CAN). Diretora: Sara Colangelo. 
20- Ford vs Ferrari (Ford v Ferrari, EUA, FRA). Diretor: James Mangold. 
21- Homem-Aranha: longe de casa (Spider-Man: Far from home. EUA). Diretor: Jon Watts. 
22- Rocketman (Rocketman, ING, CAN, EUA). Diretor: Dexter Fletcher. 
23- Pavarotti (Pavarotti, ING, EUA). Diretor: Ron Howard. 
24- O velho e a arma (The old man & the gun, EUA). Diretor: David Lowery. 
25- Amor até as cinzas (Jiang hu er nü, CHI, FRA, JAP). Diretor: Jia Zhangke. 
26- Dois Papas (The two Popes, EUA, ITA, ARG, ING). Diretor: Fernando Meirelles. 
27- Midsommar: o mal não espera a noite (Midsommar, EUA, SUE, HUN). Diretor: Ari Aster. 
28- O corvo branco (The White crow, ING, FRA, SER). Diretor: Ralph Fiennes. 
29- Obsessão (Greta, IRL, EUA). Diretor: Neil Jordan. 
30- Graças a Deus (Gráce à Dieu, FRA, BEL). Diretor: François Ozon. 

Mas como nem tudo são flores no ano, eu não posso ir embora sem divulgar os vencedores do Prêmio Uva Passa de piores filmes do ano. Vamos agora às dez bombas largadas no universo em 2019. 

1- Cats (Cats, ING, EUA). Diretor: Tom Hooper. 
2- Rambo: Até o fim (Rambo: Last Blood, EUA, ESP, BUL). Diretor: Adrian Grunberg. 
3- Na Fronteira (Gräns, SUE, DIN). Diretor: Ali Abbasi. 
4- MIB - Homens de preto internacional (Men in black: international, CHI, EUA). Diretor: F. Gary Gray. 
5- Vox Lux: o preço da fama (Vox Lux, EUA). Diretor: Brady Corbet. 
6- Máquinas Mortais (Mortal Engines, EUA, NZL). Diretor: Christian Rivers. 
7- Velozes e Furiosos: Hobbs & Shaw (Fast & Furious Presents: Hobbs & Shaw, EUA). Diretor: David Leitch. 
8- Star Wars: A ascensão Skywalker (Star Wars: Episode IX - The Rise of Skywalker, EUA). Diretor: J. J. Abrams. 
9- Vidro (Glass, EUA, CHI). Diretor: M. Night Shyamalan. 
10- Hellboy (Hellboy, EUA, CHI, BUL, CAN). Diretor: Neil Marshall. 

É isso. Feliz ano novo aos amigos. E que venha a temporada do Oscar!

* Critério para a escolha: Eram elegíveis para entrar no ranking apenas os filmes que estrearam nos cinemas do Brasil e de Portugal entre o primeiro e o último dia do ano, bem como os lançamentos originais em plataformas de streaming. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

J.J. Abrams tenta fazer fan service e joga trilogia de Star Wars no lixo

Se há algo de bom no filme são as batalhas
Desde que a saga Star Wars foi retomada em 1999, maiores foram os erros do que os acertos do universo. Com ambições de finalizar uma jornada que começou lá atrás com o primeiro filme da saga lançado em 1977 e então dirigido pelo criador da história George Lucas, “A ascensão Skywalker” (Star Wars: Episode IX – The Rise of Skywalker, no original) tem tantos erros básicos que a conclusão imaginada por J.J. Abrams para esta saga que atravessou quatro décadas e gerações de fãs beira o melancólico.

Em um ano em que vimos a conclusão da “Saga do Infinito” da Marvel com o lançamento de “Vingadores: Ultimato” fica ainda mais gritante a diferença quando comparamos dois dos universos mais populares do cinema. É claro que o da Marvel foi desde o princípio pensado para ser interconectado e ter uma coesão dentro do mundo em que se inserem aqueles persoagens. Já Star Wars inicialmente era uma trilogia entre 1977 e 1983, ganhou outra entre 1999 e 2005 e uma terceira e definitiva trilogia que começou com o bom “O despertar da força” (2015), continuou com o razoável “Os últimos Jedi” (2017) a concluiu tristemente com “a Ascensão Skywalker” neste ano. 

Mas mesmo quando analisados isoladamente, o maior problema da atual trilogia cujo primeiro e terceiro filme foram dirigidos por Abrams e o segundo por Rian Johnson é que os filmes não dialogam entre si. Parece que cada um toma suas próprias liberdades, faz os personagens viajarem de um lado para o outro sem qualquer fundamento básico e tem suas motivações seguidas ao bel prazer de pinceladas mal ajambradas de um roteiro ruim. Sim, porque o roteiro de “Ascensão Skywalker” é ruim, com diálogos sofríveis que variam entre o infantil e o meramente constrangedor. 

(E ATENÇÃO AGORA PARA POTENCIAIS SPOILERS)

O que Abrams pareceu tentar fazer neste filme foi um grande fan service. Mas esqueceu do básico que faz um filme ser... um filme. Ou seja, falta uma história com coesão, começo, meio e fim e um mínimo de profundidade. Ninguém aqui está pedindo para J.J. Abrams fazer NouvelleVague ou Neorrealismo italiano, mas um filme em que não pode se descuidar de duas coisas fundamentais mesmo para um blockbuster hipercomercial: uma boa história e o desenvolvimento dos personagens. E são duas coisas que agora, olhando em perspectiva, a nova trilogia de Star Wars não tem.

