sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Os melhores e os piores filmes de 2022

Chegamos ao grande momento, o momento mais aguardado do ano: o momento de divulgar o Corneta Ballon D´Or Awards 2022. Muitos diretores e filmes entraram na disputa dada pelo prestigioso conglomerado Corneta Inc. Em busca de um lugar ao sol estiveram de mestres consagrados a novatos querendo um espacinho na lista final do júri formado por mim mesmo.

E não foi nada fácil chegar ao top-30. Contudo, após um grande esforço de reportagem mais uma vez conseguimos aí uma mescla de filmes pequenos com blockbusters, diretores de renome e outros que só o teu amiguinho cinéfilo Pernalonga de batom vai conhecer. E conseguimos ainda alguma diversidade mínima de temas e países, mostrando que só a Corneta tem a mescla ideal de Cannes, Berlim e Hollywood.

Nunca é demais reproduzir os critérios desta lista para quem está chegando agora e quer se tornar um 18º leitor da Corneta. Estiveram elegíveis para o prêmio todos os filmes que estrearam nos circuitos de cinema do Rio de Janeiro e de Lisboa entre o primeiro dia do ano e o dia 27 de dezembro. Além, é claro, dos filmes que estrearam nos cinco principais serviços de streaming no mesmo período. Serviços estes cujos nomes eu não direi, pois ninguém depositou nenhum cheque na minha conta para eu fazer merchan.

Esclarecidas as regras, vamos ao ranking dos filmes que brilharam e sobreviveram de alguma forma ao crivo implacável da Corneta:

1- “Drive my car” (“Doraibu mai kâ” — JAP). Diretor: Ryusuke Hamaguchi.

2- “Aftersun” (“Aftersun” — ING, EUA). Diretora: Charlotte Wells.

3- “A pior pessoa do mundo” (“Verdens verste menneske “— NOR, FRA, SUE, DIN). Diretor: Joachim Trier

4- “Os Fabelmans” (“The Fabelmans “— EUA). Diretor: Steven Spielberg.

5- “O perdão” (“Ghasideyeh gave sefid” — IRA, FRA). Diretores: Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha.

6- “Um herói” (“Ghahreman” — IRA, FRA). Diretor: Asghar Farhadi.

7- “Triângulo da Tristeza” (“Triangle of Sadness “— SUE, FRA, ING, ALE, TUR, GRE). Diretor: Ruben Östlund.

8- “A filha perdida” (“The Lost Daughter” — GRE, ING, ISR, EUA). Diretora: Maggie Gyllenhaal.

9- “Licorice Pizza” (“Licorice Pizza” — EUA). Diretor: Paul Thomas Anderson.

10- “The Batman” (“The Batman” — EUA). Diretor: Matt Reeves.

11- “Top Gun: Maverick” (“Top Gun: Maverick” — EUA). Diretor: Joseph Kosinski.

12- “Crimes do futuro” (“Crimes of the Future” — CAN, GRE, ING). Diretor: David Cronenberg.

13- “O Menu” (“The Menu” — EUA). Diretor: Mark Mylod.

14- “Nada de novo no front” (“Im Westen nichts Neues” — ALE, EUA, ING). Diretor: Edward Berger.

15- “Bardo: falsa crônica de algumas verdades” (“Bardo, falsa crónica de unas cuantas verdades” — MEX). Diretor: Alejandro Gonzalez Iñarritu.

16- “A tragédia de MacBeth” (“The tragedy of Macbeth” — EUA). Diretor: Joel Coen.

17- “Argentina, 1985” (“Argentina, 1985” — ARG, EUA, ING). Diretor: Santiago Mitre.

18- “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” (“Everything everywhere all at once” — EUA). Diretores: Daniel Kwan e Daniel Scheinert.

19- “Armaggedon Time” (“Armaggedon Time” — EUA, BRA). Diretor: James Gray.

20- “Golias” (“Goliath” — FRA, BEL). Diretor: Frédéric Tellier.

21- “Era uma vez um gênio” (“Three Thousand Years of Longing” — AUS, EUA). Diretor: George Miller.

22- “A acusação” (“Les choses humaines” — FRA). Diretor: Yvan Attal.

23- “O peso insuportável de um enorme talento” (“The Unbearable Weight of Massive Talent” — EUA). Diretor: Tom Gormican.

24- “Athena” (“Athena” — FRA). Diretor: Romain Gavras.

25- “O predador: A caçada” (“Prey” — EUA). Diretor: Dan Trachtenberg.

26- “O milagre” (“The Wonder” — IRL, ING, EUA). Diretor: Sebastian Lello.

27- “Trem-Bala” (“Bullet Train” — JAP, EUA). Diretor: David Leitch.

28- “Raymond & Rey” (“Raymond & Ray” — EUA). Diretor: Rodrigo Garcia.

29- “A mulher rei” (“The Woman King” — EUA). Diretora: Gina Prince-Bythewood.

30- “O homem do Norte” (“The North Man” — EUA). Diretor: Robert Eggers.

E agora vamos nos despedir do ano com o prêmio Titanic de piores filmes de 2022:

1- “Blonde” (“Blonde” — EUA). Diretor: Andrew Dominik.

2- “Animais fantásticos: o segredo de Dumbledore” (“Fantastic Beasts: The secrets of Dumbledore” — ING, EUA). Diretor: David Yates.

3- “Morbius” (“Morbius” — EUA). Diretor: Daniel Espinoza.

4- “Pânico” (“Scream” — EUA). Diretores: Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett.

5- “Samaritano” (“Samaritan” — EUA). Diretor: Julius Avery.

6- “Jurrasic World: Domínio” (“Jurrasic World Dominion” — EUA, CHI, Malta). Diretor: Colin Trevorrow.

7- “Adão Negro” (“Black Adam” — EUA, CAN, NZL, HUN — 2022). Diretor: Jaume Collet-Serra.

8- “Emancipation: uma história de liberdade” (“Emancipation” — EUA). Diretor: Antoine Fuqua.

9- “Amsterdam” (“Amsterdam” — JAP, EUA). Diretor: David O. Russell.

10- “Morte no Nilo” (“Death on the Nile” — EUA, ING). Diretor: Kenneth Branagh.

