segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Rock in Rio 2019 - terceiro dia

A jam session do Dave Matthews Band
Eu queria dedicar esta Corneta a Jon Bon Jovi, homem que tantos hits deu e tantos corações embalou nas últimas quatro décadas, mas cuja voz não resistiu e faleceu em algum ponto nos últimos anos. Rest in peace, voz de Jon. Você sempre será lembrada a cada aniversário dos primeiros álbuns do Bon Jovi.
Dito isto, vamos às impressões do terceiro dia do Rock in Rio.
Ivete Sangalo - Há limite para tudo nesta vida. O meu limite é Ivete Sangalo. Nem de graça. Next.
Iza & Alcione - O mais legal de festival é você conhecer artistas que nunca ouviu falar ou mesmo ver shows de artistas pelos quais talvez você nunca pagaria por um ingresso e acaba gostando da apresentação e virando fã. Ou o inverso. Você gostava, vê um show e passa a odiar (Ouviu, Red Hot Chili Peppers? Essa foi para vocês). Cheguei ao show da Iza sem qualquer expectativa é achei agradável. E ainda teve a Alcione, nosso meme nacional, chegando dizendo que tem que seduzir. Só faltou mesmo o Axl Rose. Ainda sonho com esse dueto entre os dois amigos.
Goo Goo Dolls - O dia em que eu criar o festival “One Hit Bands”, o Goo Goo Dolls será headliner de uma noite que também terá 4 Non Blondes e Chris Isaak. Antes que me perguntem, o Twisted Sister fechará a noite do metal deste festival. Porque a única coisa que as pessoas esperam desse sub-Bon Jovi é ouvir “Iris”, a música daquele filme com a Meg Ryan. É por causa dela que o povo ficou lá com cara de paisagem vendo o vocalista Johnny Rzeznik se esforçar no palco.
Embora não pareça, o Goo Goo Dolls tem mais de 30 anos de carreira. Só “Iris” já tem 21 anos. Neste mês, a banda lançou até um disco novo. Ninguém ouviu. Aliás, ninguém ouviu nada para além de “Iris”. Tanto que ao fim do show Rzeznik até disse: “Então, vocês conhecem essa? Vamos cantar juntos”. Coitado. Mas foi um show muito ruim. Sorry.
Jessie J - Lembro que em Lisboa Jessie J fez um show muito legal e eu tinha a maior expectativa para vê-la de novo. Foi um pouco frustrante. Não tanto por culpa dela, mas porque o som estava muito baixo. Pô, maior vacilo, Palco Sunset.
Dave Matthews Band - Um cara como eu que nunca passa roupa, usa tênis Adidas e vive no mundo do heavy metal não devia gostar desta banda. Afinal, o Dave Matthews Band é quase um ícone da galera coxinha que usa casaco amarrado na ombro e sapatênis. Mas como não amar a jam session (por si só uma expressão elitista) de Dave Matthews e o VIRTUOSISMO desta banda? Vou bater o pé (sem sapatênis) para afirmar que foi um dos melhores shows da primeira semana. Não que a concorrência fosse grande coisa.
Os músicos do Dave Matthews são excelentes. Pagaria por um show só deles? Não. Compraria um CD? Não. Mas poxa, para ouvir ali num bolo dentro do festival ou num consultório médico esperando para ser atendido está ótimo.
Bon Jovi - Como diria a letra de “Livin’ on a prayer”, “Once upon a time, not so long ago”, Jon Bon Jovi conseguia cantar suas músicas. Hoje ele precisa da ajuda de todos da banda para tentar não fazer feio.
Foi um pouco constrangedor e até triste acompanhar o show da banda. A gente viu o Bon Jovi no auge, e, de repente, vemos uma banda em franca decadência a olhos vistos. O David Coverdale está cantando melhor que o Jon, que chegou a níveis preocupantes na escala Sebastian Bach de perda de alcance vocal. Talvez só abaixo do Axl Rose. Enfim, o Medina vai ter que procurar outra opção para 2021 porque não dá mais para o Bon Jovi. Fiquem apenas com as músicas no Spotify.
E depois de 19 shows, terminamos a primeira semana. Vou dormir até quinta-feira e já volto. #CornetanoRockinRio