Se analisarmos o enredo desta trilogia, muita coisa não faz sentido. “O despertar da Força” tenta acompanhar a jornada de uma ainda desconhecida Rey (Daisy Ridley), enquanto remanescentesdo Império reorganizam-se como a Ordem Final e buscam meios de derrubar a República Galáctica. Em “Os últimos Jedi”, as principais peças do tabuleiro se separam, o Império ganha força e a resistência é praticamente dizimada. Até que chegamos ao atual filme, em que Palpatine surge do nada e com uma saída fraquíssima do roteiro para comandar o Império com dezenas de naves estrela da morte e quase nada do que o Rian Johnson havia apontado no segundo filme vem a tona no terceiro. Porque simplesmente as histórias não dialogam entre si.

Quando tentamos olhar para a jornada dos personagens, também sobram problemas. É possível imaginar a nova trilogia de Star Wars como um jogo de espelhos para com a trilogia original. Em maior ou menor escala e retirando os andróides deste recorte, os personagens que temos mais lembrança da trilogia original são Darth Vader (originalmente interpretado por David Prowse), Luke Skywalker (Mark Hamill), Leia (Carrie Fisher), Han Solo (Harrison Ford), mestre Yoda e Lando Calrissian (Billy Dee Williams). Seus espelhos na formação de uma nova mitologia Star Wars, mas não necessariamente com o mesmo tipo de história ou temperamento, são Keylo Ren (Adam Driver), Rey, Poe Dameron (Osar Isaac), Finn (John Boyega), Maz Kanata (Lupita Nyong´o) e Rose (Kelly Marie Tran).

Finn, Rey e Poe, ótimos personagens com histórias ruins
Como dissemos, é claro que nem todas as “cópias” são idênticas. Poe tem temperamento semelhante ao de Han Solo, Maz Kanata não é exatamente uma guerreira Jedi, enquanto Finn e Rose não encontram semelhantes na trilogia original. Mas a essência da ideia é essa. A de criar novos mitos com personagens mais afeitos aos tempos em que vivemos e principalmente e fundamentalmente mais representatividade. Daí termos um negro como co-protagonista (Finn), uma mulher como heroína principal (Rey) e outra mulher como uma exímia mecânica de naves (Rose).

Pois bem. E o que foi feito de toda essa gama de 12 personagens? J.J. Abrams tinha tudo para encerrar bem a geração de Luke, Leia e Han Solo e abrir um espaço enorme para a nova geração de Finn, Rey e Poe. Ele não fez nem uma coisa nem outra.

O que vimos foi um grande jogo de fantasmas que foram aparecendo ao longo do filme. Todos eles estiveram lá. Teve espaço até para o Yoda aparecer ao menos em voz. Mas qual a função que os velhos pilares tem de fato no filme? Pouca ou nenhuma. Mesmo a Leia não faz nenhum sentido no roteiro. E isso é facilmente entendido pelo fato de que as cenas em que Carrie Fisher aparece no filme foram gravadas anteriormente ao seu falecimento em 2016, mas não foram utilizadas nos filmes “O despertar da força” e “Os últimos Jedi”. É por isso que elas são pessimamente colocadas e não servem em nada à história.

E o que podemos dizer dos personagens novos? Tiveram um desenvolvimento errático com roteiros mais rasos que uma piscina para bebês.

Sim, porque tínhamos três ótimos e promissores personagens para serem os pilares de uma nova era e com uma química excelente. Finn, um stormtrooper que escapa das mãos do império. Poe, um candidato a novo Han Solo, exímio piloto e extremamente arrogante e convencido, e Rey, uma desconhecida que vivia num planeta distante, cuja origem desconhecíamos, mas que detinha um poder diferente da Força. Para onde eles foram depois de tudo isso? Que jornada tiveram? Que provações tiveram que enfrentar? O desenvolvimento deles foi errático e pouco convincente.

Toda a mitologia de Star Wars (e de muitos produtos do cinema) é baseada na jornada do herói. E nós temos três aqui para acompanhar nesta saga. Pelo que eles passaram? Que desafios pessoais enfrentaram para além de combater o Império? Finn foi um personagem esquecível no segundo filme e no terceiro já surge como membro proeminente da resistência sem muito se falar do que aconteceu com ele, das suas origens e da sua história. Poe erra um arrogante no primeiro filme, mas exímio piloto com uma família ligada à resistência, tentou aprender alguns passos com Leia, que o explicou a importância de mais do que ser alguém qualificado era preciso ser um líder, e no terceiro filme virou um mulherengo com um passado de contrabandista em uma história muito mal inserida no roteiro.

E ainda tivemos Maz Kanata, uma personagem promissora que foi subaproveitada na série, e Rose, que foi uma das protagonistas de “Os últimos Jedi” e neste filme foi reduzida a três ou quatro falas irrelevantes e muita correria.