E assim despeço-me deste ano. Feliz ano novo e que venha a maravilhosa temporada do Oscar.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

As melhores séries e minisséries de 2022

O ano de 2022 está quase acabando, o governo do horror daquele que não deve ser nomeado está por um fio, mas o ano não vira sem a divulgação da terceira edição do prêmio Golden Cornetemmy Globe de melhores séries de 2022.

Este ano a disputa foi acirradíssima, voto a voto, com séries mudando de posição a cada mês, mas o júri do grupo Corneta Inc. nunca fica em cima do muro. E aqui está o top-15 do ano.

1- “Better Call Saul” (EUA — AMC/Netflix) — Se eu tivesse que resumir a sexta e última temporada da jornada de Saul Goodman em uma palavra seria IMPECÁVEL. “Better Call Saul” encerra as suas atividades alçado ao posto de terceira melhor série de todos os tempos, segundo o ranking da Corneta Inc., e merecidamente conquista o troféu máximo de melhor série de 2022.

2- “Ruptura” (Severance — EUA — 2022 — Apple TV) — Foi uma das coisas mais sensacionais que eu vi neste ano. É a série que tem a combinação da Crítica Social Foda em relação ao famigerado mercado de trabalho/capitalismo selvagem com o refrão de “A cera”, da banda Surto: “Um rosto lindo e um sorriso encantador/E um jeitinho de falar que me pirou, que me pirou o cabeção”.

3- “Pachinko” — (EUA, COR, CAN — Apple TV) — A relação predatória do Japão sobre a Coreia, o drama de imigrantes ao longo de quatro gerações, a busca por sobrevivência, prosperidade e o resgate de alguma identidade, “Pachinko” é brilhante e mereceu a disputadíssima medalha de bronze em um duelo que envolveu quatro candidatos.

4- “Euphoria” (EUA — HBO) — Ao invés de um texto, eu queria aqui colar aquele meme do Martin Scorsese com a frase “This is cinema” porque a segunda temporada é, como diria o atacante Bruno Henrique, “de oto patamar”. “Euphoria” só está aqui em quarto lugar porque o nível foi ali muito alto e o grupo Corneta Inc. precisava fazer um ranking.

5- “Casa do Dragão” (“House of the Dragon” — EUA — HBO) — Como foi maravilhoso voltar a Westeros, como foi covardia a HBO usar a mesma música tema de “Game of Thrones”. “Casa do Dragão” teve vários episódios icônicos já em sua primeira temporada e, em alguns aspectos, até superou momentos do livro “Fogo e Sangue”, no qual ela é baseada. Missão cumprida. Pode vir mais séries e temporadas que eu aceito.

6- “Andor” (EUA — Disney Plus) — Parafraseando “O Poderoso Chefão 3”, justamente quando pensávamos que Star Wars estava morto, a Disney nos dá uma série Star Wars quase perfeita. Depois das tristezas de Boba Fett e Obi-Wan, “Andor” foi o remédio para trazer de volta a esperança para a galáxia com uma trama política e atuações maravilhosas de Diego Luna e Stellan Skarsgard.

7- “O Urso” (“The Bear” — EUA — FX/Hulu) — Essa entrou na lista aos 45 do segundo tempo. Além de um monte de comida bonita, ela conquistou o seu lugar com o seu misto de pessoas caóticas, muito drama, desespero, dor e gente fodida tendo que lidar com o luto pela perda de uma pessoa muito importante enquanto administra um restaurante que vai de mal a pior. Ou seja, a série é a RECEITA (tum dum tsss) perfeita para dar certo na boca da intelectualidade.

8- “A cidade é nossa” (“We own this city” — EUA — HBO) — Aqui temos David Simon de volta à ribalta com mais uma minissérie sobre Baltimore, a corrupção da polícia e o Jon Bernthal perturbado como só ele sabe ser.

9- “Pacificador” (“Peacemaker” — EUA — HBO) — Se tivesse um prêmio para melhor abertura de série, “Pacificador” ganharia fácil. Mas ela não é só isso. A série do James Gunn é uma das melhores séries de super-heróis. Gunn fez com um único tiro o que a Marvel não alcançou em 756 lançamentos no ano. E não por acaso, a Marvel ficou de fora da lista final neste ano. “Pacificador” é anárquico, divertido, desbocado e com um protagonista carismático de quem o James Gunn conseguiu até tirar um fiapo de interpretação. A DC vive muito!

10- “Top Boy” (ING — Netflix) — A série inglesa sobre dois traficantes lucrando com o comércio de drogas em um conjunto habitacional de Londres ganhou o dinheiro da Netflix na quarta temporada, manteve a sua qualidade e ainda me deu um final de partir o coração.

11- “Sandman” — (ING, EUA — Netflix) — “Sandman”, “Wandinha”, “The Batman”… em 2022 ser gótico voltou a ser moda. Ainda bem que parou por aí e não saiu nenhum álbum do My Chemical Romance. Há limites. É uma vergonha que a Netflix tenha demorado tanto tempo para renovar esta série maravilhosa baseada nos quadrinhos de Neil Gaiman. A série é cara, mas três filmes do Adam Sandler bancariam facilmente a segunda temporada. Queremos muito mais Sandman nos próximos anos.

12- “Ozark” (EUA — Netflix) — Esta foi mais uma série que fechou com chave de ouro. Foram quatro temporadas em que eu nunca entendia de onde vinha e para onde ia todo o dinheiro porque afinal eu sou de Humanas. Contudo, a família Byrde fará falta. Uma das melhores séries da Netflix.

13- “Servant” (EUA — Apple TV) — Esta é uma série que só tem subido no meu conceito e esta terceira temporada foi o auge dela. E nada mais pode ser dito. Só que aparentemente e apesar de todo o seu esforço em provar o contrário, ainda há esperança para o Shyamalan.

14- “O senhor dos anéis: os anéis do poder” (“The Lord of the Rings: the rings of power” — EUA — Amazon) — Foi empolgante voltar para a Terra Média? Foi. Pode não ter sido perfeito, mas só o fato de a série ser bonita, da Galadriel ser muito maneira e ter um personagem tão foda quanto o Adar foi o suficiente para eu dar um voto de confiança por amor ao Tolkien na lista de 2022.

