quinta-feira, 16 de abril de 2020

Maratonar "The Wire" foi uma jornada fascinante

Os policiais que conduzem as escutas
Eu tenho uma amiga que sempre dá dicas certeiras sobre séries e ao mesmo tempo é necessariamente insistente e positivamente chata até que a gente finalmente as veja. E isso tudo contrasta com o meu ritmo lento para ver ou iniciar algo. Ela insistiu por mais de um ano para eu ver “Sopranos”. E quando eu finalmente vi, que jornada magnífica foi acompanhar a história de Tony Soprano. Terminado “Sopranos”, ela surgiu na minha frente tal qual os mentores dos heróis em suas jornadas e decretou: “Agora você tem que ver “The Wire”.
Eu estava em mais um limiar, mais um portal que eu precisava ultrapassar na minha jornada canônica das séries. Mas como eu disse no parágrafo anterior, meu processo é lento e gradual.
Mais de dois anos se passaram até que eu começasse a ver “The Wire”. Neste meio tempo, encontrei outro fanático pela série que insistiu. “Você tem que ver “The Wire”. E aquela minha amiga? Aquela lá de trás? Continuou insistindo tanto na esfera pública quanto na privada “Veja The Wire”!. Pareciam os mantras hipnóticos daquela antiga propaganda de chocolate “Cooooompre Batom…. Coooompre Batom…”

Pois bem. Forçado a ficar em casa de quarentena por conta de uma triste pandemia que, infelizmente, vai contando corpos pelo mundo todo, decidi finalmente maratonar “The Wire”. E foi a melhor decisão que eu tomei.
(E CUIDADO QUE A PARTIR DE AGORA AS ESCUTAS VÃO REVELAR DIVERSOS SPOILERS)
Escrevo estas linhas menos de 24 horas depois de ter visto o último episódio da série criada por David Simon e que foi originalmente ao ar pela HBO entre 2002 e 2008. Vi a conclusão de uma longa jornada de uma série de personagens em que o resultado foi tudo, menos feliz. Foi pragmático, político, foi o que deu para fazer dada uma série de situações ocorridas. Pessoas que não mereciam se deram bem. Pessoas com boas intenções se deram mal. E a vida seguiu no seu ritmo miserável dentro da dinâmica da sociedade.
O drama passado na cidade de Baltimore, principal centro urbano, financeiro e cultural do estado de Maryland, nos Estados Unidos é absolutamente excitante porque é sobre a vida. Na verdade, a cidade que no tempo da série tinha pouco mais de 650 mil habitantes é usada por Simon como um estudo do comportamento humano em comunidade a partir de um microcosmo. Estão ali, a corrupção policial, a manipulação dos números, todas as formas de ilegalidade, a corrupção e a manipulação na política, a insuficiência do estado, a falsidade, a burocracia que atravanca o avanço e traz desânimo, desespero e revolta. Estão ali todos os núcleos com seus vícios e problemas dissecados. Com suas vísceras expostas a céu aberto. E essa vida girando em ciclos enquanto uma meia dúzia de abnegados trabalha basicamente enxugando gelo numa cidade degradada.
Particularmente, “The Wire” é fascinante porque não é sobre um protagonista. Ou dois. Ou três. O protagonismo vai para a cidade de Baltimore, este organismo vivo que se move em meio a suas zonas decadentes, o crime organizado, as gangues, a alta taxa de criminalidade, a corrupção policial, os interesses políticos, a lavagem de dinheiro, o ensino decadente e o jornalismo em crise. Dentro deste organismo que parece tão caótico e desesperançado vamos acompanhando as histórias das pessoas que fazem parte da fauna de Baltimore.
McNulty, D´Angelo e Bunk no famoso sofá
“The Wire” teve cinco temporadas e um total de 60 episódios. Cada temporada funcionava como uma história fechada, mas dentro de uma perspectiva multilateral. Com isso, o protagonista de uma, passava a coadjuvante em outra ou mesmo tinha apenas uma pequena participação numa terceira temporada.