E assim chegamos a Rey. A solução dada para ela foi péssima. Ser neta do Palpatine quando nunca soubemos sequer da existência de uma árvore genealógica básica do imperador parece uma tentativa de dar um plot twist que se revelou muito ruim. Seria a versão destra trilogia para o famoso “Luke, I am your father” de Darth Vader, porém simplesmente não faz sentido. Era melhor que a Rey não tivesse parentesco com ninguém e fosse realmente ninguém e meio que adotada pela família Skywalker. Afinal, a Força não é genética. Qualquer um pode vir a tê-la e desenvolvê-la. Inclusíve essa era uma ideia difundida em “Os últimos Jedi”.

Rey, porém, ainda tem um arco um pouco mais trabalhado. Confuso, é verdade, mas com um pouco maiks de profundidade. Afinal, entre os protagonistas ela é A protagonista da saga. Porém, sua vida se resume a divagações e provações que testem a sua fé enquanto ela passa três filmes em WhatsApp mental com Keylo Ren. Parece mais que ela está sendo treinada para fundar uma igreja do que para ser uma guerreira Jedi. E enquanto isso tem que resistir no deserto à tentação do lado negro da Força. E, convenhamos, Rey e Keylo formando um casal é o que de pior poderia acontecer.

Mais importante de tudo é que os três personagens não têm um desenvolvimento sólido que nos faça comprar as suas histórias.  

E o mesmo vale para Keylo Ren. O personagem de Adam Driver nunca foi o vilão que deveria ter sido nesta trilogia. Sua história é pueril, suas motivações não convencem e a sua participação no último filme se resume a ótimas cenas de batalha e uma indecisão ou mudanças de rumos tomadas a partir de pequenas coisas que o fazem ser um personagem fraco. 

Se tem algo que “A ascensão Skywalker” tem são suas boas cenas de luta. Os efeitos especiais são ótimos, as lutas são bem coreografadas, mas Abrams se esqueceu de que os efeitos especiais precisam ficar a serviço da história e não o contrário. Esta é diferença entre um bom filme e um filme medíocre quando analisamos um blockbuster. E Star Wars, infelizmente, é um filme medíocre. 

É uma pena que Abrams parece não ter compreendido a melhor forma para fechar esta mitologia de Star Wars. Neste ponto, e também olhando em perspectiva, Rian Johnson nos deu um caminho mais interessante a trilhar com o seu filme do meio. Ao menos ali tinha um mínimo de conceito. Com uma série de problemas, é claro. Mas havia uma história em que se podia agarrar e seguir em frente. Abrams não soube aproveitar o que “Os últimos Jedi” tinha de bom, não levou a saga para além de um confronto do bem contra o mal em batalhas de naves espaciais e raios disparados e concluiu a história da forma mais risível possível e com soluções fáceis. 

Johnson, aliás, comandará a nova trilogia de Star Wars que promete ser lançada nos próximos anos. Não sabemos, porém, se Finn, Poe e Rey voltarão, mas ainda é possível aproveitar eles e explorar melhor as suas histórias. Ainda mais em uma saga começando do zero e sem os fantasmas do passado. É preciso, também, haver um vilão bom, o que nunca houve nesta atual trilogia.

“A ascensão Skywalker”, portanto, é decepcionante. Não é por acaso que Abrams anda sendo chamado de Jar Jar Abrams, em referência ao odiado personagem Jar Jar Binks da segunda trilogia. O diretor, de fato, deixou a desejar. Mas é claro que esta saga ainda tem muita força. E fãs que sempre vão querer uma nova história. 

Cotação da Corneta: nota 3,5.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

“O irlandês”, de Scorsese, é um filme que já nasce como um clássico

Pesci e De Niro em atuações monstruosas
Um dos diretores fundamentais da história do cinema, Martin Scorsese já realizou diferentes tipos de filmes. Muitos deles muito bons. Mas parece ser no território das histórias sobre a máfia que o cineasta novaiorquino descendente de sicilianos se sente mais à vontade para contar algumas das suas grandes histórias. “O irlandês” (The Irishman, no original) é definitivamente uma delas. Baseado no livro “I heard you paint houses”, de Charles Brandt, o filme já nasce como um clássico não apenas do gênero, como também da história do cinema.

Tudo na produção de “O irlandês” é impecável. A condução da história de Scorsese, a forma como a história é contada, a trilha sonora econômica e precisa, a edição de Thelma Schoonmaker, colaboradora de mais de três décadas de Scorsese, o trabalho impecável de efeitos especiais que fez três atores de quase 80 anos rejuvenescerem para contar a história proposta pelo diretor, e, claro, a atuação do trio de protagonistas; Robert De Niro, Joe Pesci e Al Pacino. Trabalhando juntos pela primeira vez, o trio entrega atuações excelentes. Especialmente Pesci, que, aos 76 anos, voltou da aposentadoria para dar vida ao mafioso Russell Bufalino num dos melhores trabalhos de sua carreira.

O filme é baseado numa história real. Ele acompanha a ascensão de Frank “irlandês” Sheeran (De Niro) de motorista de caminhão a nome fundamental da estrutura da máfia local ao mesmo tempo em que Scorsese procura dar sua interpretação para a misteriosa morte de Jimmy Hoffa (Pacino), o conhecido e poderoso líder do sindicato dos caminhoneiros dos Estados Unidos entre os anos 50 e 70, que desapareceu em 1975, justamente no momento em que tentava reconquistar o controle do sindicato depois de passar quatro anos na cadeia por fraude.

