domingo, 30 de junho de 2019

É preciso ser livre para criar

Nureyev, um artista que queria ser livre
Rudolf Nureyev era como um pássaro. E como todo pássaro, jamais poderia viver numa gaiola. Pelo menos essa parece ser a ideia central do filme “O corvo branco” (The White Crown, no original). Dirigido por Ralph Fiennes, o filme opta por abordar o momento que foi o turning point da vida daquele que é considerado um dos maiores bailarinos de todos os tempos: a viagem do balé Kirov - hoje chamado de Mariinsky - para uma turnê por Paris e Londres como uma forma de demonstrar a força da cultura soviética perante o ocidente. 

A viagem tinha um claro componente político, mas Nureyev nunca demonstrou interesse em tratar destas questões ou da Guerra Fria em pleno vigor naquele ano de 1961. “Eu quero ser livre”, afirma ao pé do ouvido da amiga Clara Saint (Adèle Exarchopoulos) no clímax do filme, quando Nureyev se vê preso por oficiais soviéticos no aeroporto de Paris e contempla a iminência de ser levado de volta para Moscou para ser mantido preso e impedido de dançar. 

O trabalho de Fiennnes, que faz um papel de coadjuvante como o professor e mentor de Nureyev, Pushkin, é bastante feliz em alguns pontos. Primeiro por optar por abordar uma trama central alternando-se com outra paralela. O filme acompanha a viagem a Paris do Kirov enquanto vemos flashes da infância e adolescência de Nureyev a partir do seu nascimento em um trem em plena transiberiana a caminho de Vladivostok. 

O passado dá contexto. O presente mostra este animal enjaulado ansiando por sair. Nureyev exclama por ser livre desde o primeiro segundo em Paris. Alterna a disciplina severa que todo bailarino precisa ter com a rebeldia e o inconformismo que só os grandes artistas ostentam. 

Diante de colegas franceses constrói pontes, enquanto o regime soviético quer controlar tudo. Tem sede de ver obras de arte, de conhecer mais e mais sobre a arte, pois para a sua dança um quadro, uma escultura, são fontes de inspiração. E aos poucos o corvo sente a necessidade de voar com a liberdade e a leveza que exibe nos palcos, encantando todos os que têm a chance de ver Nureyev ao vivo. 

É a partir da ideia deste animal com sede de conhecimento que precisa se libertar que “O corvo branco” se vende. Sequer é relatado como foi a vida de Nureyev após o pedido de asilo político. Ou mesmo é abordada a sua morte em consequência de complicações causadas pela AIDS, doença que ele contraiu em 1984. Isso ficam para os livros de história. A força de Nureyev estava nos seus movimentos no palco e na sua irascível busca por liberdade e pela arte em vida. 

Talvez o filme peque por um excesso de cenas de um Nureyev contemplativo diante das obras e da arquitetura de Paris. Talvez, para alguns ele se encontra num formato mais do que batido de cinebiografias. Mas “O corvo branco” tem o seu valor ao nos oferecer um retrato de um artista único que é conduzido com competência pelo ator Oleg Ivenko. 

“O corvo branco” pode não ser fascinante como o bailarino Nureyev, mas como se comparar diante de alguém que ajudou a construir a história da sua arte? É uma missão difícil. Mas o trabalho de Fiennes é satisfatório. 

Cotação da Corneta: nota 7. 

segunda-feira, 10 de junho de 2019

X-Men em clima de fim de feira

Sophie até está ok no papel
É uma pena que uma das histórias mais importantes dos X-Men, a da Fênix Negra tenha acontecido num clima tão fim de feira para a saga que até o filme estrelado por Sophie Turner foi comandada pela Fox. É claro que quando o trailer de “Dark Phoenix” foi lançado, a maquiagem da Mística (Jennifer Lawrence) já evidenciava a falta de cuidado que o filme teria para entregar básico antes de os heróis mutantes entrarem em definitivo para o Universo Cinematográfico da Marvel com a compra da Fox pela Disney. 

A partir de agora caberá a Kevin Feige reintroduzir os mutantes nascidos com um gene X a mais no universo dos heróis Marvel. E já há boas ideias surgindo na internet envolvendo a Feiticeira Escarlate, além de outras pistas sobre um potencial multiverso causado pelo estalar de dedos de Thanos. Fato é que os X-Men vão ganhar um reboot, que eu espero que recupere um pouco da aura dos dois primeiros filmes da saga. Aqueles tinham tudo o que era a essência dos X-Men: heróis que protegem a humanidade “que os teme e odeia”, o embate de ideias entre Charles Xavier e Magneto e o combate ao preconceito contra o que é diferente que sempre esteve na linguagem subliminar dos X-Men. 