15- “The White Lotus” (EUA — HBO) — “These gays, they are trying to murder me” (ler com a voz da Tanya). Confesso que quando saiu a primeira temporada, eu assisti com certo desdenho e curti com moderação. Nesta segunda, fiquei completamente fã e já estou “whitelotuzado”. Ganhou o lugar final na minha lista de 2022.

Menções honrosas de 2022: “Entrevista com o vampiro” (AMC), “Tokyo Vice” (HBO), “The Offer” (Paramount), “The English” (BBC/Amazon) e “Mulher-Hulk” (Disney Plus).

E agora vamos ao prêmio “La Casa de Papel” de piores séries de 2022:

1- “La casa de papel: Coreia” (Money Heist: Korea — Joint Economic Area” — COR — Netflix) — Sim, amigos, é possível cometer o mesmo erro duas vezes. Eu sou a prova disso. Pior do que o original, só mesmo a cópia.

2- “The Umbrella Academy” (EUA, CAN — Netflix) — Meus olhos sangraram em cada minuto da terceira temporada, que atingiu escalas de ruindade poucas vezes vista na história da dramaturgia.

3- “Sem limites” (Sín limites — ESP — Amazon) — Isso tinha tudo para ser legal. Era para contar a história de como Fernão de Magalhães encontrou um caminho que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, mas ela é permeada de uma visão colonizadora e todo um heroísmo duro de engolir. Menos né.

4- “Céu Noturno” (“Night Sky” — EUA — Amazon) — Taí uma série que eu só senti o vazio, a insignificância e a sensação de estar perdendo um tempo precioso da minha vida em torno do nada.

5- “Cobra Kai” (EUA — Netflix) — Espremeram tanto e até oo bagaço o suco de “Cobra Kai” que ela saiu de duas primeiras temporadas muito boas e dignas para uma quinta temporada que vai se arrastando pelas raias da irrelevância. É uma pena, mas ultrapassaram os limites. Esperamos que a próxima recupere um pouco o fôlego e tenha um final minimamente digno.

Por hoje é só. Amanhã voltamos com os melhores filmes de 2022.

sábado, 8 de outubro de 2022

"Não se preocupe, querida": Algumas boas ideias e altos e baixos

Pugh faz a sua parte e Styles não acompanha
Atriz presente em uma série de projetos populares, Olivia Wilde vem, desde 2019, se arriscando no trabalho de diretora. “Fora de série” (“Booksmart”, no original), seu primeiro filme lançado há três anos, era uma típica comédia adolescente sobre uma passagem importante na vida de duas jovens: o período entre a formatura da escola e o início na universidade. No filme, as duas protagonistas tentam viver todas as emoções que não viveram até então enquanto refletem sobre os desafios daquela fase da vida.

Embora não seja exatamente um grande filme, “Fora de série” é despretensioso e divertido. E mostra um pouco das pretensões de Wilde como diretora. Contar histórias femininas, refletir sobre o que as mulheres pensam, mostrar um protagonismo feminino numa seara quase exclusivamente masculina neste gênero específico de filme.

“Não se preocupe, querida” (Don’t worry darling, no original), seu mais recente trabalho é um passo além nas suas ideias. A intenção permanece a mesma, mas aqui Wilde vai além nas suas reflexões no sentido de mostrar alguns perigos da vida adulta vividos pelas mulheres.

Para isso, Wilde traça uma alegoria. Uma sociedade distópica com ecos em “Matrix” (1999) onde tudo é estranhamente perfeito, simétrico e rotineiro. Wilde faz questão de pontuar muito fortemente a rotina a ponto de até entediar e/ou causar incômodo no espectador. Rotina esta que sofre pequenas rupturas. Algumas com mais estranhamento, como os ovos quebrados sem gema, outras que parecem mais comuns: uma carne queimada, um salto temporal, sonhos e ilusões.

A primeira hora de “Não se preocupe, querida” é tomada pelo incômodo e a ambientação plastificada e perfeita do tal projeto Vitória comandado por Frank (Chris Pine).Ali acompanhamos Jack (Harry Styles) e Alice (Florence Pugh), um casal completamente feliz, parecendo em eterna lua de mel, e sua vida burguesa e cercada de casais de amigos numa comunidade criada no deserto.

Tudo parece muito falso. Alice é a esposa perfeita de uma comunidade solar e parada nos anos 50 do século passado. Lava, passa e cozinha, devotada ao marido, cuida dele. Jack é um bem-sucedido engenheiro que trabalha num projeto secreto, sobre o qual não pode falar nem para a própria esposa.

Desde o início, naquela rotina de dona de casa eterna e repetitiva, tudo parece estranho. E Wilde vai bem em esconder o jogo ao mesmo tempo em que revela pequenas fraturas naquela sociedade perfeita. A mais grave, e que desperta o interesse de Alice, é o surto de Margaret (Kiki Layne).

A partir daí vamos descobrindo a verdade por trás desta comunidade utópica. Por outro lado, é exatamente no momento desta virada que o filme, ao mesmo tempo em que exibe algumas ideias interessantes para a história e para refletir sobre a violência e opressão masculina sobre a mulher, mostra-se apressado e despejando muitas coisas para processar a história. Era como se ele tivesse um ritmo e depois precisasse acelerar demais para acabar e concluir todas as pontas para não deixar nada solto.

É uma pena, pois a ideia por trás do filme era boa. Ainda que q sua realização tenha sido problemática, como as fofocas e disse me disse de bastidores do set. Não entrarei neste mérito. Mas se isso interferiu ou não no trabalho dos atores, o que vemos é apenas uma Florence Pugh que entrega algo minimamente aceitável. Ela e a própria Olivia Wilde no papel da melhor amiga de Alice, Bunny, são o que o filme tem de melhor.

Styles, por sua vez, é constrangedor como ator. Zero emoções, zero expressões para além do básico e sem conseguir acompanhar a versatilidade de Pugh, atriz competente que consegue tomar para si os holofotes nos filmes em que tem participado. Enquanto Pine parece um vilão barato de James Bond.

O mais interessante mesmo de “Não se preocupe, querida” é ver a evolução de Wilde como diretora. Ainda que seja possível questionar algumas de suas escolhas na tela, ainda penso que este filme é um avanço de alguém que está construindo a própria voz cinematográfica e amadurecendo a sua linguagem.