Com 3h30min, “O irlandês” é o filme mais longo de Scorsese, mas vale cada segundo. Não há uma cena que poderia ter sido cortada ou que tenha sido colocada em excesso. Cada cena faz sentido para contar a história do trio de protagonistas ao longo das décadas, o que transforma o filme num épico sobre a máfia comparável à trilogia do “Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola.

A comparação entre os dois diretores contemporâneos é inevitável, dado que o ambiente é o mesmo entre a clássica trilogia de Coppola feita entre 1972 e 1990 e “O irlandês”. A diferença talvez seja na abordagem. “O Poderoso Chefão” mitificou os altos escalões da máfia, numa série de filmes que também tinha como estrelas a dupla Pacino e De Niro. Sem contar, é claro, o talento de Marlon Brando no primeiro filme.

Pacino e De Niro reeditando velha parceria
“O irlandês”, por outro lado, joga luz sobre os soldados da máfia. Scorsese, aliás, sempre gostou de contar suas histórias sob a perspectiva dos escalões mais abaixo da estrutura do crime organizado. Ele faz a mesma coisa em “Os bons companheiros” (1990) e “Cassino” (1995). Em “Os Infiltrados” (2006), filme que lhe rendeu seu único Oscar de diretor até aqui, o olhar já é sobre os agentes duplos da história.

Aqui o narrador da história é Sheeran, desde o momento em que dirigia um caminhão que fornecia carne para Navalha (Bobby Cannavale), passando pelo seu primeiro encontro com Russell, quando começa a “pintar paredes” para a máfia, e chegando o fim da sua vida, quando já debilitado e sem nenhum dos seus velhos companheiros, pois todos já estão mortos, Sheeran definha num asilo lidando com os erros e os arrependimentos do passado.

É pelo olhar de Sheeran que vamos acompanhando o desenrolar das histórias de todos os mafiosos que circundam os Estados Unidos naquelas décadas em que Hoffa era um poderoso dirigente sindical e mantinha relações com a máfia. Acompanhamos a influência silenciosa de Russell sobre toda a organização criminosa americana, a ascensão de novos nomes para a ribalta do crime e a queda de nomes que vão perdendo o interesse ou cumprindo as suas missões ao longo dos anos.

Mesmo vivendo uma vida em que se vê cercado pela violência, sendo ele mesmo responsável por muitos atos violentos naquelas décadas, Sheeran consegue passar incólume enquanto vê outros companheiros ou inimigos tombarem nas disputas e entre as relações de poder da máfia.

O passar dos anos vai criando um Sheeran, que a despeito da lealdade com quem lhe deu abrigo e poder na estrutura da máfia, também sente o amargor das escolhas que foi obrigado a fazer, a dor do afastamento da filha primogênita e a sensação de solidão ao ver que seus velhos companheiros não estão mais ali. Todos tombaram pela violência ou, com sorte, de causas naturais, deixando para Sheeran o vazio de uma vida em que ninguém conhece os seus, digamos, “feitos” e ele mesmo não os pode contar, mesmo tantas décadas tendo se passado.

É uma pena que “O irlandês” tenha se reduzido em muitos lugares à reprodução na Netflix, o serviço de streaming que topou bancar o orçamento de US$ 175 milhões, o mais alto da vasta carreira do diretor. Um filme deste porte e um dos melhores do ano merecia uma sala de cinema. Scorsese realizou uma obra-prima insuperável em sua filmografia que conta com muitos excelentes títulos.

Cotação da Corneta: nota 10.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Tim Miller ignora sequências e tenta dar um fim/novo começo à saga do Exterminador

Dani, Grace e Sarah, heroínas da resistência
A essa altura, em pleno 2019, é difícil saber o que aconteceu ou a ordem exata dos acontecimentos após seis filmes do Exterminador do Futuro. Tirando a trilogia clássica iniciada por James Cameron e que teve Jonathan Mostow com diretor do terceiro filme, “A rebelião das máquinas” (2003), a franquia foi tomando outros rumos em que a gente fica se perguntando se de fato a Skynet prevaleceu em algum ponto no futuro ou se impediram mesmo o futuro apocalíptico das máquinas dominando o planeta. 

Batizado de “Destino Sombrio” (“Terminator: Dark Fate”, no original), o novo Exterminador tenta dar uma visão sobre tais acontecimentos. Ao mesmo tempo em que tenta encerrar a história, aponta para um futuro digamos.... sombrio. Afinal, somos humanos e temos uma incrível capacidade de fazer bobagens quando recebemos uma tecnologia de ponta em nossas mãos. Ou nem isso. 

Para isso, o diretor Tim Miller e James Cameron, que está entre os sete criadores da história deste filme, ignorou tudo o que aconteceu em “Rebelião das máquinas”, “A Salvação” (2009) e “Gênesis” (2015). Tudo foi considerado fora do cânone do Exterminador. Focou apenas nos  dois primeiros filmes, lançados, respectivamente, em 1984 e 1991, trouxe de volta a atriz Linda Hamilton, a the one and only Sarah Connor (sorry Emilia Clarke), e apontou para os desafios vindouros. 