domingo, 29 de setembro de 2019

Rock in Rio 2019 - segundo dia

O Weezer fez um dos melhores shows do festsival
Segundo dia de Rock in Rio e precisamos falar sobre uma coisa importante no mundo do rock. Solo de bateria? Por que? Para que? Se você não é o Neil Peart, não precisa fazer solo de bateria. Ponto final. Ontem, primeiro dia em que o pretinho básico saiu do guarda-roupa das pessoas, tivemos que aturar dois solos no Whitesnake e no Foo Fighters. Amigos, solo de bateria é chato. Só é legal para quem toca bateria.
Também precisamos falar sobre a moda do momento. Artista que pede para apagar a luz para economizar a energia do Medina e manda o povo acender a lanterna do celular. Eles acham bonito. De fato fica bonito. Mas isso come bateria e na Cidade do Rock não tem lugar para a galera dar aquela carguinha e reforçar a bateria dos seus celulares que já vai em coisa de 9% lá pela a meia-noite.
Feitas estas ressalvas, vamos ao que interessa. O que é que só a Corneta viu?
Detonautas & Pavilhão 9 - Tico Santa Cruz chegou numa moto AMARELA emulando as entradas de Rob Halford com sua Harley Davidson nos shows do Judas Priest. Acho que a ideia do Detonautas tocar no fim do dia era dar um clima legal quando a banda cantasse aquela letra de quando o sol se pôr blá-blá-blá, mas o tempo chuvoso não colaborou e ainda não vimos sol na City of Rock.
O discurso do Tico foi legal falando sobre intolerância, Jesus Cristo, etc... mas ele acabou se atrapalhando num momento em que foi citado um presidente cujo nome não devemos dizer para não dar ibope. Aí depois ele se corrigiu, mas aí já era tarde. A gafe estava lá e vão usar isso eternamente contra ele.
O Detonautas nunca me empolgou muito, mas fez lá o seu show honesto. A coisa ficou boa mesmo é quando entrou o Pavilhão 9. Como não recordar aquele show épico de 2001 que um millenium do meu lado teve a audácia de dizer que foi num tempo em que ele não se recorda. Como pode alguém não ter ido ao Rock in Rio de 2001? Naquele festival tinha dia com 250 mil pessoas.
CPM 22 e Raimundos - Confessa que o seu primeiro pensamento ao ver estas duas bandas foi: “Mas eles ainda existem?”. Então, existem. O Rodolfo pode ter virado roqueiro de Cristo, mas o Raimundos segue aí firme com o Digão nos vocais. Depois da segunda vez vendo a nova versão do Raimundos já estou mais acostumado. E não tinha como dar errado juntar os sucessos das duas bandas para um show de uma hora no Palco Mundo. O problema é que algumas músicas dos Raimundos envelheceram mal. Como a galera consegue cantar “Me lambe”? Rola um desconforto, vai. Isso, porém, não foi um problema para um cara do meu lado que berrava mais que o Badauí e se contorcia como se estivesse com uma dor de barriga homérica. Espero que ele tenha melhorado. As bandas só não precisavam babar ovo do Medina o tempo todo.
Titãs convidam Ana Cañas, Edi Rock e Érika Martins - É incrível como a cada ano que passa o palco dos Titãs fica mais vazio. Eu fico imaginando a reunião da banda a cada vez que alguém sai. “Então, galera, o fulano resolveu deixar a banda e ir para novos desafios. Como a gente faz? Continua? Vocês estão a fim? Ah, vamos tentar meus um pouco. Eu topo”. E eles continuam. Meu sonho hoje, inclusive, é ver no Palco Sunset um Titãs convida ex-integrante dos Titãs. Tomara que isso aconteça antes de a banda virar uma dupla sertaneja, pois da formação clássica só restaram Sérgio Britto, Branco Mello e Tony Belotto.