Nota 6.



segunda-feira, 29 de agosto de 2022

"Nope", o olhar e a espetacularização do horror

OJ e Emerald em busca da fama
Podemos gostar ou não de Jordan Peele, mas não tem um filme da sua ainda curta cinebiografia como diretor que não nos faça pensar e não nos tire da nossa zona de conforto particular. Em meio a um cinema comercial que é quase sempre pasteurizado, Peele é uma grife que usa o horror para refletir sobre a história e a sociedade. É assim com “Corra!” (“Get Out”, no original, de 2017) e sua parábola sobre o racismo, e também com “Nós” (“Us”, no original, de 2019), que também tem o racismo e a invisibilidade de povos como pano de fundo.

“Não! Não olhe!”, o péssimo título brasileiro para “Nope”, seu terceiro filme, também não deixa de falar sobre a história negra, mas seus temas também parecem ser outros. Aqui, Peele parece querer fazer uma reflexão sobre o próprio momento vivido pelo cinema comercial, o palco do blockbuster espetáculo, e também da sociedade e do jornalismo, onde a espetacularização do horror está na ordem do dia.

Em entrevistas, Peele disse que “Nope” surgiu de uma preocupação sua com relação ao futuro do cinema. Ele, portanto, queria criar um espetáculo, algo que as pessoas quisessem ir ver. E nada melhor do que criar uma tradicional história americana sobre alienígenas. Peele cita ainda que as influências de “Nope” estão em filmes como “King Kong” (1933), “O Mágico de Oz” (1939), “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), “Jurassic Park” (1993) e “Sinais” (2002). De fato, dá para dizer que há elementos de muitos destes filmes na história desenrolada pelo diretor.

Olhando de forma mais simplória, “Nope” poderia ainda se inserir num grupo de filmes como “Tubarão” (1975) ou “Alien” (1979), que consiste num grupo de pessoas tentando aniquilar um monstro assustador.

Contudo, diante deste olhar, “Nope” perde força. Porque ele não é um entretenimento tão interessante quanto todos os filmes citados acima. Sob esta perspectiva — pois já falaremos de outra — percebe-se pouco sobre as motivações dos personagens e não se faz qualquer relação da história principal com a trama paralela do show “Gordy”, que acaba em tragédia.

É quando vamos em busca das camadas que Peele gosta de introduzir em seus filmes que “Nope” ganha fôlego e se torna minimamente interessante. E aqui cabe uma reflexão sobre o olhar.

Cinema é muitas coisas, mas primordialmente é ver. Cinema envolve a questão do olhar porque, tal qual a pintura, surgiu como uma arte para deleite, num primeiro momento, dos olhos humanos. E sua magia inigualável vem do fato de, a cada filme, observarmos de forma quase voyeurística e escondido numa sala escura, a vida de dezenas de desconhecidos que passam em movimento na nossa frente através de uma tela. Algo muito mais rico para o espectador do que o estatismo da pintura.

Em “Nope”, Peele nos confronta com o fetiche do olhar. Olhar significa morrer. Porque é o olhar que atrai a criatura que nos devora. Por isso não devemos olhar para onde a criatura estranha do filme está. Todavia, a curiosidade é a necessidade de olhar são muito fortes e o diretor brinca com todo este sentimento. Por mais perigoso que seja, é muito forte o desejo de ver.

De certa forma, OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e sua irmã Emerald (Keke Palmer) são nossos representantes na tela. Aqueles que olham para o alto, mesmo sabendo que não devem, pois isso pode significar a sua morte. E a força e a agonia com que OJ e Emerald se esforçam no terceiro ato do filme para não olharem é muito humano e real, pois vivemos numa sociedade eminentemente voyeur.

É onde chegamos a um segundo ponto da reflexão que “Nope” nos traz. Se por um lado vivemos já há algumas décadas num mundo de um voyeurismo amplificado pelas redes sociais, afinal não nos interessa mais observar a intimidade dos famosos, mas também queremos invadir a intimidade dos comuns, por outro não nos satisfazemos mais com o comum. O ordinário, o comum, passam ao largo da ordem do dia. O que chama a atenção é o que se destaca. E o que mais se destaca é quando se vai ao extremo. É aqui que se chega na espetacularização do horror.

Tudo o que envolve as duas histórias paralelas do filme é esta ideia da espetacularização do horror. A motivação de OJ e Emerald com a criatura que paira sob a fazenda deles é registrar aquele fenômeno único para aparecerem no programa da famosa apresentadora Oprah Winfrey. É para isso que eles arriscam a vida, quando simplesmente poderiam ter ido embora daquele lugar decadente. Especialmente após a morte do pai deles de uma forma até então muito estranha no início do filme. Forma esta tratada como um acidente raro, mas não no âmbito do sobrenatural.

O monstro alienígena vira uma janela de oportunidade para OJ e Emerald resolverem seus problemas e, quem sabe, ganharem um novo fôlego no negócio da família e manterem a fazenda herdada do pai. Mal ou bem, eles querem traçar o caminho de Ricky (Steven Yeun), que ficou famoso na infância por participar de uma série de TV que acabou tragicamente com um chimpanzé matando dois atores em cena.

Na história do filme, aquele momento foi fartamente explorado pela mídia — tanto que Ricky cita que virou esquete no Saturday Night Live, famoso programa de humor americano — e pelo próprio Ricky, que, apesar do claro trauma que viveu com consequências até a sua vida adulta, o explorou para ganhar dinheiro e criar o seu próprio negócio, um parque de diversões com uma temática Western.

Ricky também sabe da existência da criatura alienígena na região e a usa a seu favor criando esquetes e merchandising em torno disso, bem como a promessa do espectador de experienciar aquele momento de terror com alguma segurança em sua arena em que oferece cavalos como alimento da criatura. No entanto, algo sempre pode dar errado quando testamos o limite de criaturas que não conhecemos. É algo que Ricky deveria ter aprendido com Gordy, mas prefere novamente esticar a corda diante do desconhecido.

Ricky, OJ e Emerald querem se apoderar do horror e faturar com ele. Assim como o diretor de cinema Antlers Holst (Michael Wincott), para quem vale tudo para conseguir filmar na Golden hour, e o jornalista do TMZ, que mesmo gravemente ferido, precisa tirar uma foto para publicar no seu site. Estes recados deixados por Peele na parte final do filme são muito interessantes ao mostrarem como alguns estão dispostos a ir além do limite por algo supostamente único em meio a um oceano de coisas mundanas.