E qual o resultado disto? Primeiro, um filme divertido. “Destino sombrio” é bem legal para quem é fã de explosões, perseguições, o famoso “tiro, porrada s bomba” e da resistência implacável do vilão que só encontramos na franquia Exterminador do Futuro. 

Aqui ele é vivido por Gabriel Luna, em sua versão Rev-9, uma máquina de combate implacável feita de fibra de carbono e capaz de se dividir, se amalgamar e se moldar de acordo com o ambiente. Ele é praticamente imparável e indestrutível. Sua versão faz o modelo T-800 de Arnold Schwarzenegger parecer um robozinho inofensivo. 

(E agora atenção para os SPOILERS).

He is back
Na história repaginada, Sarah Connor conseguiu impedir o apocalipse da Skynet, porém, em 1997, um Exterminador surge e mata o seu filho John, o futuro líder da resistência. 

Só que mesmo com o futuro alterado, a humanidade não aprende. E daqui a quatro décadas, uma nova ameaça surgirá a partir de uma guerra cibernética. A Legião é o vilão da vez e para isso um Exterminador volta a 2019 para tentar mudar o futuro. Com ele, claro, vem alguém para defender uma pessoa importante para a resistência humana. 

Ao contrário do T-800, Grace (Mackeinzie Davis, grande aquisição para a franquia) é uma humana “melhorada”. Cheia de componentes eletrônicos e amalgamada com equipamentos tecnológicos que a fazem ser mais forte, rápida e precisa. Ainda assim, isso não é suficiente para combater o mal. É aí que surge Sarah Connor. 

Sua entrada é absolutamente triunfal. Com direito a uma citação da frase clássica de Schwarzenegger : “I´ll be back”. 

Trazer Linda Hamilton de volta foi um dos acertos para a história. Ela é a cara da saga junto com Schwarzenegger, que agora aparece como um androide aposentado que é chamado de volta a batalha para cumprir a missão de salvar Dani (Natalia Reyes), a nova peça-chave no tabuleiro da resistência humana no futuro. 

A participação do veterano ator austríaco é um deleite para os fãs, mas funciona de forma muito ruim para o filme. Não convence muito o fato de encontrarmos um Exterminador que havia matado John Connor e agora tenta se redimir e passou a entender melhor os humanos.

Mas é claro que o personagem se segura bem apesar disso. O trocadilho com sua frase famosa, a brincadeira com os óculos escuros e, por fim, o trabalho impecável de Schwarzenegger .no papel Para um ator de filmes de ação que nunca teve muito talento dramático como o seu outrora par do passado Bruce Willis, nada como um androide de fala robótica para que ele se sinta totalmente à vontade. Para alguém que não é exatamente um Al Pacino da emoção, a melhor coisa que existe é interpretar um personagem sem emoção ou arroubos faciais. Não há papel em que Schwarzenegger se sinta mais à vontade. 

Com isso, “Exterminador do Futuro: destino sombrio” cumpre o seu papel de entreter, dar um destino para os personagens clássicos e apontar para o futuro. Na era atual, deixar as franquias em aberto é fundamental para a sua continuidade. Se é que algum dia isso virá a acontecer. 

Mas com Sarah Connor no comando, a resistência nunca acaba até que o futuro esteja assegurado. E a humanidade aprenda a não se destruir. 


Cotação da Corneta: nota 6,5

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A fábula fofinha e rasa de Woody Allen

Selena e Chalamet no meio da chuva
Ser um diretor prolífico é bom para os fãs, mas também pode causar um cansaço de quem olha, ou fazer o próprio autor cair em fórmulas repetitivas. Nos últimos 37 anos, só teve um em que Woody Allen não lançou um filme. Foi justamente o ano passado. Mas também pode-se dizer que desde 2011, quando lançou “Meia-noite em Paris”, que o diretor americano não traz ao cinema algo verdadeiramente brilhante. “Blue Jasmine” (2013) e “Roda Gigante” (2017) têm seus bons momentos, é claro, mas muito mais calcados na interpretação de suas atrizes principais, Cate Blanchett e Kate Winslett, do que propriamente em suas histórias. 

“Um dia de chuva em Nova York” (“A rainy day in New York”, no original) é mais um filme médio do diretor. Não é ruim como “Magia ao luar” (2014), mas está longe de ser marcante na filmografia de Allen. É mais um conforto para seus fãs passarem duas horas agradáveis e sem grandes conflitos numa sala de cinema do que propriamente um filme para entrar em qualquer lista de best of do diretor. 

“Um dia de chuva em Nova York” é uma fábula onde Allen discorre sobre duas visões de mundo. Uma pessimista e outra otimista. Para expor suas ideias, seus personagens usam a linguagem do cinema. Chan (Selena Gomez) quer ver o mundo como um conto de fadas em que tudo dá certo e o casal romântico se beija no fim. Gatsby (Timothée Chalamant, em uma interpretação que é um dos pontos altos do filme), já vê o mundo de uma forma mais cinica e niilista. 