Mas para mostrar para os ex que eles estavam bem, convidaram duas mulheres e um cara dos Racionais para exibirem no palco. Até que funcionou cada um à sua maneira. Mas quem causou mesmo foi a Ana Cañas e seu striptease à moda atitude roqueira.
Um show dos Titãs é igual em todo Rock in Rio. Tem “Flores”. “Comida”, “Polícia”, “O Pulso”, “Lugar Nenhum”, etc... Enfim, é comfort food. É como comer açúcar. Mas confesso que gostaria de ver mais músicas dos dois últimos álbuns da banda, que eu acho bem legais.
Tenacious D - Quando foi que chegamos ao ponto de ter Jack Black no palco mundo? Quem deixou isso acontecer? Eu não consigo olhar para o Tenacious D e não pensar que é uma espécie de Massacration americano. Me disseram que fica melhor se eu ver o filme. Bom, então fica para a próxima.
Whitesnake - O Whitesnake é uma lenda do rock. É de um tempo onde o peso de uma banda era medido pelo cumprimento dos cabelos. Nada é mais brega que o Whitesnake, o Wando britânico. Mas como não amar? Na verdade, hoje em dia a gente vai ao show do Whitesnake para cantar o amor e se emocionar com três músicas: “Love ain’t no stranger”, “Is This Love” e “Here I for again”. E, claro, quebrar tudo com “Burn”. Até porque, conforme o tempo passa, o voz de David COVER DELE (vocês sabem quem) parece gradativamente piorar. Mas é impossível não amar o Whitesnake e todas as suas presepadas. Os movimentos fálicos de Coverdale com o microfone, o jeito de cantar com a mão no coração, os gritinhos de “Are you ready?”, os guitarristas. O Whitesnake é maravilhoso. Que venha o próximo show da banda. Estamos aguardando ansiosamente. Até porque já se passaram 24 horas desde a última vez que cantamos juntos “Is This Love”, “Love ain’t no stranger” e “Here I hoje again”.
Weezer - Que show FODA. Eu passaria cinco horas ouvindo esses nerds tocarem as músicas deles e seus covers. Foi por shows como esse que a gente vê um monte de porcaria nos festivais. É a moeda de compensação. Rivers Cuomo disse que “O Brasil é foda”. Amigo, fodas são vocês. Voltem sempre porque foi um show TRANSCENDENTAL. Eu só não entendi porque o guitarrista Brian Bell estava vestido de Severus Snape.
Foo Fighters - Eu queria saber qual é o suquinho de limão que o Dave Grohl toma para manter a voz intacta após 2h de show. Porque ele berra O TEMPO TODO. Eu fiquei sem voz só porque estava conversando com uns amigos.
Grohl está sempre possuído e faz cada show do Foo Fighters como se fosse uma sessão de descarrego. Ele continua tergiversando e estendendo as músicas para o infinito e além. Mas foi menos do que no último show que vi da banda, quando parecia que eles queriam quebrar todos os recordes do Dream Theather de canções mais longas. E como tinha tempo para tocar foi obrigado a cortar quatro músicas em relação ao set list originalmente divulgado.
Mas também é preciso dizer que o show foi bem divertido e bem melhor do que o de 2015, no Maracanã. Hoje ele deve estar sem voz, mas pelo menos fez jus ao alto salário que ganhou para ser um headliner.
É isso. E vamos para o terceiro dia. #CornetanoRockinRio