“Nope”, porém, carece de uma conclusão para estes caminhos traçados por Peele. Há ali reflexões interessantes, mas ele não vai muito além do que estas ideias levantadas por Peele. Ou talvez nem houvesse grandes ideias. Talvez o diretor só quisesse construir mesmo um filme-espetáculo sobre um invasor alienígena e os humanos tentando sobreviver. Fica a sensação de que havia um potencial filme melhor em “Nope” do que o que chegou até nós. Neste ponto, os dois trabalhos anteriores de Peele são mais redondos.

Nota 6.



domingo, 5 de junho de 2022

“Top Gun: Maverick” é para os fãs, mas não se apega exclusivamente à nostalgia

Tom Cruise pilotou jatos para fazer o filme


Desde que o projeto de uma continuação de Top Gun começou a ser divulgado, parecia inegável que o objetivo era voltar para aquele universo dos chamados “melhores pilotos do mundo” como um exercício de nostalgia dentro da cada vez mais crescente indústria do cinema nostálgico. “Top Gun: Maverick” não nega tais expectativas. Mas o que faz o filme ser tão bom e talvez até superior ao original é que ele vai além disso.

Dentro da capa de obviedades e previsibilidades que o roteiro nos exibe e as inevitáveis belas e emocionantes imagens que o diretor Joseph Kosinski nos oferece, há uma história que é de fato interessante em torno de culpa, reconciliações, redenção e a tentativa de aprender com os erros do passado.

“Maverick” segue desde o início a trajetória do Capitão Pete “Maverick” Mitchell (Tom Cruise). Já há anos fora do chamado esquadrão Top Gun, de onde foi expulso uma vez que o personagem sempre teve problemas em lidar com autoridades e cumprir ordens, Maverick está trabalhando num projeto do governo em que faz o que sabe fazer melhor: esticar a corda do limite para conseguir resultados excelentes em tempo recorde.

Mas a pedido do velho rival/parceiro, o agora almirante Iceman (Val Kilmer, que com a saúde debilitada faz uma participação especial e recebe uma bonita homenagem no filme), Maverick é convocado para voltar aos Top Gun. O objetivo é fazer o capitão cujas insubordinações e desrespeitos nunca o fizeram ir além na hierarquia da Marinha, ensinar novos pilotos a enfrentarem uma missão suicida num país estrangeiro cujo nome nunca é revelado.

Esta é a história básica do filme. A partir daí, “Maverick” vai aproveitando os cenários para trazer reconfortantes momentos do passado e colocar o seu protagonista em conflito com os traumas de quando era um jovem piloto. O conflito a partir daí se dá com a presença de Rooster (Miles Teller), filho do seu velho parceiro Goose, e que não perdoa Maverick por ter atrasado a sua carreira na Marinha. A relação paternal, a tentativa de proteger Rooster e a busca por reavaliar os erros cometidos no passado e buscar finalmente um caminho para a sua vida que parece ter parado no tempo nas últimas décadas estão no entorno da trajetória de Maverick.

Ao mesmo tempo, cabe ao capitão mostrar que, embora os pilotos de caça sejam uma espécie em extinção numa era de guerra de drones, o ser humano ainda é relevante e, mesmo com sua impetuosidade e desrespeito por hierarquias, ele ainda tem um lugar a ocupar e pode ser útil naquele momento.

“Maverick”, portanto, parece até ter mais camadas interessantes do que um mero filme de ação. Contudo, é claro que o que mais pega no fã do “Top Gun” original são as referências e o conforto nostálgico do que o filme traz da década de 80. “Maverick” teve o cuidado de trazer vários elementos do passado, como a trilha sonora original representada pelo “Top Gun Anthem”, música instrumental de piano e guitarra composta por Harold Faltermeyer e Steve Stevens, e por “Danger Zone”, de Kenny Loggins, que abre o filme para pegar o fã antigo logo de jeito. Só não está presente a balada de sucesso “Take my breath away”, visto que aquele era o tema do par romântico vivido por Cruise e Kelly McGills, que não volta para o filme atual. Novo interesse romântico de Cruise, Penny (Jennifer Connelly) — chamada no primeiro filme de “a filha do almirante” com quem Maverick teve um caso no passado — tem seu romance embalado pela canção original de Lady Gaga, “Hold my hand”.

O filme também procura traçar seus paralelos com o passado. Por isso Rooster é tão parecido com o pai, ao ponto de também tocar no piano do bar como Goose após uma manjada cena de pilotos num papo daqueles de quem está medindo quem tem o pau maior. Um clássico de filmes do gênero.

Além da cena do bar, há uma repetição de elementos do filme original. Entre eles, Tom Cruise andando de moto com o avião levantando voo ao seu lado, usando a jaqueta e o óculos escuro tradicional, a famosa cena na praia com corpos suados apenas substituindo o vôlei por futebol americano, e as belas imagens de jatos e cenários na golden hour, um clássico do filme original de Tony Scott. Todos estes elementos nostálgicos reconfortam o coração do fã antigo, claramente pego pela emoção, ainda que o filme traga também outros elementos.

Entre a história e a nostalgia, “Maverick” ainda traz insanas sequências de ação, que são ainda mais impressionantes quando se tem noção que Tom Cruise e os demais atores realmente se filmaram voando em jatos da Marinha americana. É claro que a edição e a trilha sonora tornam tudo ainda mais perigoso, mas não deixa de ser impressionante o nível de risco a que Cruise se impõe para dar um grau a mais de veracidade ao filme. Realmente desde o treinamento e até a missão real do final são cenas de tirar o fôlego e que valem ser vistas numa tela grande como a do cinema.

Assim, “Maverick” cumpre a sua função de entreter o espectador e reconfortar o coração do fã que talvez nem soubesse que desejava voltar para aquele universo. Pode não ser um filme perfeito, mas é um filme de ação blockbuster como raramente temos visto nos últimos anos, uma vez que o cinema tem estado inundado de filmes de super-heróis e franquias em geral.

Nota 8.

segunda-feira, 21 de março de 2022

O duelo entre fé e ciência em "Raised by wolves"

Mother se preparando para atacar
Dentre as séries que se passam em futuros pós-apocalípticos, “Raised by wolves” talvez esteja entre as mais irregulares, mas, paradoxalmente, interessantes.