Cada temporada também era sobre um núcleo. A primeira, por se tratar de apresentar os personagens que vamos acompanhar até o fim, falava do cotidiano dos policiais de Baltimore, que enfrentam a burocracia e as próprias limitações financeiras do departamento, bem como o preconceito (e também medo) da chefia diante de uma nova forma de investigação, as tais escutas, para investigar um proeminente traficante de drogas denominado Avon Barksdale (Wood Harris).
Avon Barksdale, o grande gângster
Na segunda temporada, o foco central é o cotidiano dos estivadores. A trama segue acompanhando o tráfico de drogas, mas ruma para o porto de Baltimore, onde vemos o envolvimento de funcionários do local com contrabandistas gregos que mais a frente vão se revelar fornecedores das drogas que são vendidas nas ruas da cidade. Ao mesmo tempo, vemos a atividade econômica local enfrentando os desafios das transformações que o porto está sofrendo e os problemas enfrentados e também causados pelo sindicato.
A terceira temporada retorna ao núcleo policiais e traficantes, mas apresenta o aspecto político a partir da figura de um proeminente vereador Tommy Carcetti (Aidan Gillen), que começa a galgar as esferas do poder e terminará a série tornando-se governador de Maryland. Aqui vemos como a política interfere no trabalho policial para se beneficiar e atravancar o sistema.
Na quarta temporada, o tema são as escolas e como alunos e professores lidam com a presença do tráfico em suas vidas. Como são deixadas marcas profundas nos jovens. Muitos deles que acabarão trabalhando para os chefes do tráfico em Baltimore.
Na quinta, o centro das atenções passa a ser a redação do jornal The Baltimore Sun. Vemos o jornal lidando com a precariedade, a redução de quadros e acompanhamos histórias falsas sendo publicadas enquanto vemos a luta dos policiais para trabalhar com um orçamento precário, consequência de um problema nas escolas visto na temporada anterior.
A ideia de levar a trama para a redação na quinta temporada foi ótima, pois é numa redação de jornal que, em tese, todas as histórias circulam. Poderia ser uma forma de amarrar de vez a série que estava em sua última temporada, mas acabou que a redação se transformou num novo núcleo, também cheio de vícios e problemas. A conclusão da história, porém, seguiu a perspectiva multilateral idealizada para toda a série. E o desfecho não poderia ter sido melhor. De fato, se a redação do jornal se tornasse o centro de confluência da história, de certa forma “trairia” o espírito da série. As histórias em “The Wire” são interdependentes e cada temporada era como se David Simon nos apresentasse uma nova camada daquele universo compartilhado de Baltimore.
Freamon deu a dica: "Siga o dinheiro"
Vivendo dentro desta realidade, temos oito personagens que formam o núcleo ou circundam a divisão de Crimes Graves da polícia de Baltimore. Eles são os responsáveis pelas escutas e as investigações mais importantes do crime organizado da cidade. São eles que começam a entender que mais do que prender pequenos traficantes e “tenentes” do tráfico, era preciso seguir a máxima de Lester Freamon (Clarke Peters), um dos principais personagens da série, e “seguir o dinheiro”. E quando se segue o dinheiro, pode-se parar no Olimpo de uma organização cujos tentáculos vai do gueto de Baltimore aos altos escalões de Washington.
Os personagens que circundam as investigações são estes:
. Detetive James McNulty (Dominic West)
. Tenente Cedric Daniels (Lance Reddick)
. Detetive William “Bunk” Moreland (Wendell Pierce)
. A advogada do Ministério Público Rhonda Pearlman (Deidre Lovejoy)
. Detetive Shakima “Kima” Greggs (Sonja Sohn)
. Detetive Ellis Carver (Seth Gillam)
. Detetive Thomas “Herc Hauk (Domenick Lombardozzi)
. Detetive Lester Freamon
A partir destes oito personagens as histórias vão ganhando corpo. Não há nada em “The Wire” que não passe por eles e é a vida deles que acompanhamos mais de perto. As ascensões e quedas, as decisões certas e erradas, os dramas, o continuum da existência daquela cidade passa por eles.