Tudo é fruto de como eles se encaixam no mundo. Chan sabe que não é exatamente a garota perfeita que encanta todos, mas tem noção do seu valor e sabe se encaixar no mundo. Gatsby, por outro lado, teve tudo na vida, mas parece não se encaixar naquele mundo. Ao mesmo tempo em que é um jovem rebelde sem causa cheio dos sintomas do chamado “white people problems”. 

E este é um dos problemas do filme. É difícil se encaixar na fábula bourgeois de Allen onde ninguém realmente sabe o que é viver uma real dificuldade. Além de ser rico, Gatsby ganha dinheiro facilmente num estalar de dedos porque é um ás no poker e tem uma sorte que o acompanha o tempo todo para justificar os excêntricos gastos que faz durante todo o filme. Além, é claro, de uma família rica por trás. Tudo lhe vem fácil. Fácil até demais. A ponto de ele de fato não enfrentar um desafio realmente importante que não seja um auto-conhecimento que, ainda assim, é muito raso para os padrões e reflexões que Allen costumava nos dar.

Não é que os ricos não possam ter voz no cinema. Longe disso. E estamos falando de Woody Allen e não de um Ken Loach, cineasta mais afeito a filmar os dramas da classe trabalhadora. Seu cinema sempre refletiu essa burguesia com um certo cinismo e um texto criativo. Porém, falta algo que justifique esse filme para além de uma mera fábula que procura dar beleza aos dias de chuva, tão odiados por todos.

E é este ponto do texto que faz falta em “Um dia de chuva em Nova York”. Salvo raros momentos, seu roteiro não tem as boas tiradas que o diretor mostrou em filmes passados e falta a sua história um pouco mais de conflito que vá além de pessoas flanando por Nova York discutindo de forma desinteressante sobre a vida e cujo único contratempo é uma chuva torrencial. 

No meio disso, está o outro vértice de um triângulo amoroso. Ashleigh (Elle Fanning) é uma jovem jornalista do interior deslumbrada pela oportunidade de entrevistar um dos seus diretores de cinema favoritos, Rolland Pollard (Liev Schreiber). Através dele, Ashleigh se imiscui no jet set cinematográfico de Nova York a ponto de se transformar numa caricatura de si mesma enquanto Allen a usa para tecer seus pensamentos sobre o trabalho da imprensa. 

“Um dia de chuva em Nova York” é cercado de homenagens. A começar pelo nome de um dos seus personagens principais. Chalamet interpreta um jovem chamado Gatsby Welles. O primeiro nome é um conhecido personagem criado pelo escritor F. Scott Fitzgerald no romance “O grande Gatsby” (1925). Tal como o Gatsby de Allen, o de Fitzgerald também era um bon vivant que circulava entre a high society e tinha um gosto pelo submundo a ponto de quebrar regras. Fitzgerald é um dos grandes nomes da literatura norte-americana.

Já o sobrenome é uma homenagem a Orson Welles, diretor de clássicos como “Cidadão Kane” (1941), filme que também reflete sobre o jornalismo. Welles é um dos mais conhecidos diretores de cinema e não é à toa que o personagem de Chalamet é um apaixonado por filmes antigos. 

Chalamet, aliás, interpreta também um alter-ego de Allen. As ideias pessimistas dele estão ali, o jeito de andar pela cidade e de se vestir também. Ele é uma cópia de personagens vividos pelo diretor em filmes como “Noivo Neurótica, Noiva Nervosa” (1977). 

Donde se vê, portanto, que “Um dia de chuva em Nova York” tinha muito potencial. Mas os temas abordados (jornalismo, visões de mundo, lições da vida) acabam ficando apenas numa camada superficial a partir de um roteiro pouco inspirado. 

É um filme agradável e bonito como costumam ser os filmes de Allen. E só o diretor para encontrar beleza na chuva. Porém, “Um dia de chuva em Nova York” ficou devendo um mergulho mais profundo nas questões que aborda. Acabou prevalecendo a doçura de uma história de amor tradicional. 


Cotação da corneta: nota 6,5

domingo, 13 de outubro de 2019

Phillips vê o Coringa como uma vítima, quando na verdade ele é o caos

Phoenix brilhante no papel do Coringa
Uma das frases mais reproduzidas do filósofo Jean-Jacques Rousseau é a que diz que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. A sociedade transforma o homem num individuo ruim porque, com o desenvolvimento da civilização, os homens teriam se tornado gananciosos, mesquinhos, avarentos e invejosos, estabelecendo uma desigualdade entre eles e encerrando para sempre a naturalidade humana e, consequentemente, a sua bondade. A ideia presente no “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”, de 1755, parece ser a base teórica na qual o diretor Todd Phillips se inspirou para levar às telas a sua versão tão particular do Coringa, arqui-inimigo do Batman e que agora ganha um filme solo que procura explorar uma origem para um dos maiores vilões da história dos quadrinhos.

Parar criar a sua versão do vilão, Todd renegou a história conhecida do personagem, ainda que o filme tenha até mais conexões com o universo do Batman e da DC do que se esperava. O que interessa ao diretor, que também escreveu o filme junto com Scott Silver é investigar uma genealogia do mal por trás da mente psicótica de Arthur Fleck, o homem que se transformaria num dos mais perversos, sádicos e cruéis criminosos dos quadrinhos. Essa é a base de “Coringa” (“Joker”, no original).