Terminada a segunda temporada, tenho sentimentos distintos sobre esta obra criada por Aaron Guzikowski e que teve dois episódios dirigidos por Ridley Scott na primeira temporada.

A série se passa num futuro muito distante. A Terra foi destruída por conflitos religiosos, mas parte dos humanos viaja para colonizar outro planeta distante. No inóspito Kepler-22b, dois andróides batizados de Mother (Amanda Collin) e Father (Abubakar Salim) precisam criar seis crianças em meio as disputas entre forças ateístas e crentes num Deus Sol liderados por Marcus (Travis Fimmel).

A primeira temporada é mais marcada por episódios bonitos do ponto de vista de fotografia e direção do que propriamente por sua história. Também pesa contra o fato de os trabalhos das crianças não me convencerem. Por outro lado gosto e acho intrigantes os personagens Mother e Father.

“Raised by wolves” é mais forte quando investe na dualidade fé x ciência. Sim, é um tema batido, mas essa dicotomia não deixa de ser interessante de acompanhar. Todos os jogos de poder, convencimento, filosofia passam por aí. Por outro lado, ela enfraquece quando busca a narrativa do escolhido a partir do jovem Campion (Winta McGrath), talvez um nome propositalmente escolhido por se assemelhar a “champion”, ou o número 1 de qualquer disputa.

A segunda temporada recentemente terminada na HBO MAX começou sem a mesma qualidade estética da primeira e com alguns episódios bem fracos. Mas foi notório o crescimento ao longo da mesma a ponto de surgirem episódios muito bons. Especialmente o quarto (“Control”) e o quinto (“King”). Tudo culminando num bom desfecho.

A presença de um novo androide, batizado de Avó (Selina Jones), com motivações diferentes e que quebram a dualidade da série, trouxe uma lufada de ar fresco a “Raised by Wolves”, com novos dramas e dilemas que vão gerar conflitos interessantes de acompanhar numa potencial terceira temporada. Tudo porque a Avó é uma apologista da felicidade a qualquer custo e está disposta a fazer de tudo para que a humanidade sobreviva. Ainda que seja através não do conhecimento, mas da ignorância. Ou mesmo da destruição de algumas, digamos “maçãs podres” para que seja mantido o equilíbrio e a sobrevivência da espécie.

No fim, pode-se dizer que “Raised by wolves” avançou satisfatoriamente na história. E o futuro promete trazer bons conflitos para o tabuleiro da fé x ciência em que a série se insere.

Nota 7.

domingo, 6 de março de 2022

"The Batman": Quando apenas a vingança não é o suficiente

O Batman de Pattinson em busca de um caminho
Depois de cinco anos e três filmes com uma versão “velha e cansada” mostrada nos filmes mais recentes interpretados por Ben Affleck, fez bem ao Batman retornar às origens de sua história. Versão imaginada pelo diretor Matt Reeves, “The Batman” é um dos filmes mais inspirados do Homem-Morcego. Uma versão pé no chão e calcada em temas da atualidade que não víamos desde “O cavaleiro das trevas” (2008).

Misto de trama de investigação, ação e thriller psicológico, “The Batman” tem todos os elementos para os que gostam da versão mais detetive do vigilante de Gotham. E personagens absolutamente cinzentos, com uma moral maleável em uma Gotham sinistra e tomada pela corrupção em todas as escalas do poder.

O filme de Reeves mostra um jovem Batman lutando e reconhecendo que vem falhando no combate ao crime. Numa Gotham estrangulada pela corrupção e violência em todos os níveis, Bruce Wayne (Robert Pattinson) está obcecado pelo seu alter ego. Movido pela vingança contra todos os criminosos como forma de buscar uma resposta pela morte dos seus pais na infância, Wayne passa tanto tempo como Batman que ele é mais conhecido por ser um bilionário recluso do que pelas ações filantrópicas que seu pai comandava.

Em dois anos, o Batman consegue construir uma reputação de terror e onipresença nas trevas suficiente para aterrorizar qualquer criminoso com poucos recursos, que desaparece apenas por ver o sinal do morcego no céu.

Mas nada disso é suficiente. O Batman de Pattinson é inexperiente, mal visto pela polícia e vem falhando em proteger uma cidade cada vez mais decadente e que está passando por um processo eleitoral para eleger o novo prefeito.

É neste cenário que surge um novo assassino em série pronto para “desmascarar” os podres de Gotham. Em sua nova versão, o Charada (Paul Dano, numa interpretação impecável) é um vilão que se acha um salvador em uma missão. Expor as mentiras de Gotham e aniquilar os protagonistas da decadência moral e corrupta da cidade. E para completar com sucesso o seu plano, o Charada precisa usar o Batman como parte de uma trama criada por seus jogos de palavras.

E assim temos uma dinâmica interessante entre herói e vilão, uma busca de gato e rato que envolve outros personagens relevantes da cidade e com o Batman descobrindo a teia de crimes e imoralidade que vai escalando até a sua própria família.

Aterrorizante e inspirada num criminoso real, o Zodíaco, esta é uma das melhores versões do Charada. Uma versão que funciona perfeitamente com o clima soturno com pitadas de noir e inspiração gótica que o filme de Reeves quer mostrar.

Se “Cavaleiro das Trevas” era um filme sobre terrorismo com o Coringa sendo o arquétipo do terrorista psicopata em uma década que muitos filmes refletiam sobre a guerra ao terror comandada pelos Estados Unidos, “The Batman” é um filme que obriga todos os seus personagens a olharem para as raízes do problema em aspecto macro (toda a cidade) e microscópico (em suas próprias vidas) para enxergarem que a corrupção tem bases muito sólidas e muito perto de todos nós. E a cidade só se encontra em profunda decadência por causa de todos os atores que são protagonistas dela.

E isso inclui o próprio Batman, que passa o filme inteiro afirmando ser a vingança. Ainda que tenha limites que não ultrapassa como, por exemplo, cometer um assassinato, ele ainda é um homem tomado pela sede de sangue, pois a morte de seus pais é ainda fresca em sua memória. O Batman de Pattinson em sua jornada precisa entender que ao mesmo tempo em que deve inspirar medo nos bandidos, precisa que o seu sinal, o sinal do morcego no céu enevoado e chuvoso de Gotham, seja o da esperança para o cidadão comum.