sábado, 28 de setembro de 2019

Rock in Rio 2019 - primeiro dia

Mano Brown brilhou no primeiro dia
E lá se foi o primeiro dia de Rock in Rio! Em oito festivais, acho que foi um dos dias mais ecléticos e aleatórios que presenciei. Teve funk roots, teve pop, teve rap, teve um DJ e teve um cara com a camisa do Iron Maiden que deve ter errado o dia de aparecer lá na City of Rock.
Mas vamos agora aos comentários malemolentes deste primeiro dia. Lembrando que não trabalhamos com shows que começam antes do chá das 17h.
Alok - Em 37 anos eu nunca havia estado numa boate. Acho que o Alok entrou na minha vida para cumprir a função de me dar esta sensação. Claro que tem que ser muito ALOKO para repetir isso. Como vocês sabem, o Alok é um DJ. Logo, não tem muita coisa criativa ali. Desculpe, DJs. São colagens de sucessos de bandas como Cranberries, Bon Jovi, Pink Floyd, System of a Down, Red Hot Chili Peppers, Queen, e eu poderia estar até amanhã citando outras bandas. Tem também tunti-tunti eletrônico chato pra cacete, muita luz, uns foguinhos aqui e ali e muita lambaeróbica. Nem o “tira o pé do chão” e o “joga a mão pra cima” são originais, pois a Ivete faz isso há 75 Rock in Rios. Ah, teve um exercício de levantamento de celular também para malhar os braços. Alok também repetiu o tempo inteiro que ia fazer história, que era histórico etc... bom, a noção de história está um pouco complicada aí. Espero nunca mais passar por isso. Ou talvez seja necessário um ácido para entrar no clima.
Mano Brown e Bootsy Collins - Depois de uma hora de ALOKURA e batidão, entramos na máquina do tempo e voltamos algumas décadas para aquela combinação de soul, black music e passinhos cadenciados. E foi outro nível, amigo. Mano Brown deixou o lado Racionais de lado e baixou o Tim Maia para receber Bootsy Collins junto com a banda Boogie Naipe (que belo nome!). Mano, aliás, chegou trajando uma beca impecável. Todo de branco e um colar dourado que reluzia até o palco mundo. Durante o show teve espaço até para um brinde com uma água que passarinho não bebe. O clima era agradável e com MALEMOLÊNCIA, mas quando Bootsy Collins entrou ofuscou todo mundo. Afinal, ele trajava uma fantasia psicodélica dourada onde tudo brilhava. Até os dentes! Foi bonito. Ali o festival começou para valer.
Bebe Rexha - O show era da Bebe Rexha, mas quem brilhou mesmo foi o Gustavo. Quando ele entrou no palco não teve para ninguém. Dançou, cantou, disse que amava a menina americana e deve ter irritado bastante os seus inimigos. Bebe é uma cantora pop americana. Como tal, tem um séquito de adolescentes enlouquecidas por ela. E quando um grupo de sete delas na faixa de uns 12 anos passou por mim eu quase fiquei surdo. Nem em show de heavy metal meus tímpanos foram tão atacados. Mas Bebe é simpática. Foi lá, deu o seu recado, cantou suas músicas (por incrível que pareça eu até conhecia algumas), mas não precisava mentir que “I love you so much”. Fala sério. Acabou de nos conhecer. Momento Corneta é cultura: Bebe é de uma família de albaneses e macedônios. O pai, Flamur, nasceu na Macedônia, enquanto a mãe Bukurije, nasceu nos Estados Unidos, mas é descendente de albaneses. De nada.
Seal - Rapaz, eu acho o Seal um cara legal, simpático, um homem de classe. Gosto de algumas de suas canções. Mas esse foi o show em que eu bati recordes. Foi um dos shows que eu mais bocejei na vida. Parecia que eu não conseguiria chegar acordado até a música do Batman. Mas eu cheguei. O problema é que a música do Batman é lenta, e tinha uma chuva torrencial caindo (cadê o Cacique Cobra Coral que não vê isso?). Mas depois teve “Crazy” e no fim um David Bowie que é sempre ótimo. Só não precisavam ser deselegantes com o Seal e cortarem o som no fim da música. Muito feio, Rock in Rio!