Seus adversários mudam a cada temporada ou estão sempre orbitando o espectro da investigação. Os antagonistas desta história são:
. O chefe do tráfico Avon Barksdale
. Seu sócio Stringer Bell (Idris Elba)
. O chefe do tráfico Marlo Stanfield (Jamie Hector)
. Senador Clay Davies (Isiah Whitllock Jr.)
. Spiros Vondas (Paul Ben-Victor)
. The Greek (Bill Raymond)
Interagindo entre os dois núcleos há uma séries de guardiões do limiar, personagens que em algum momento circundam as histórias trazendo problemas, por vezes sendo inimigos, outras vezes tornando-se aliados momentâneos. São aqueles que vão controlar o ritmo da história na interação com o núcleo que a protagoniza ou com o núcleo que a antagoniza.
Este grupo é formado por personagens de diferentes camadas sociais. São eles:
. O informante da polícia e usuário de drogas Bubbles (Andre Royo)
. O justiceiro Omar Little (Michael K. Williams)
. O vereador Thomas Carcetti (Aidan Gillen)
. O major Howard “Bunny” Colvin (Robert Wisdow)
. O traficante D’Angelo Barksdale (Lawrence Gilliard Jr.)
. O presidente do sindicato dos estivadores Frank Sobotka (Chris Bauer)
. Seu sobrinho Nick Sobotka (Pablo Schreiber)
. O jornalista Scott Templeton (Thomas McCarthy)
. O traficante Preston “Bodie” Broadus (JD Williams)
. O estudante Namond Bryce (Julito McCullum)
. O comandante da polícia William Rawls (John Doman)
. O detetive Roland “Prez” Pryzbylewski (Jim True-Frost)
. O traficante Proposition Joe (Robert F. Chew)
. O assassino Chris Partlow (Gbenga Akinnagbe)
. O comandante Ervin Burrell (Frankie Faison)
. O prefeito Clarence Royce (Glynn Turmann)
. O major Valchek (Al Brown)
. O juiz Daniel Phelan (Peter Gerety)
. O jovem traficante Michael Lee (Tristan Wilds)
. O advogado Maurice Levy (Michael Kostroff)
. O sargento Jay Landsman (Delaney Williams)
. A vereadora Nerese Campbell (Marlyne Barrett)
Como podemos ver, temos um grupo de oito protagonistas e outro de seis antagonistas. Além de um grupo de 22 personagens que vão ditando o ritmo dos conflitos. Sem contar outros coadjuvantes que não foram citados aqui. A maioria destes 36 personagens esta entre os 40 personagens que aparecem em todas as temporadas da série. Deste grupo de 36 personagens, oito estiveram em todos os 60 episódios da série: McNulty, Rawls, Pearlman, Bunk, Daniels, Kima, Carver e Herc. Sem contar o Freamon, que aparece em 59 dos 60 episódios.
A riqueza de “The Wire” está na construção deste universo. Muitas produções. Muitas mesmo, do seu blockbuster favorito àquele escondido e empoeirado e raras vezes visto filme iraniano que você cita para se sentir superior aos demais, são baseadas numa fórmula tradicional da jornada do herói. Aquela mesma que vem da “Ilíada” e da “Odisseia”, de Homero, e foi teorizada no século XX pelo russo Vladimir Propp em “Morfologia do conto maravilhoso” (1928) e pelo professor de mitologia comparada Joseph Campbell em “O herói de mil faces”(1949). Também poderíamos incluir os arquétipos do psicanalista Carl Gustav Jung nesta brincadeira toda a partir de suas ideias em “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” (1933).