Ao seu redor, temos dois personagens importantes que, de certa forma, o ajudam a entender a necessidade de buscar um outro caminho. James Gordon (Jeffrey Wright), o bastião incorruptível da polícia de Gotham, e Selina Kyle (Zoe Kravitz), ela também em busca de uma vingança pessoal em uma Gotham em que as famílias criminosas, os Maroni e os Falcone, ainda se digladiam pelo poder. Ainda que os Maroni estejam em decadência e Carmine Falcone (John Turturro) seja a voz mais forte por trás das sombras do poder da cidade.

E quem expõe as chagas da cidade acaba por não ser o Batman. Aos olhos do Charada, o Batman é um grande enxugador de gelo que prende batedores de carteira, enquanto não ataca o verdadeiro problema: o poder da corrupção que se imiscui na alta sociedade. O poder que à luz do dia veste a capa da justiça diante da imprensa, mas ao anoitecer mergulha nos mais profundos pecados na boate comandada pelo Pinguim (Colin Farrell, irreconhecível e muito bem no papel).

São estas as feridas que o Charada expõe e, com o seu discurso de ódio e extremismo, consegue angariar seguidores por toda a cidade, ultrapassando ele mesmo os limites e tornando-se ele próprio um agente do caos e da…. vingança.

Por isso o Charada se vê como um espelho e um parceiro do Batman em sua luta. E o Batman se enfurece em negação diante desta possibilidade, pois, no fundo, sabe que está caminhando sob um terreno pantanoso em sua cruzada de vingança.

Selina, Gordon, Alfred (Andy Serkis), Pinguim, Charada, Falcone, Thomas e Martha Wayne… todos são peças de um quebra-cabeça que vão indicando os sinais aos quais o Batman e, consequentemente Bruce Wayne, precisa prestar atenção para refletir como ele de fato pode fazer a diferença em Gotham.

É fascinante o trabalho de Matt Reeves em construir um filme tão rico do Batman, ainda que não tenha sido nada inovador seja em roteiro ou linguagem. “The Batman”, porém, tem o mérito de beber nas fontes certas para criar uma história calcada no melhor do gênero de thriller policial para construir um filme de super-herói que se desvia do padrão mais colorido, cômico e com proporções grandiosas estabelecido nos últimos anos para trazer uma história pé no chão. Afinal, o que não faltam são vilões terríveis e de carne e osso para combater nas quadras das nossas próprias cidades.

Nota 9.



sábado, 5 de março de 2022

"A filha perdida" e as escolhas certeiras nas adaptações de Elena Ferrante

Olivia Colman pegando um bronze numa praia grega
Se tem algo que o fã de Elena Ferrante ainda não pode reclamar é de como a obra da escritora italiana é adaptada para os meios audiovisuais. A série “A amiga genial”, que já está na sua terceira temporada, é quase uma cópia da sua tetralogia napolitana e tem um nível de qualidade que remete ao neorrealismo italiano ao mesmo tempo em que mostra um trabalho de atores, diretores, roteiristas, direção de arte e fotografia quase impecáveis. 

Adaptação de um romance anterior da escritora, “A filha perdida” (“The Lost Daughter”, no original) também não deixa a dever à série. O filme dirigido por Maggie Gyllenhaal consegue captar bem a essência da história de uma mulher que enfrenta os traumas do passado enquanto passa férias numa praia durante o verão europeu. 

Primeiro longa dirigido por Gyllenhaal, que também assina o roteiro, “A filha perdida” é bem sucedido também porque suas atrizes que dividem o papel principal, Olivia Colman, que faz a Leda madura, e Jessie Buckley, a Leda jovem, dão um show de interpretação à parte. 

Colman como a mulher mais velha, com seus traumas e remorsos, usa das sutilezas do seu olhar e do minimalismo de sua interpretação para passar todas as hesitações, dúvidas, incertezas e até um certo ar misterioso para a Leda de 48 anos que se sente uma mãe ruim pelas escolhas que fez no passado ao mesmo tempo em que não superou alguns traumas vividos na juventude. 

A Leda de Colman é mais experiente e a melhor versão de si mesma em que alterna hesitações com uma sabedoria tão latente que te faz querer conviver mais com ela, ainda que ela seja econômica em revelar-se. 

Ao mesmo tempo, sua personagem tem um ar nostálgico de quem deseja reviver alguns dos momentos mais libertadores de sua vida, como nas passagens do filme com Lyle (Ed Harris), mas algo a trava. Seja ela mesma ou o ambiente que se revela aparentemente inóspito. 

Já a Leda de Buckley é a natural jovem impulsiva com ânsia de viver, mas travada por um casamento, duas filhas pequenas e todos os freios sociais possíveis e imagináveis. Uma mulher que vai se revelando brilhante no mundo acadêmico ao passo em que vai sendo devorada por uma vida desonestamente assoberbada. Até que chega o dia em que ela joga a toalha numa atitude que gera consequências para toda a vida da personagem. 

Buckley está brilhante no papel de Leda jovem e mereceu demais sua indicação ao Oscar. Ela soube transmitir as dores, as crises e as frustrações da personagem, mas também um grau de sedução que a mesma deseja ressaltar. 

O trabalho de Gyllenhaal na direção também é notável. A diretora soube nos trazer a intimidade, a hesitação das personagens e seus plenos fechados nos levam a sentir a intimidade dos personagens, as incertezas, as frustrações latentes. Tudo isso é muito enriquecedor em um filme que é bem bonito visualmente.

Talvez a única nota negativa de “A filha perdida” seja mais algo menor. Mas em comparação com “A amiga genial” a série ganha por ser falada em italiano e estrelada por atores locais. É claro que, como já disse, os trabalhos de Colman e Buckley são impecáveis. Por outro lado, acho que o filme perde força porque americanos e britânicos estão tão fora do seu habitat natural que soa estranho todos ali passando dias na praia num verão europeu. E isso é algo muito europeu. 

Isso acontece porque, embora os temas de Elena Ferrante sejam universais, sua ambientação tem uma cor marcantemente local. Suas histórias são muito italianas. Quiçá muito napolitanas. Então soa estranho uma penca de personagens falando em inglês e comportando-se como tais italianos, ainda que o filme deixe bem marcado que eles não o são a partir de escolhas naturais da adaptação. 