Aqueles foram pontos altos da saga que, com “Dark Phoenix” atinge um fim melancólico. O filme de de Simon Kinberg, tem diálogos fracos e uma história preguiçosa que parte de uma suposta evolução da humanidade após anos de trabalho de Xavier e seus mutantes para serem amados até a volta à estaca zero com as atitudes tomadas por Jean Grey (Sophie Turner) ao ser consumida por um poder cósmico. 

É triste que heróis como Ciclope e Tempestade, tão importantes para o grupo, tenham sido interpretados por atores que não conseguiram dar o seu melhor para os personagens. Culpa, também dos diálogos ruins que perpassam todo “Dark Phoenix”. 

Para piorar temos uma vilã vivida por Jessica Chastain, cuja origem e nome sequer sabemos direito e cujas motivações são apenas a velha postura “quero destruir o mundo”. Por que? Não sabemos muito bem. O talento de Jessica foi completamente desperdiçado. 

Mas há pontos positivos em “Dark Phoenix”? Claro que sim. A começar pela trilha sonora brilhante de Hans Zimmer. Ele soube muito bem pontuar o filme e as transformações de Jean ao longo do percurso. A música principal é excelente e daquelas que marcam um personagem. 

Outro ponto positivo é a participação de Sophie Turner. Muito se falou que não há uma Jean Grey como Famke Janssen e que Sophie não seria capaz de assumir esse papel. Seu trabalho só prova que devíamos ser mais paciente e acompanhar o desenvolvimento que os atores dão aos personagens antes de fazer qualquer crítica. Fica a dica para os que gritaram tanto quando Robert Pattinson foi anunciado como novo Batman. 

É claro que por vezes Sophie lembrou muito Sansa Stark, sua personagem em “Game of Thrones”, mas era inevitável ter essa lembrança visto que a personagem ainda está muito viva na nossa memória. Assim como a série. Mas na medida do possível e do que o roteiro permitiu, Sophie soube impingir a sua marca para esta Jean Grey vivendo um conflito enorme com um poder que a consome e transforma até a sua personalidade. Se era relevante ou não inserir a história dos pais, eu não sei, mas não foi isso que fez “Dark Phoenix” ser abaixo do que poderia ser. 

E, se eu pudesse escolher, gostaria de ver a atriz dentro do UCM continuando a desempenhar o papel de Jean. Embora reconheça que a tendência da Marvel seja mudar todos os atores para um verdadeiro reboot. 

Um pouco abaixo de Sophie, eu também destacaria o trabalho de Michael Fassbender. Seu Magneto isolado, depois em busca de vingança e, por fim, querendo ajudar os heróis, trouxe os melhores momentos de ação do filme. Fassbender é outro que eu gostaria de ver um pouco mais de no papel. 

E a cena final dele começando a jogar xadrez com Xavier em Paris, que remete ao filme em que ambos jogam xadrez quando Magneto está na prisão é uma ótima citação. 

No balanço final, porém, “Dark Phoenix” ficou devendo muito. Mas, lamentavelmente para a produção, tornou-se um filme irrelevante assim que foi anunciada a compra da Fox pela Disney. E sua execução só fez o sentimento sobre isso piorar ainda mais. 

Fato é que os fãs de quadrinhos querem mais é saber como os mutantes vão entrar no Universo da Marvel. A “Dark Phoenix” restou o papel de ser apenas um passatempo enquanto o melhor (espera-se) está por vir.

Cotação da Corneta: nota 6.

domingo, 2 de junho de 2019

No cinema, Elton é maior que o Queen

Taron incorpora Elton John em um de seus shows
Sir Elton John está se despedindo dos palcos. A "Farewell Tour" vai até dezembro de 2020, com o último show previsto para Londres. Aos 72 anos, o cantor dono de dezenas de sucessos, quase todos compostos ao lado de Bernie Taupin, parceiro de mais de 50 anos de amizade, quer se dedicar mais aos filhos que adotou junto com o companheiro David Furnish. Com a proximidade do fim de uma carreira brilhante, torna-se quase inevitável as homenagens e os registros biográficos. Além de uma biografia, já se pode ver no cinema a versão de David Fletcher para a vida de Elton. E, por que não pensar nisso?, do próprio Elton John. 

“Rocketman” tem a cara do cantor inglês. É uma viagem lírica sobre uma jornada de dificuldades, dor, solidão, vícios, mas também da sua beleza artística de quem costuma-se chamar ou não de inigualável. E, goste-se ou não de Elton John, ele é inigualável. 

O filme tem muitos acertos. Por trás da já mais do que batida fórmula da jornada de um artista composta por infância-adolescência-sucesso-decadência-redenção, Fletcher trouxe um pouco de frescor ao adotar duas medidas que foram certeiras para que seu filme disse bem sucedido. 