Ellie Goulding - Quando Ellie Goulding começou a cantar eu pensei: minha cota de cantoras pop já se esgotou por hoje né. Mas eu fui lá dar uma conferida. Não estava fazendo nada mesmo e tinha parado de chover. Ao vivo ela até soa melhor do que nos discos, que são chatos DEMAIS. Mas eu não vou guardar nada de interessante deste show. E ainda colocaria o tributo a George Michael que rolou mais cedo na Rock District à frente dele no ranking do dia.
Drake - Então chegamos a GRANDE atração da noite. Até ontem, Drake para mim era:
1. Um meme
2. Produtor da excelente série “Euphoria”
3. O Jack Nicholson do Toronto Raptors.

Mas aí a gente descobre que ele canta, faz uns raps aí e tal. E que ele sofre de ansiedade. Porque ele parece querer chegar logo ao fim de tudo. Do set list de 27 canções, acho que o Drake deixou umas 22 pela metade. Por que ele não completa uma música? É o oposto do Dave Grohl, que estende até o infinito suas canções. Mas a galera pareceu ter curtido. Drake fez varias citações ao Brasil, disse que estava encantado pela plateia, o que o fez superar o medinho da chuva, e que era o maior show da vida dele. O que pareceu papo da macho que diz isso para todas: “Eu nunca conheci ninguém como você” (até a próxima da semana que vem). Drake também é um macho escroto porque não autorizou que o fotografassem. Até a tirolesa ele cortou! Que feio! A gente entende o David Coverdale vetar isso para não querer mostrar as rugas, mas logo você, Drake? No auge da forma e dos seus 32 anos?
Fato é que o cara deu seu recado. Foi um recado curtinho para um headliner, mas deu seu recado e deixou seu público de alma lavada. O corpo lavado ficou por conta de São Pedro, esse vacilão.
É isso! Amanhã tem mais com o capítulo 2 desta saga. E esperamos que seja sem chuva.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O cinema de resistência de Kleber Mendonça Filho

Domingas, um dos símbolos da resistência em "Bacurau"
É muito difícil escapar de uma leitura política contemporânea para “Bacurau” diante dos tempos difíceis em que o Brasil e lideranças importantes do mundo vivem. Em tempos em que a democracia é chacoalhada, a desesperança toma conta de corações e mentes e volta a imperar uma espécie de terraplanismo ético, estético, moral, filosófico e político, o cinema de Kleber Mendonça Filho grita para que a sociedade moderna, plural e multifacetada resista.

(ATENÇÃO PARA POTENCIAIS SPOILERS A PARTIR DAQUI)

Com três longas de ficção na carreira, Kleber, que em “Bacurau” divide o roteiro e a direção com Juliano Dornelles, sempre mostrou fazer esse cinema de resistência tendo o Nordeste e, em especial, a sua Pernambuco, como principal cenário de suas histórias. “O som ao redor” (2012) era sobre resistir a uma certa oligarquia e cultura dominantes, ao mesmo tempo em que uma espécie de milícia tomava conta de um bairro de classe média de Recife. Ali haviam todas as reflexões envolvendo a alta sociedade e a pobreza no entorno de um microcosmo num estilo de cinema que, por vezes, lembra o de Robert Altman. “Aquarius” (2016), por sua vez, era sobre uma resistência também ao poder de uma empreiteira e uma batida de pé da cultura e dos valores locais sobre a voracidade e a arrogância de quem comanda o mercado e tenta impor o poder econômico sobre indivíduos menos respaldadas por esse poder. 

É quando chegamos a “Bacurau” onde resistir é, acima de tudo, sobreviver. Ao contrário de seus trabalhos anteriores, Kleber, ambienta seu filme num futuro próximo distópico em uma cidade do interior do Nordeste, onde os habitantes vivem numa sociedade quase igualitária em que a comida é dada a quem precisa e as dificuldades com o fornecimento de água são dribladas pelo trabalho em conjunto. 

