Entre o ano de 2019 e o início deste ano, dediquei o pouco tempo
que eu tive livre basicamente a duas escritoras. Duas autoras de realidades e
estilos de escrita completamente diferentes, mas que me trouxeram uma riqueza
literária e de conhecimento enormes. Uma delas foi a Elena Ferrante, sobre quem
eu um dia talvez escreva de forma mais apropriada. A outra foi Svetlana
Alexievitch.
Jornalista bielorrussa, Svetlana
escreveu três livros que são praticamente um inventário da alma
soviética/russa. A gente aprende muito na escola sobre as guerras, a Revolução
Russa, o colapso da União Soviética e a Perestroika, mas é muito difícil captar
o que se passava de verdade com um povo tão diferente, de alfabeto, línguas e
lógica de pensamento tão complexas e distintas da realidade do mundo ocidental.
Entender é melhor do que julgar.
Conhecimento é melhor do que ignorância. Enquanto muitos se apressam a exaltar
que o comunismo é incrível ou o maior flagelo já construído pela humanidade
dependendo de uma frágil corrente política a qual se segue na ocasião, vale a
pena ouvir as vozes que viveram os martírios e os prazeres da União
Soviética durante todo o século XX.
Tudo, inclusive os problemas, passa
pela necessidade e o orgulho de ser uma nação grandiosa em escala planetária.
As consequências disso parecem ser uma alma coletiva fraturada de uma região
que em menos de 100 anos passou de um império czarista para um regime duro
comunista e viveu o colapso de sua grandiosidade com a Perestroika, a queda do
regime e a separação dos países que formavam o bloco soviético.
O resultado disso é um povo de alma
fraturada e sentimentos tão díspares que é muito difícil colocar as coisas em
caixinhas que dizem: isso é bom ou isso é ruim.
O russo que exalta a ascensão de
Stálin e a revolução, pois o comunismo trouxe, supostamente, a igualdade e o
fim das elites imperiais, é o mesmo que sofre com as rações diárias, a vida nas datchas, e com o komsomol. É o que sofre com a falta de recursos e vê os
dirigentes do partido viverem uma vida não igual ao dos czares, mas com
privilégios muito acima dos do povo.
O soldado que exalta o vigor e o
heroísmo russo na Segunda Guerra, é o mesmo que luta movido também pelo medo de
ser capturado e, por isso, ser automaticamente considerado um traidor. No
regime stalinista, ou você vence ou você não volta com vida. Se foi capitulado
pelo inimigo, automaticamente tornou-se um inimigo, pois antes disso devia ter
tirado a própria vida.
Medo e desconfiança sempre rondam a
população. O soldado que chegou a Berlim como um herói, não volta para casa,
mas para um campo de concentração simplesmente porque viu a vida e a “riqueza”
alemã, diferente dos prédios feios e da falta de diversidade de alimentos
soviéticos. Para o regime, este conhecimento não pode ser espalhado. É
assustador ver que muitos heróis de guerra não viram o pesadelo acabar com a
rendição alemã, mas o estenderam em campos de concentração.
Para não falar na visão menos
romântica e heroica das mulheres que lutaram no front. Sob o olhar delas, a
guerra é muito mais real, dura, com gosto de sangue e suja de lama. É sem
heroísmo e de muita dor.
Fora isso, nas décadas seguintes,
houve sempre o medo e a desconfiança de ser denunciado e mandado a cadeia por
uma frase mal interpretado ou um pensamento diferente do oficial. Todo vizinho
é um potencial delator e só há uma frágil segurança nas conversas na
cozinha, o espaço mais importante das casas, onde os debates são feitos.
Mas ao mesmo tempo há um genuíno
orgulho pelo comunismo, por uma forma de viver que desafia política e culturalmente
o modus operandi americano e ocidental. Orgulho que dá lugar ao ódio quando chega a
Perestroika de Gorbatchev. Ali havia uma parte dos russos que queria ser livre, mas depois de décadas
sob o domínio de diferentes tipos de czares, pois o comunismo soviético não deixou de ser
um czarismo com outra roupagem dada a necessidade de uma figura e uma
liderança tão forte, e com a população controlada em tudo, a população se viu
despreparada para a jornada de consumo e competitividade voraz do capitalismo.
Surge a pobreza, a desigualdade e com
ela a nostalgia dos tempos comunistas em uma sociedade dividida. Todo povo é
sempre dividido nos seus pontos de vista.
Se Dostoiévski me ensinou a entender
a Rússia dos czares, Svetlana me ajudou a compreender melhor a complexa
diversidade de sentimentos que acompanha o indivíduo soviético do século XX,
que eu imagino que gere consequências até hoje. Afinal, o que é Vladimir Putin
se não um homem com postura de czar que fez sua carreira na temida KGB durante
o regime soviético e se perpetua no poder como um Stálin. Fazendo o que bem
entende e sendo acusado de diversas violações à democracia.
Esse indivíduo soviético/russo é fraturado por uma
série de regimes que exaltam a grandeza e a glória de uma nação e, ao mesmo
tempo, tem um pavor de ser internacionalmente humilhado.
“Vozes de Tchernóbil”, “A guerra não
tem rosto de mulher” e “O fim do homem sovietico”, bem como as séries
“Chernobyl”, da HBO, é “Os últimos czares”, da Netflix, representaram uma
jornada interessante para compreender um pouco melhor tudo isso.
Principalmente, no caso de Svetlana, porque vem de alguém que viveu de perto
essa história e colhe seus depoimentos sem um lead e um julgamento
pré-estabelecidos. As conclusões ou não ficam para quem a lê.
Definitivamente, anseio
pelo novo livro traduzido da escritora, "Rapazes de Zinco", que será lançado neste ano e falará sobre a
incursão soviética no Afeganistão. Será mais um momento para continuar
estudando esse povo fascinante e intrigante.