A história do Superman é assim. A do Capitão América também. E a de “Parasitas”, filme ganhador do Oscar deste ano, também. Desculpe por decepcionar quem achava que era diferente.
Se fosse possível fazer um levantamento em toda a história do cinema, eu diria que 95% dos filmes são feitos organicamente a partir do conceito de jornada do herói. Contudo, isso é um número meramente especulativo e sem base científica. Mas é isso que acontece. Alguém vai de um ponto A ao ponto B passando por uma série de provações e recebendo a “recompensa” no final. E tudo bem. Não significa não haja filmes fascinantes, brilhantes até, feitos desta forma. Há muitos. De todos os tipos, orçamentos e alcances. Além disso, a história da humanidade sempre foi construída a partir destes parâmetros. É o que Campbell fala quando comenta as mitologias que vão de Zeus ao Rei Arthur, passando por Jesus Cristo.
McNulty se sacrificou por sua causa
“The Wire”, contudo, é fascinante porque é diferente disso. Mas não há jornada do herói em “The Wire”? É claro que há. A história do detetive McNulty é a típica história do herói trágico. Ele é um Hamlet contemporâneo que passa pelas mais difíceis provações internas e externas e sacrifica-se ao fim da jornada.
Porém “The Wire” não é sobre McNulty. O personagem é apenas um vetor da história. “The Wire” é sobre Baltimore e sobre as misérias e degradações humanas a partir deste microcosmo. É uma reflexão a partir de causas e consequências de atitudes erradas ou corruptas tomadas num determinado ponto da vida e que acabam por se refletir na vida de toda a sociedade. Não há deus ex-machina em “The Wire”. Se você pegar uma determinada rua, pode realmente ser baleado e ter a sua vida abreviada. Se você embarreirar uma investigação, pode ver os tentáculos de um traficante chegarem até o governo da cidade. Se você não ajudar aquela criança, ela se transformará em tenente do tráfico no futuro. E todas estas ações passadas geram consequências futuras para todo o organismo da cidade. E cada indivíduo precisa lidar com as consequências das decisões tomadas por ele e por outros ao seu redor.
Omar morre estupidamente
Isso gera uma imprevisibilidade saudável à série. Stringer Bell é o grande vilão? Ele morre impiedosamente na terceira temporada. Avon Barksdale é o grande gangster perseguido pelos policiais? O maior alvo? Termina preso na terceira temporada e é quase esquecido nas temporadas posteriores, reduzindo a sua influência à chefia dos presos na cadeia. É quando surge Marlo Stanfield com a coroa de rei do tráfico. Uma coroa que durou pouco. Foi preso e deliberadamente aposentado para manter a sua liberdade. Omar é o nosso herói e justiceiro que vai fazer com os traficantes o que a polícia não pode? Acaba estupidamente morto por uma criança na quinta temporada, enquanto comprava cigarros.
Duquan, Wagstaff, Michael e Namond na escola
Por outro lado, personagens supostamente bons podem mudar de lado. E vice-versa. O exemplo mais cristalino está na polaridade entre os jovens Michael e Namond na quarta temporada. Quando ela começa, Michael parece um jovem longe da influência do tráfico, pois tem uma mãe viciada. Ele quer apenas cuidar do seu irmão para não vê-lo no mesmo ciclo do tráfico. Michael, inclusive, é o único do seu grupo de amigos a recusar o assédio de Marlo Stanfield. Namond, por outro lado, é um jovem problemático, filho do traficante Wee-Bey (Hassan Johnson), um dos braços direitos da dupla Avon-Stringer Bell. Ele é uma das ovelhas negras da escola, que não sabe o que fazer diante do seu comportamento violento e antissocial. E ainda tem ligações com o tráfico nas ruas.
