terça-feira, 10 de março de 2020

Svetlana e seu inventário da alma soviética

Entre o ano de 2019 e o início deste ano, dediquei o pouco tempo que eu tive livre basicamente a duas escritoras. Duas autoras de realidades e estilos de escrita completamente diferentes, mas que me trouxeram uma riqueza literária e de conhecimento enormes. Uma delas foi a Elena Ferrante, sobre quem eu um dia talvez escreva de forma mais apropriada. A outra foi Svetlana Alexievitch. 

Jornalista bielorrussa, Svetlana escreveu três livros que são praticamente um inventário da alma soviética/russa. A gente aprende muito na escola sobre as guerras, a Revolução Russa, o colapso da União Soviética e a Perestroika, mas é muito difícil captar o que se passava de verdade com um povo tão diferente, de alfabeto, línguas e lógica de pensamento tão complexas e distintas da realidade do mundo ocidental. 

Entender é melhor do que julgar. Conhecimento é melhor do que ignorância. Enquanto muitos se apressam a exaltar que o comunismo é incrível ou o maior flagelo já construído pela humanidade dependendo de uma frágil corrente política a qual se segue na ocasião, vale a pena ouvir as vozes que viveram os martírios e os prazeres da União Soviética durante todo o século XX. 

Tudo, inclusive os problemas, passa pela necessidade e o orgulho de ser uma nação grandiosa em escala planetária. As consequências disso parecem ser uma alma coletiva fraturada de uma região que em menos de 100 anos passou de um império czarista para um regime duro comunista e viveu o colapso de sua grandiosidade com a Perestroika, a queda do regime e a separação dos países que formavam o bloco soviético.  

O resultado disso é um povo de alma fraturada e sentimentos tão díspares que é muito difícil colocar as coisas em caixinhas que dizem: isso é bom ou isso é ruim. 

O russo que exalta a ascensão de Stálin e a revolução, pois o comunismo trouxe, supostamente, a igualdade e o fim das elites imperiais, é o mesmo que sofre com as rações diárias, a vida nas datchas, e com o komsomol. É o que sofre com a falta de recursos e vê os dirigentes do partido viverem uma vida não igual ao dos czares, mas com privilégios muito acima dos do povo. 

O soldado que exalta o vigor e o heroísmo russo na Segunda Guerra, é o mesmo que luta movido também pelo medo de ser capturado e, por isso, ser automaticamente considerado um traidor. No regime stalinista, ou você vence ou você não volta com vida. Se foi capitulado pelo inimigo, automaticamente tornou-se um inimigo, pois antes disso devia ter tirado a própria vida. 

Medo e desconfiança sempre rondam a população. O soldado que chegou a Berlim como um herói, não volta para casa, mas para um campo de concentração simplesmente porque viu a vida e a “riqueza” alemã, diferente dos prédios feios e da falta de diversidade de alimentos soviéticos. Para o regime, este conhecimento não pode ser espalhado. É assustador ver que muitos heróis de guerra não viram o pesadelo acabar com a rendição alemã, mas o estenderam em campos de concentração. 

Para não falar na visão menos romântica e heroica das mulheres que lutaram no front. Sob o olhar delas, a guerra é muito mais real, dura, com gosto de sangue e suja de lama. É sem heroísmo e de muita dor. 

Fora isso, nas décadas seguintes, houve sempre o medo e a desconfiança de ser denunciado e mandado a cadeia por uma frase mal interpretado ou um pensamento diferente do oficial. Todo vizinho é um potencial delator e só há uma frágil segurança nas conversas na cozinha, o espaço mais importante das casas, onde os debates são feitos. 

Mas ao mesmo tempo há um genuíno orgulho pelo comunismo, por uma forma de viver que desafia política e culturalmente o modus operandi americano e ocidental. Orgulho que dá lugar ao ódio quando chega a Perestroika de Gorbatchev. Ali havia uma parte dos russos que queria ser livre, mas depois de décadas sob o domínio de diferentes tipos de czares, pois o comunismo soviético não deixou de ser um czarismo com outra roupagem dada a necessidade de uma figura e uma liderança tão forte, e com a população controlada em tudo, a população se viu despreparada para a jornada de consumo e competitividade voraz do capitalismo. 

Surge a pobreza, a desigualdade e com ela a nostalgia dos tempos comunistas em uma sociedade dividida. Todo povo é sempre dividido nos seus pontos de vista.

Se Dostoiévski me ensinou a entender a Rússia dos czares, Svetlana me ajudou a compreender melhor a complexa diversidade de sentimentos que acompanha o indivíduo soviético do século XX, que eu imagino que gere consequências até hoje. Afinal, o que é Vladimir Putin se não um homem com postura de czar que fez sua carreira na temida KGB durante o regime soviético e se perpetua no poder como um Stálin. Fazendo o que bem entende e sendo acusado de diversas violações à democracia. 

Esse indivíduo soviético/russo é fraturado por uma série de regimes que exaltam a grandeza e a glória de uma nação e, ao mesmo tempo, tem um pavor de ser internacionalmente humilhado. 