Em Bacurau, tudo funciona como uma engrenagem. Dos habitantes na entrada da cidade, passando pela médica vivida por Sônia Braga, os comerciantes, as prostitutas, e os habitantes e até os bandidos. Cada um tem a sua função para que a cidade não falhe. E a coesão dá um certo grau de fascínio a existência daquela cidade. Bacurau é um único organismo vivo. E como tal organismo, cada célula tem sua função e meios de defesa. 

Nada é por acaso nas cenas de “Bacurau”. Há uma explicação na placa próxima da cidade que diz “Se for, vá na paz”, que se percebe mais ao fim do filme e é complementada quando finalmente conhecemos o museu da cidade, frequentemente mostrado durante o filme e tão falado quando lá surgem os primeiros forasteiros. Entrar no museu é entender que Bacurau é essa resistência a quem tenta impor o seu domínio sobre a cidade. 

Resistência que está na marca de cada um dos seus habitantes, mas é principalmente refletida em Domingas (Sônia Braga) e Lunga (Silvero Pereira). A primeira é quase uma liderança intelectual da cidade junto com o professor Plínio (Wilson Rabelo). Os dois detém o conhecimento médico e histórico de Bacurau. O segundo é a força, a violência que, por vezes, é necessária para conter o avanço do inimigo. 

Inimigo este que na história é personificado por forasteiros americanos que surgem na cidade comandados por Michael (Udo Kier). E nesse choque entre os habitantes da cidade e os forasteiros, percebemos as sutilezas do discurso por trás de “Bacurau”. O avanço de uma máquina de dominação, o discurso extremista, os fins que justificam os meios, a violência sádica e desmedida. Tudo isso enquanto do outro lado há uma cidade que resiste e reafirma o seu modo de ser. 

Claro que está apenas é uma leitura possível de “Bacurau”. Uma tentativa de interpretação. Também podemos interpretar o filme como uma aventura distópica num futuro não muito distante onde cidades inteiras são transformadas em jogos de matar para ricos colecionadores de armas e "emoções". E podemos nos divertir de forma despretensiosa com essa narrativa com ecos no cinema de Quentin Tarantino. Mas é nos pequenos detalhes que “Bacurau” mostra sua grandeza. E quão grande e cheio de camadas interessantes este filme é. 

Cotação da Corneta: nota 9

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Um olhar para a intimidade de Almodóvar

Banderas como o alter-ego de Almodóvar
Pedro Almodóvar tem uma frase em que diz que “a sala de cinema é o refúgio dos assassinos e dos solitários”. É difícil ter certezas sobre alguém que não se conhece pessoalmente, mas o Almodóvar diretor é um pouco de ambos. Pelo menos figurativamente falando no caso da expressão "assassino".

“Dor e Glória” (Dolor y gloria, no original), seu novo filme é apenas uma reafirmação desta condição do cinema de Almodóvar. O diretor espanhol faz de boa parte da sua filmografia uma sessão de terapia em que tenta lidar com o passado, exorcizando seus fantasmas ao mesmo tempo em que exibe na tela a solidão de um alter-ego que, em contraste, vive numa casa que por si só parece cheia de vida e cores. As tão características cores do cinema de Almodóvar, que, como sempre, abusa dos tons vermelhos e das cores vibrantes tornando cada cenário numa obra de arte. 

E como Almodóvar precisava voltar a lidar com seus fantasmas. Depois da fraca comédia “Os Amantes passageiros” (2013) e de um “Julieta” que dividiu opiniões, o que se vê em “Dor e Glória” pode não ser um Almodóvar na forma exuberante de “Fale com Ela” (2002), “Má Educação” (2004) ou “Volver” (2006), mas é um Almodóvar que volta a discutir os temas que permeiam o seu cinema: as dores da alma, a relação com a mãe, a influência da educação religiosa, a homossexualidade e a descoberta da mesma, os amores que vêm e vão e as decepções e marcas que daí surgem e os desencontros da vida. O cinema de Almodóvar é sobre as pessoas, é sobre os conflitos da alma, sobre o que deve ser dito para o outro e as oportunidades que se perde por não falar e não se permitir sentir. É, portanto, uma investigação da alma humana e suas sutilezas conduzidas pela leveza da câmera em contraste com os temas complexos a que ele se propõe debater.