Há um mérito neste estudo de personagem feito pelo diretor, mas ele também esconde um problema envolvendo o personagem que, queira ou não, tem uma mitologia de oito décadas e alguns filmes construída desde a sua primeira aparição em uma história do Batman em 25 de abril de 1940. Incomoda a tentativa de justificar a maldade do Coringa. O maior problema, aliás, está nessa eterna busca nas duas horas de filme de um “por que?”. Essa tentativa de explorar uma tese sob a lógica de Rousseau de que todo homem nasce bom, mas o meio o deteriora. Ou, parafraseando um trecho de “Bacurau”, mais recente filme de Kléber Mendonça Flho, todo mundo já teve uma mãe.

Funcionaria melhor se fosse um estudo sobre um psicopata fictício qualquer. Mas ao colocar o selo do Coringa no título, há todo um passado que o mostra como alguém que é a essência da maldade e o mensageiro do caos. Que com sua risada sádica pratica o mal simplesmente porque é o que lhe dá prazer. O Coringa não tem explicação. Ele é o mal e o terrorismo em estado bruto. Ou se aproxima mais da máxima do inglês Thomas Hobbes em “O Leviatã”, de 1651, de que o homem é essencialmente mau. 

Contudo, entre Rousseau e Hobbes, o Coringa não ocupa nenhum destes espaços. Ele é o que é com os buracos de ser uma criação. Afinal, ele não é humano e sim um personagem de quadrinhos. E também foi construído sem ter o sentido de humanidade. Até pela loucura causada pelo que se entende ser a sua origem mais conhecida, a queda em um tanque de produtos químicos que o desfigurou e o tornou insano.

Ao longo das décadas após a sua criação, o Coringa foi incorporando ainda mais esse sentimento de falta de humanidade, horror, terrorismo e mensageiro do caos no seu estado mais bruto. Ele é um psicopata que tem uma mente naturalmente doentia e que tem prazer em fazer o mal. Daí a sua risada sádica e apavorante, que tão bem foi construída pelo ator Joaquin Phoenix. Tanto que nos quadrinhos é quem comete alguns dos crimes mais terríveis no universo do Batman, como a morte de Jason Todd, o segundo Robin, e a paraplegia de Barbara Gordon.

Phillips tenta pintar o Coringa como fruto de uma sociedade doentia. Na vida particular, ele tem uma mãe doente que já fora internada no Asilo Arkham, o mesmo asilo onde o Coringa é um morador constante. Que trabalhara para Thomas Wayne, pai do jovem Bruce. Ele próprio já fora internado no Arkham por motivos que o filme não revela. Arthur frequenta uma psicóloga, toma sete remédios diferentes, tem distúrbios neurológicos e ainda apanha da vida em uma Gotham City que é puro caos e desordem. Nesse ponto, aliás, o filme faz uma ponte bem interessante com a série “Gotham” (2014-), que procura contar a história da cidade justamente neste momento em que Bruce é uma criança, não há Batman e Jim Gordon ainda é um policial. 

Estamos, portanto, numa época em que a cidade não tinha o Batman, era infestada de ratos e a criminalidade era galopante e a luz do dia. Arthur aqui é pintado como uma vítima desse caos. Sofre bullying dos colegas, apanha na rua, é humilhado constantemente, não é amado e é frequentemente rejeitado por todos. Phillips tenta dizer que este homem vai explodir a qualquer momento. E nós sabemos disso, pois sabemos quem ele é e no que irá se tornar. E deixa implícito que se a sociedade não cuida de homens como este, eles irão explodir. Toda essa tentativa de justificá-lo é uma visão um pouco equivocada do Coringa.

Acontece que o personagem em sua essência não é vítima. É e sempre foi um vetor do caos. É disseminador da desordem. É o próprio condutor do terror. É no terço final do filme, quando Phoenix já está devidamente transformado neste personagem, que o Coringa é brilhante. 

Num momento em que o mundo vê a ascensão perigosa da extrema-direita em diferentes países, o Coringa virou a personificação do fascismo. Ele é o símbolo de uma Gotham cansada de desmandos e da mentira dos políticos, da corrupção dos policiais, da violência. E surge como o símbolo de mudança pela força desejada por um povo que está cegamente em busca de uma solução rápida para os seus problemas. 

Está não é a primeira vez que o personagem é usado para refletir sobre um estado doentio do mundo. O Coringa de Heath Ledger era um terrorista e foi construído na esteira de uma série de atentados que aconteceram anos antes do filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008). Do 11 de setembro de 2001, quando foram derrubadas as torres gêmeas do World Trade Center, passando por atentados em Madri (2004) e Londres (2005).  

Mas ali, e aqui temos outro problema deste filme, o Coringa era o antagonista. Aqui, não há Batman. Ou qualquer outro contraponto. Bruce Wayne é apenas uma criança e sequer há o comissário Gordon para ser o herói de um filme dominado e domado por um vilão. Há um certo buraco neste ponto que vemos também no filme do “Venom” (2018). A diferença, porém, está na execução. No “Venom” há uma ridícula tentativa de transformá-lo num herói. Em “Coringa”, pelo menos, o personagem está longe de ser um herói. Porém, não há quem o combata, quem apareça com um discurso de que isto que está acontecendo não é correto e expondo os motivos. De fato, o “Coringa” é um voo solo do pensamento anárquico e explosivo de alguém que se sente uma vítima do sistema. E não há quem o defronte.