Diante do que a série nos apresenta, parece que acompanharemos duas histórias opostas com finais conhecidos. Quão incrível é percebermos que Simon resolve inverter a polaridade desta dupla, jogando Michael nos colos do tráfico e Namond nos braços da redenção. E isso não tem volta. Pois cada passo que damos gera consequências quão mais graves eles são.
Michael tem outra função nesta história que é expor o círculo vicioso da vida em Baltimore. Seu destino final é virar um novo Omar, inclusive empunhando a mesma arma usada pelo anti-herói. Não mais um soldado do tráfico, mas jamais um mocinho, pois a sua vida já está manchada pelos caminhos tomados por ele anteriormente.
Bubbles tem a grande história de redenção
O círculo vicioso, ou a teoria do eterno retorno de “The Wire”, também aparece na relação Bubbles-Duquan (Jermanie Crawford). Eles nunca contracenam na série, mas são espelhos um do outro. São passado, presente e futuro desta história particular. Bubbles começa a série como um viciado em drogas que trabalha por esmolas dando informações para a polícia e passa os dias catando lixo nas ruas para vender. Ele vivencia uma série de provações, dificuldades e recaídas até finalmente conseguir a sua redenção conquistando novos espaços sociais dentro da casa da irmã e na vida em Baltimore, além do auto perdão pelos erros cometidos ao olhar a sua vida em perspectiva e através do olhar de um jornalista. Mas nunca soubemos qual é o seu passado. O que o levou a se tornar a figura miserável das três primeiras temporadas. Seu passado é espelhado em Duquan nas duas temporadas finais. Um jovem sem muitas oportunidades na escola, que sofre bullying dos colegas e tem uma vida financeiramente miserável. Um jovem que mostra algum talento quando lhe dão uma chance, mas não consegue dar continuidade aos estudos, não tem casa para morar, exibe uma bondade que não serve para o tráfico e acaba a série como um catador de lixo iniciando a sua vida como consumidor de drogas. Duquan é o passado de Bubbles e o alerta da série que, para cada ex-viciado surgem novos viciados, mostrando que algo nas políticas, no combate às drogas e ao vício e na recuperação social dos indivíduos precisam ser revistos para que não se repita o círculo do eterno retorno.
Outro exemplo de personagens cujas trajetórias se espelham são o tenente Daniels e o detetive Ellis Carver. Quando a série começa, Daniels é um homem de reputação ilibada, mas que cometeu um grave erro no passado. Erro este que é recorrentemente lembrado durante todas as cinco temporadas da série. Um erro que assombra Daniels a cada momento de tentativa de mudança e subida na escala de poder da polícia. E na série, Daniels passa por capitão, major e tem uma curta passagem no comando do departamento. Nunca sabemos em detalhes qual foi o crime cometido por Daniels, mas sabemos o suficiente para saber que é grave e pode acabar com a sua carreira no alto escalão se isso vier a ser revelado. Carver, por sua vez, é um jovem policial que vemos logo na primeira temporada cometer um grave crime, imoral dentro da polícia, que seria o suficiente para marcar de vez a sua carreira. Daniels, que então é o seu chefe direto, lida com o problema muito provavelmente da mesma forma que algum chefe lidou com ele no passado. Na temporada seguinte, Daniels dá uma segunda chance a um Carver que ainda se vê como culpado pelo erro cometido. Seu personagem cresce e, não por acaso, a última cena de Carver é com Daniels, em seu último ato na polícia, o empossando como tenente, justamente o cargo que Daniels ocupava no início da série. Carver tem um crescimento moral e vira o sucessor natural de um cansado Daniels, que, por sua vez, vai para a vida civil de advogado, onde acredita poder ser plenamente correto sem lidar com as diversas pressões políticas e burocráticas da vida pública.