A primeira está na aposta da um Elton John contando a sua história numa sessão de terapia. O filme começa justamente no seu momento mais dramático, quando Elton se interna para cuidar dos vícios em álcool e drogas. Mas só percebemos de fato isso mais para frente. 

A aposta na terapia acaba sendo como um acerto de contas de Elton com seu próprio passado. Não que o artista em sua vida real pareça ter qualquer ressentimento com isso. Se havia uma questão a resolver, a imagem que ele passa é a de paz hoje em dia. Mas ali, no fundo do poço, Elton tinha muito a resolver com os amigos que afastou, a sensação de solidão causada por um pai ausente que lhe negava o mais básico dos carinhos, e até com a mãe, cuja relação foi de altos e baixos, ainda que ela tivesse lhe dado apoio para a sua carreira. Era um apoio tímido, mas ela o incentivava. 

E nesse ponto a entrada triunfal de Taron Egerton vestido de diabo (fantasia perfeita para a ocasião), é o cartão de visitas do filme. Sua atuação é um parênteses que faço na argumentação para contar que Taron é o terceiro mérito do filme. Ele também é a prova de que para interpretar um artista não é preciso meramente copiar o mesmo. Taron não chega a ser fisicamente parecido com Elton. Mas soube incorporar o espírito do personagem aliado apenas ao detalhe dos dentes da frente separamos e do corte de cabelo. Ninguém nega que parecia o próprio Elton na tela. 

Mas faiávamos da sessão de terapia. Ali, Elton enfrenta seus fantasmas das três fases da vida. A infância em negação do pai, a juventude lutando para se firmar, a idade adulta lidando com o sucesso e os vícios. Cada fase um problema que vai se acumulando até chegar ao fundo do poço. Foi uma boa aposta de Fletcher. 

Outro ponto positivo de “Rocketman” está no uso das musicas. Em qualquer cinebiografia de um músico, as musicas naturalmente aparecem para contar a história daquele momento cronológico do artista. Os lançamentos, os sucessos etc... Em “Rocketman”, optou-se por usar uma linguagem de musical com números para uma série de sucessos de Elton que não guardam muita relação com as fases da vida do cantor. “Saturday Nights Alright”, por exemplo, é cantada num número da infância dele e ilustra também a passagem para a juventude, quando o cantor ainda não era uma estrela. 

Essa estratégia trouxe um ganho é um aproveitamento real das canções de Elton que vão para além da mera jukebox rolando na tela (ouviu, “Bohemian Rhapsody”?). As canções têm vida e ilustram passagens e sentimentos da vida de Elton John, trazendo um ganho para o filme. 

E elas não são meramente reproduzidas. Temos aqui outra vantagem do filme. Elas ganham novos arranjos e nova alma pela voz de Taron, que canta em todos os momentos do filme. 

Foi um desafio brutal ao qual ele se impôs e, acredito, teve sucesso em sua empreitada. Taron dá personalidade ao filme ao encarnar todas as fases de Elton, suas inúmeras vestimentas espalhafatosas e seus excêntricos óculos coloridos, duas de suas marcas registradas do ponto de vista estético. 

Principalmente dado ao fato de ter sido feito recentemente e por sua premiação injusta no Oscar, é inevitável comparar “Rocketman” com “Bohemian Rhapsody”. Ainda mais porque Fletcher assumiu as duas semanas finais de filmagem do filme sobre o Queen que até então era comandado por Bryan Singer. O problema é que não há sequer modelo de comparação dentro ou fora da tela. 

Dentro da tela, “Rocketman” é muito superior em todos os aspectos. Da montagem à interpretação dos atores. Do roteiro à escolha de como contar a história. Fora dela, claramente a postura de Elton John sobre o filme que contaria a sua vida foi muito mais liberal e honesta que a de Bryan May e os demais integrantes do Queen. Elton queria mostrar a vida dele como foi. É isso inclui as doses cavalares de drogas, álcool e sexo as quais ele nunca negou que tomou.  Já o Queen tolheu e manipulou a história de Freddie Mercury para contar uma narrativa doce e chapa branca na tela. 

Ao ver “Rocketman”, o que fica, na verdade, é a sensação de como “Bohemian Rhapsody” poderia ter sido muito melhor e mais honesto com a história de outro grande artista que foi Freddie Mercury. 

Para os fãs de Elton John e até os que não são tão fãs da sua música, “Rocketman” é uma boa viagem sobre a complexidade e a rica visão artística de um cantor como Elton, exímio pianista, compositor de sucessos que ficaram para a história é que certamente deixará um legado quando as luzes do seu último show se apagarem. 

Cotação da Corneta: nota 7,5