Com isso, “Coringa” se segura em dois pontos. O primeiro está no fato de ser brilhantemente dirigido. Há uma boa dose de cenas belíssimas, assim como a caracterização dessa Gotham City mergulhada no caos também merece ser elogiada.

O segundo e mais importante ponto é a atuação magnética de seu ator principal. Phoenix é o filme. O seu trabalho para construir o personagem envolveu a perda de 25 kg, o desenvolvimento de feições que evocam uma tristeza e uma maldade assustadoras e de uma risada perturbadora. Ele caminha como uma leveza assustadora no filme enquanto vai se transformando de Arthur em Coringa. Ao mesmo tempo que exibe uma brutalidade crua quando precisa. Suas cenas de dança, seu sorriso desalinhado... tudo evoca o psicopata que o Coringa é. Ele só perde a força justamente quando tenta se justificar. E o discurso no show de Murray (Robert de Niro) é tão ruim que não faz sentido depois de tudo o que ele fez com a mãe, com o ex-colega de trabalho e dias antes no metrô. 

Isso porque o diretor é obsessivo por esse “por que?”. Por que Arthur Fleck transformou-se no Coringa? Essa é a teoria dele. Quando, insisto, o Coringa é o que é porque ele é pura maldade e caos sem justificativas.

A preparação de Phoenix para fazer o personagem não envolveu qualquer mergulho no trabalho original ou mesmo nos filmes em que o personagem foi interpretado por Heath Ledger ou Jack Nicholson, que o interpretou em “Batman” (1989).

- A maneira como ele se move. Há momentos em que dança tão levemente que parece surgir da tristeza do mundo em que vive. É por isso que fui inspirado por Ray Bolger, o espantalho de “O Mágico de Oz” (1939). Adoro o fato de seu personagem brilhar através da dança, música, notas e solfejos. Meu Coringa tem alguns movimentos mecânicos, uma maneira de gesticular e mover a cabeça que denota uma arrogância silenciosa. Muitas vezes combinei dança moderna e música disco: a beleza do Coringa é que é realmente imprevisível. Eu não fui inspirado por nenhum outro Coringa. Mas lembro-me muito bem de Jack Nicholson no Batman de Tim Burton. E o excelente Heath Ledger. Mas eu preferi me preparar sem me referir a nenhum trabalho anterior, nem mesmo quadrinhos ou séries de TV. Eu queria criar o meu Coringa, que foi uma invenção da minha imaginação. Ou da minha loucura. Não é um filme sobre os super-heróis habituais, bandidos e humanos com poderes especiais. Para mim, gostam dos personagens inspirados nos quadrinhos porque têm problemas reais, o mesmo que nós. O Coringa é apenas isso. Um de nós. Ele não tem pai, ele não tem amigos, ele está ansioso e deprimido. O Coringa sofreu trauma e também foi abusado quando criança... Pobre homem... Ele tem todos os problemas deste mundo. Não foi agradável nem fácil entrar na cabeça dele, mas estou orgulhoso de conhecê-lo – disse Phoenix em entrevista à imprensa, ao falar sobre o seu papel.

Percebe-se, portanto, a tentativa no mínimo complicada de humanizar o personagem. Ainda que seja fantástico, diria até soberbo, o trabalho de Phoenix, não apenas pela forma como ele entrou fisicamente, mas também na psicologia do personagem.

Esquecendo os problemas/defeitos/contradições, “Coringa” chega até a ser um bom filme. Falha sim como ensaio sobre a genealogia do mal, mas compensa no trabalho de Phoenix. Ele é a razão da existência do filme. E tem seus melhores momentos quando sai da tentativa de justificar e emula o legado de Ledger. Ali é quando eu fiquei mais interessado em ver um embate com o futuro Batman de Robert Pattinson. 

Phoenix nos entregou uma versão muito boa do Coringa. O que lhe falta, porém, é o freio, o elemento que antagonize o seu discurso. Falta-lhe o Batman, pois o Coringa nunca existiu sem o seu adversário. E vice-versa. E é neste ponto que a construção de Ledger leva vantagem. O Coringa de Ledger tem mais força e um propósito maior, tem um rival e não é um pobre coitado que se desviou porque a vida não lhe sorriu. É claro que ele se passa em outro momento histórico. Mas sua atuação é tão marcante que há pelo menos duas referências ao seu personagem no filme de Phillips. 

As questões que ficam agora é: que papel terá este Coringa no universo cinematográfico da DC? O veremos já no novo Batman previsto para 2021? Ele terá um papel maior como vilão dos heróis da Liga da Justiça? Ou tudo se resumirá a este filme. Seria triste, porém, se esta última opção fosse a escolhida. O Coringa de Phoenix tem espaço para brilhar até melhor nas telas quando encontrar um adversário para ele.  


Cotação da Corneta: nota 8