O círculo desesperador do eterno retorno é algo que enriquece “The Wire”. Ele mostra que não importa quem está no comando da polícia ou da prefeitura, as taxas de criminalidade precisam ser manipuladas para favorecer A ou B. Os nomes mudam no comando da polícia (Burrell-Rawls-Daniels-Valchek) ou da prefeitura (Royce-Carcetti-Nerese, mas os números que precisam ser mostrados são aqueles que precisam ser mostrados de acordo com os interesses necessários. Não importa como eles são conseguidos. São também os malditos números que fazem a escola não optar pelo ensino dos seus alunos ou o Baltimore Sun fechar os olhos para o fato de ter publicado reportagens mentirosas do jornalista Scott Templeton. O que são mentiras perto da exibição de um Pulitzer por um jornal em decadência pelos cortes de pessoal e orçamento?
Em “The Wire”, personagens de reputação ilibada também podem tomar decisões erradas. E não serão salvos por isso. O maior exemplo está no brilhante detetive Freamon, que na única vez em que saiu dos trilhos da lei pagou por isso, sendo obrigado a abandonar a carreira. Mesmo destino, aliás, de McNulty.
Freamon e McNulty, aliás, são o retrato da apoteose trágica que é a quinta temporada. As decisões que tomam ao inventar um serial killer na cidade para conseguir recursos financeiros para uma polícia financeiramente em crise resolver seus casos é a mesma manipulação, mas em outra ordem e escala, feita pelas esferas superiores do poder. Eles representam o desespero e a raiva por serem manipulados há anos e nunca conseguirem recursos para investigar os grandes culpados pela situação degradante de Baltimore. No fim, são parcialmente bem sucedidos em sua empreitada, pois em “The Wire” não existe felicidade nem tristeza plena, apenas causas e consequências dos seus atos, e pagam por isso.
Narratologicamente, “The Wire” segue o conceito de jornada coletiva, que se baseia numa jornada de múltiplas personagens que, eventualmente, se reúnem no percurso de uma história para a resolução de um problema comum. De certa forma, David Simon já fazia há 18 anos na TV o que a Marvel vem construindo em maior escala financeira e de difusão no cinema. Claro que a Marvel usa de outros recursos e também tem a importante componente transmedia nesta história, mas, na essência do que é a jornada coletiva, Simon já estava fazendo isso lá atrás e, de certa forma, repete o mesmo modelo em “The Deuce”, série que foi ao ar entre 2017 e 2019 também na HBO.
Não é fácil fazer uma jornada coletiva. Para isso, é preciso criar um universo e uma gama de personagens muito mais ampla que verdadeiramente interaja nele. Foram destacados aqui 36 personagens, mas há ainda pelo menos mais cinco ou seis que de alguma forma entram na dinâmica coletiva da série e um sem número de personagens fazendo pontuais elos de ligação em momentos específicos dela. Um filme ou uma série normal faz-se com muito menos personagens.
O escritor e produtor transmedia Jeff Gomez diz que “as histórias de jornada do herói são sobre como o indivíduo se atualiza ao alcançar uma mudança pessoal”, enquanto “as histórias de jornada coletiva são sobre como as comunidades se atualizam em sua tentativa de alcançar uma mudança sistêmica” [1].
Em “The Wire”, esta tentativa de mudança muitas vezes é frustrada. Há pequenos avanços em meio a grandes retrocessos e o círculo de eterno retorno sempre presente enquanto, filosoficamente, a série abraça o amor fati nietzschiano, o amor ao destino, mesmo em seus aspectos mais cruéis e terríveis.
“The Wire” é uma jornada extremamente rica e niilista. Terminá-la trouxe a contraditória sensação de prazer e tristeza. E assim são as grandes séries.
PS: Minha amiga diz há algum tempo que eu ia gostar de ver “Gilmore Girls”. Desta vez, vou tentar não demorar muito para ver.
[1] Jeff Gomez, “The collective journey comes to television” (Fevereiro 2017): https://blog.collectivejourney.com/the-collective-journey-story-model-comes-to-television-151bb4011ce2