Não ajuda o fato de o filme se passar na Grécia ao invés da Itália da obra original. No livro, a família que contracena com Leda é a típica – talvez até a partir de uma ideia generalista de quem lê a obra - família italiana numerosa e barulhenta que americano nenhum reproduziria no contexto específico que Ferrante descreve. 

Houve um estranhamento natural pelas escolhas da adaptação. Ainda que o trabalho de Gyllenhaal seja muito bom. 

Mas os acertos de “A filha perdida” são enormes. Ferrante definitivamente sabe para quem distribuir as suas obras para que elas permaneçam quase imaculadas quando saiam dos seus livros para ganharem vida em outros meios. 

Nota 8,5 



sábado, 26 de fevereiro de 2022

“Belfast” é bem intencionado, mas falha em suas ideias

Pai e filho conversam em meio a tensão em Belfast

Eu tinha grande expectativa por “Belfast”, mas definitivamente elas não foram cumpridas. Escrito e dirigido por Kenneth Branagh, o filme é uma espécie de “Jojo Rabbit” do Oscar de 2022.

Extremante autobiográfico, visto que sua inspiração está na infância de Branagh, “Belfast” tenta se equilibrar entre o olhar lúdico a partir das experiências de Buddy (Jude Hill) e a vivência dramática dos conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte da virada dos anos 60 para os 70 do século passado.

O problema é que o filme não consegue atingir plenamente os seus objetivos em nenhuma das propostas que parece ter. Onde ele vai melhor é quando coloca a família de classe trabalhadora que está no centro de “Belfast” como o olhar do espectador por dentro do início daqueles conflitos político-religiosos.

Por outro lado, o aspecto político do filme é reduzido a flashes que podem ser pouco ou nada compreendidos pelo espectador comum que não tem o background de conhecimento ou familiaridade histórica/acadêmica/sanguínea com aqueles eventos. Aliado a isso, Branagh acrescenta discursos simplórios como a mensagem de tolerância entre pai (Jamie Dornan) e filho no fim do filme. A frivolidade de determinados trechos do roteiro de fato compromete a própria mensagem.

Ha uma outra discussão que o filme propõe sobre a dificuldade de decidir largar ou não as próprias raizes, que é centrado na indecisão da mãe de Buddy (Caitriona Balfe). Talvez esta seja a camada mais interessante entre as exploradas no caldeirão de ideias jogadas por Branagh que não se converteram num filme com coesão.

Resta ainda a pureza do filme nas relações construídas pela família que está no centro da história. E os melhores momentos são quando Buddy está convivendo e conversando com os avós vividos por Judi Dench e Ciarán Hinds e com o pai. São momentos que tornam o filme fofo. Mas toda a fauna no seu entorno parece um tanto asséptica e artificial.

Fica a sensação que por mais marcantes que tenham sido as lembranças da sua infância, Branagh não tinha necessariamente um grande filme nas mãos. “Belfast” não é exatamente ruim. Mas deixa a desejar em suas propostas políticas e estéticas.

Nota 7.

Indicações ao Oscar: Filme, roteiro, direção, ator coadjuvante (Ciarán Hinds), atriz coadjuvante (Judi Dench), som e canção original (“Down to Joy”)



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

"Macbeth": a mistura de Shakespeare e Expressionismo de Joel Coen

Denzel Washington e Frances McDormand
William Shakespeare é um autor ao qual volta e meia algum cineasta recorre quando sonha em filmar um texto clássico. Entre filmes mais antigos, as diversas adaptações de Kenneth Branagh e versões mais ou menos fiéis ao texto do bardo inglês, mais de 500 adaptações de suas peças já foram feitas no cinema. Fica, portanto, difícil imaginar que em pleno 2022 alguém possa trazer algo de novo ou que se desvie um pouco do que já foi feito.

Joel Coen, porém, não se intimidou com isso para criar a sua versão para “Macbeth”. E pode-se dizer que o diretor, pela primeira vez sem a companhia do irmão Ethan, trouxe um interessante olhar para esta que é uma das tragédias mais encenadas de Shakespeare.

“The tragedy of Macbeth” é visualmente exuberante. Filmado todo em preto e branco e em cenários construídos, o filme tem uma linda fotografia e uma estética inspirada no Expressionismo alemão que combinou muito bem com o texto de Shakespeare.

Ao contrário da versão mais recente “Macbeth: Ambição e Guerra” (2015), de Justin Kurzel, “The tragedy of Macbeth” valoriza mais o texto de Shakespeare, que pode ser visto como algo rebuscado ou exagerado para ouvidos contemporâneos, mas por trás de um inglês que por vezes soa arcaico há toda a universalidade dia temas tratados pelo escritor. Texto este que Coen dá ainda mais força pelas escolhas e cortes que dá para que a trama caiba em 1h45min.

E neste ponto Denzel Washington tem todo o espaço para fazer do seu Macbeth o vetor do ritmo colérico que o filme tem. Nos momentos mais relevantes da trama, as frases de Shakespeare soam enfurecidas até culminarem com o ápice da tragédia.

E, neste ponto, quem também entendeu bem a proposta de Coen de combinar imagem e fúria foi Kahtryn Hunter. Suas três bruxas são perfeitamente assustadores e arautos do apocalipse vindouro.

Talvez o lado negativo de “The tragedy of Macbeth” seja a Lady Macbeth de Frances McDormand. Ela ficou um pouco reduzida dentro da trama que fala sobre uma profecia e a tomada de poder na Escócia. Na obra de Shakespeare ela é mais relevante dentro da espiral de poder e loucura na qual os Macbeth se enredam. Mas no filme de Coen sua trajetória ficou jogada num canto e dada menor importância.

Mas são visões. A casa versão cinematográfica, sempre se pode recorrer ao belo texto de Shakespeare para um novo ou diferente entendimento da história. O que se pode concluir é que “The tragedy of Macbeth” é uma obra poderosa e ao mesmo tempo respeitosa com o texto do dramaturgo. A despeito dos necessários cortes para caber no tamanho pretendido do filme, Coen mexeu muito pouco no texto original. Sua proposta era apenas ditar o tom de fúria e casar o texto com uma estética certeira e bela.

Nota 8,5.