“Vozes de Tchernóbil”, “A guerra não tem rosto de mulher” e “O fim do homem sovietico”, bem como as séries “Chernobyl”, da HBO, é “Os últimos czares”, da Netflix, representaram uma jornada interessante para compreender um pouco melhor tudo isso. Principalmente, no caso de Svetlana, porque vem de alguém que viveu de perto essa história e colhe seus depoimentos sem um lead e um julgamento pré-estabelecidos. As conclusões ou não ficam para quem a lê. 

Definitivamente, anseio pelo novo livro traduzido da escritora, "Rapazes de Zinco", que será lançado neste ano e falará sobre a incursão soviética no Afeganistão. Será mais um momento para continuar estudando esse povo fascinante e intrigante. 

Assayas joga reflexões em filme que não se conecta

Mercado editorial e traições na mesa
O cinema de reflexão é quase uma instituição francesa. Se há um tipo de filme feito na França que eu aprendi a gostar é justamente o que tenta dar um recorte de uma realidade e refletir sobre ela. Mesmo que muitas vezes se torne um debate filosófico e burguês com adultos de classe média-alta bebendo vinhos e comendo queijos caros enquanto pensam sobre os destinos da humanidade, é interessante ver aqueles personagens que contracenam debatendo a partir das ideias desenvolvidas pelo diretor, que muitas vezes também é o roteirista destes filme. 

“Vidas duplas” é um pouco sobre isso. Mas ao mesmo tempo em que tenta criar uma história em que debate o choque entre tradição e modernidade na indústria literária, Olivier Assayas parece se perder e não criar uma conexão que traga rumos e, principalmente, um caminho para uma conclusão de sua história. Não que histórias em aberto não sejam boas. Pelo contrário. Elas são ótimas. Mas Assayas não deixa “Vidas Duplas” em aberto. Ele joga-a num limbo em que ao fim das duas horas de filme fica-se a conclusão de que se falou demais e não se foi para lugar nenhum. 

Nem os naturais pontos de conflito acusados pelos adultérios que acontecem na tela fazem o filme entrar numa erupção mínima para balançar as estruturas dos personagens. Tudo é muito passivo e sem que nos leve a algum lugar. 

No centro da história estão quatro personagens que, como o título do filme diz, vivem vidas duplas. Léonard (Vincent Macaigne) é um escritor popular que, no entanto, só consegue criar ficções a partir das histórias que de fato viveu. Ele é tão transparente nos seus textos que as pessoas se enxergam claramente nele. Ele é amante de Selena (Juliette Binoche), atriz de uma popular série de TV que está em crise com o seu papel. 

Selena é mulher de Alain (Guillaume Canet), editor de uma empresa conhecida por ter um excelente cartel de escritores, mas que está passando por uma reestruturação para se adequar aos novos tempos de leitores que compram e-books e audiolivros. Alain, por acaso, também tem uma amante, a funcionária responsável pelo departamento digital da editora. 

Léonard, por sua vez, é casado com Valérie (Nora Hamzawi), assessora de um político popular na França que está em campanha para se eleger para algum cargo que não é mencionado no filme. 

Orbitando a história dos quatro, há toda uma reflexão sobre a necessidade de se adaptar aos novos tempos e os rumos da literatura no século XXI, uma era de rápida digitalização em que pessoas leem livros pelo Iphone, blogueiros têm tanto poder de decisão e críticos veem seu prestígio decair. 

Enfim, existe todo um apanhando sobre as mudanças tecnológicas e reflexões acerca da indústria com cada um e outros personagens secundários opinando acerca do tema. 

Tudo parece interessante, mas isso não gera qualquer rumo para as histórias de cada um. Léonard continua tendo livros publicados, mas também passa a ter e-books. A editora de Alain não dá qualquer sinal de crise ou decadência. Pelo contrário. Se adapta bem à nova realidade e vira vanguarda mesmo com a troca de uma funcionária. 

E toda está trama não tem qualquer ligação com a trama paralela dos casos amorosos de Selena, Léonard e Alain. O que nos leva a refletir qual era o objetivo de Assayas ao unir os dois casos. Será que ele só queria falar sobre estas preocupações acerca da literatura e criou personagens que tivessem suas vidas sempre em choque para facilitar o debate? Não parece funcionar muito bem. E mesmo quando um adultério é revelado tudo fica surpreendentemente bem e sem sequelas emocionais. O que, convenhamos, por mais adultos que todos sejam, é inevitável que haja alguma quebra de confiança, choro, vontade de se vingar, enfim... falta "sangue" aos personagens. 

“Vidas duplas” é um filme morno. Suas ideias são sempre tratadas em paralelo aos acontecimentos vividos pelos personagens e nunca entram em choque ou se amalgamam. O que fica no fim é a sensação de que foi um bom papo regado a vinho, sexo e boa comida numa idílica primavera parisiense. 

Cotação da corneta: nota 6,5