Em “Dor e Glória” o texto de Almodóvar é claro e direto. Aos 69 anos, ele busca reavaliar a relação com a mãe e quando expõe a dicotomia entre a homenagem e a exposição dela e das pessoas que o cercaram como fonte de inspiração para seus personagens. É curioso como no filme a mãe diz detestar a maneira como ela e as amigas do seu povoado são retratadas no cinema do personagem principal, enquanto ele afirma que cada linha, cada película é uma homenagem a quem o transformou em quem ele é.

Em entrevistas, Almodóvar disse que "Dor e Glória" é um filme que o representa mais intimamente, ainda que determinadas situações sofridas pelo seu protagonista, como o uso de drogas e as dores terríveis não sejam verdadeiras, mas apenas licença poética com fins dramatúrgicos.

"Não é a minha biografia, mas sim o filme que mais me representa intimamente", disse o diretor, garantindo não esta tão fisicamente mal quanto o protagonista e nunca ter usado drogas como o mesmo. 

Para viver este Almodóvar "piorado" temos um António Banderas que não víamos desde “A pele que hábito” (2011), uma de suas últimas grandes atuações, justamente num filme do cineasta espanhol. Na pele do também diretor e roteirista Salvador Mallo, Banderas retrata muito bem o alter-ego de Almodóvar. Envelhecido, cheio de dores físicas e da alma, com relações estremecidas ou perdidas por décadas com diferentes personagens que passaram pela sua vida e um iniciante problema com drogas, Banderas entrega uma de suas melhores atuações emulando a alma do diretor. O ator espanhol parece ter conseguido captar perfeitamente uma persona de Almodóvar com seus silêncios, olhares cansados e hesitação na fala.  

Ao mesmo tempo, Mallo quer se reerguer, voltar à ribalta do cinema. E a inspiração vem justamente do material farto que é a sua vida. E é o que Almodóvar faz. Usando os exemplos do que viveu, ele busca se conectar com seu público, que também vive angústias e desejos semelhantes. Afinal, viver, tal qual o título do seu filme, é uma experiência frequente de dor e glória. 

O filme ainda conta com a participação de Penélope Cruz, que ajuda a contar histórias de um Salvador jovem que também são as de um Almodóvar jovem. Ali vemos o que já nos acostumamos a ver em diferentes passagens de filmes do diretor. A infância economicamente difícil, o estudo no colégio de padres e a vida pela arte que o resgatou daqueles momentos de pobreza. 

Extremamente metalinguístico e cheio de acertos de contas com o passado, talvez “Dor e Glória” só peque por ser excessivamente e tão claramente autobiográfico, o que torna a experiência de ver o filme com uma sensação de déjà vu e sem um frescor de novidade que o acompanhe. É mais sessão de terapia do que cinema e tem um texto mais confessional e menos criativo em comparação com o que nos acostumamos a ver na filmografia do diretor. 

Mas isso é um ponto de vista absolutamente pessoal. E não faz com que a experiência do filme seja ruim. Longe disso. “Dor e Glória” tem o seu valor e tem um Antonio Banderas simplesmente imperdível. A assinatura de Almodóvar também é garantia de prazer para seus fãs, que não se sentirão decepcionados. Mas não acredito que seja um tipo de filme que geraria novos fãs para o diretor. 

No balanço final, “Dor e Glória” é como reencontrar um velho amigo de quem se admira pela delicadeza, inteligência, perspicácia e até imperfeições. E um Almodóvar imperfeito ainda é um Almodóvar acima da média. 


Cotação da Corneta: nota 7,5