segunda-feira, 29 de agosto de 2022

"Nope", o olhar e a espetacularização do horror

OJ e Emerald em busca da fama
Podemos gostar ou não de Jordan Peele, mas não tem um filme da sua ainda curta cinebiografia como diretor que não nos faça pensar e não nos tire da nossa zona de conforto particular. Em meio a um cinema comercial que é quase sempre pasteurizado, Peele é uma grife que usa o horror para refletir sobre a história e a sociedade. É assim com “Corra!” (“Get Out”, no original, de 2017) e sua parábola sobre o racismo, e também com “Nós” (“Us”, no original, de 2019), que também tem o racismo e a invisibilidade de povos como pano de fundo.

“Não! Não olhe!”, o péssimo título brasileiro para “Nope”, seu terceiro filme, também não deixa de falar sobre a história negra, mas seus temas também parecem ser outros. Aqui, Peele parece querer fazer uma reflexão sobre o próprio momento vivido pelo cinema comercial, o palco do blockbuster espetáculo, e também da sociedade e do jornalismo, onde a espetacularização do horror está na ordem do dia.

Em entrevistas, Peele disse que “Nope” surgiu de uma preocupação sua com relação ao futuro do cinema. Ele, portanto, queria criar um espetáculo, algo que as pessoas quisessem ir ver. E nada melhor do que criar uma tradicional história americana sobre alienígenas. Peele cita ainda que as influências de “Nope” estão em filmes como “King Kong” (1933), “O Mágico de Oz” (1939), “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), “Jurassic Park” (1993) e “Sinais” (2002). De fato, dá para dizer que há elementos de muitos destes filmes na história desenrolada pelo diretor.

Olhando de forma mais simplória, “Nope” poderia ainda se inserir num grupo de filmes como “Tubarão” (1975) ou “Alien” (1979), que consiste num grupo de pessoas tentando aniquilar um monstro assustador.

Contudo, diante deste olhar, “Nope” perde força. Porque ele não é um entretenimento tão interessante quanto todos os filmes citados acima. Sob esta perspectiva — pois já falaremos de outra — percebe-se pouco sobre as motivações dos personagens e não se faz qualquer relação da história principal com a trama paralela do show “Gordy”, que acaba em tragédia.

É quando vamos em busca das camadas que Peele gosta de introduzir em seus filmes que “Nope” ganha fôlego e se torna minimamente interessante. E aqui cabe uma reflexão sobre o olhar.

Cinema é muitas coisas, mas primordialmente é ver. Cinema envolve a questão do olhar porque, tal qual a pintura, surgiu como uma arte para deleite, num primeiro momento, dos olhos humanos. E sua magia inigualável vem do fato de, a cada filme, observarmos de forma quase voyeurística e escondido numa sala escura, a vida de dezenas de desconhecidos que passam em movimento na nossa frente através de uma tela. Algo muito mais rico para o espectador do que o estatismo da pintura.

Em “Nope”, Peele nos confronta com o fetiche do olhar. Olhar significa morrer. Porque é o olhar que atrai a criatura que nos devora. Por isso não devemos olhar para onde a criatura estranha do filme está. Todavia, a curiosidade é a necessidade de olhar são muito fortes e o diretor brinca com todo este sentimento. Por mais perigoso que seja, é muito forte o desejo de ver.

De certa forma, OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e sua irmã Emerald (Keke Palmer) são nossos representantes na tela. Aqueles que olham para o alto, mesmo sabendo que não devem, pois isso pode significar a sua morte. E a força e a agonia com que OJ e Emerald se esforçam no terceiro ato do filme para não olharem é muito humano e real, pois vivemos numa sociedade eminentemente voyeur.

É onde chegamos a um segundo ponto da reflexão que “Nope” nos traz. Se por um lado vivemos já há algumas décadas num mundo de um voyeurismo amplificado pelas redes sociais, afinal não nos interessa mais observar a intimidade dos famosos, mas também queremos invadir a intimidade dos comuns, por outro não nos satisfazemos mais com o comum. O ordinário, o comum, passam ao largo da ordem do dia. O que chama a atenção é o que se destaca. E o que mais se destaca é quando se vai ao extremo. É aqui que se chega na espetacularização do horror.

Tudo o que envolve as duas histórias paralelas do filme é esta ideia da espetacularização do horror. A motivação de OJ e Emerald com a criatura que paira sob a fazenda deles é registrar aquele fenômeno único para aparecerem no programa da famosa apresentadora Oprah Winfrey. É para isso que eles arriscam a vida, quando simplesmente poderiam ter ido embora daquele lugar decadente. Especialmente após a morte do pai deles de uma forma até então muito estranha no início do filme. Forma esta tratada como um acidente raro, mas não no âmbito do sobrenatural.

O monstro alienígena vira uma janela de oportunidade para OJ e Emerald resolverem seus problemas e, quem sabe, ganharem um novo fôlego no negócio da família e manterem a fazenda herdada do pai. Mal ou bem, eles querem traçar o caminho de Ricky (Steven Yeun), que ficou famoso na infância por participar de uma série de TV que acabou tragicamente com um chimpanzé matando dois atores em cena.

Na história do filme, aquele momento foi fartamente explorado pela mídia — tanto que Ricky cita que virou esquete no Saturday Night Live, famoso programa de humor americano — e pelo próprio Ricky, que, apesar do claro trauma que viveu com consequências até a sua vida adulta, o explorou para ganhar dinheiro e criar o seu próprio negócio, um parque de diversões com uma temática Western.

Ricky também sabe da existência da criatura alienígena na região e a usa a seu favor criando esquetes e merchandising em torno disso, bem como a promessa do espectador de experienciar aquele momento de terror com alguma segurança em sua arena em que oferece cavalos como alimento da criatura. No entanto, algo sempre pode dar errado quando testamos o limite de criaturas que não conhecemos. É algo que Ricky deveria ter aprendido com Gordy, mas prefere novamente esticar a corda diante do desconhecido.

Ricky, OJ e Emerald querem se apoderar do horror e faturar com ele. Assim como o diretor de cinema Antlers Holst (Michael Wincott), para quem vale tudo para conseguir filmar na Golden hour, e o jornalista do TMZ, que mesmo gravemente ferido, precisa tirar uma foto para publicar no seu site. Estes recados deixados por Peele na parte final do filme são muito interessantes ao mostrarem como alguns estão dispostos a ir além do limite por algo supostamente único em meio a um oceano de coisas mundanas.

“Nope”, porém, carece de uma conclusão para estes caminhos traçados por Peele. Há ali reflexões interessantes, mas ele não vai muito além do que estas ideias levantadas por Peele. Ou talvez nem houvesse grandes ideias. Talvez o diretor só quisesse construir mesmo um filme-espetáculo sobre um invasor alienígena e os humanos tentando sobreviver. Fica a sensação de que havia um potencial filme melhor em “Nope” do que o que chegou até nós. Neste ponto, os dois trabalhos anteriores de Peele são mais redondos.

Nota 6.