sábado, 27 de novembro de 2021

“Spencer” e a vida sufocante da princesa Diana

Stewart não conseguiu se amalgamar a Diana

Cinco anos depois de fazer um estudo sobre um duplo luto do marido e do poder em “Jackie”, o chileno Pablo Larraín resolveu buscar outra mulher icônica do poder para um novo exercício dramático. “Spencer” joga uma lupa sobre a falecida princesa Diana e sua relação com a família real britânica num dos momentos finais de sua relação com o príncipe Charles.

Assim como “Jackie”, o filme foca quase que 100% sobre sua personagem principal fazendo com que todos as demais figuras orbitem em torno dela, reajam a ela ou sejam empáticas ou não a ela.

“Spencer”, porém, não é tão bem sucedido quanto “Jackie”. Tem altos e baixos. Como reflexão sobre uma vida sufocante e suas consequências sobre alguém completamente deslocada daquela realidade cheia de padrões, horários rígidos e tradições ele vai bem. Mas o que falta a “Spencer” é o que “Jackie” tinha de sobra: uma atriz que segurasse firme o protagonismo do filme.

É claro que Natalie Portman é mais atriz que Kristen Stewart. Mas Stewart pareceu não ser a melhor escolha, ainda mais com uma comparação tão próxima a ela. A Diana de Emma Corrin, em “The Crown”, é mais rica ao mesmo tempo em que passa os mesmos dramas que o filme tenta colocar. É claro que uma série tem mais espaço de desenvolvimento, mas Corrin pareceu captar melhor a essência da princesa de Gales a ponto de vermos mais a Diana do que propriamente Corrin, o que não acontece em “Spencer”. O que vemos no filme de Larraín é mais Stewart tentando imitar e dar sua visão para Diana, mas sem conseguir se amalgamar com a personagem.

Também são discutíveis os maneirismos que Stewart impôs à personagem. Aquela fala travada, quase sufocante o tempo inteiro cansa um pouco. Por outro lado, se o objetivo era exatamente este, mostrar como aquela família sugava a alma de Diana a ponto de ela mal conseguir respirar pareceu uma saída interessante.

No entanto, “Spencer” se sai melhor mostrando isso com atos e imagens. O controle absoluto sobre a vida dela, as constantes observações, a sensação de prisão (a cena das cortinas costuradas é terrível e ao mesmo tempo muito emblemática), a necessidade de estar sempre seguindo protocolos burocráticos de uma realidade hipócrita enquanto a realidade estava desmoronando em meio a uma conhecida traição de Charles e seus problemas de bulimia. Tudo isso é muito bem feito no filme de Larraín.

“Spencer” é uma reflexão sobre a falta de ar e uma vida sufocante. Sobre como um ambiente é nocivo para alguém que não se enquadra na rigidez da família real. A primeira tomada dele já é brilhante em mostrar os contrastes entre Diana e o seu universo. Ela livre, perdida, sozinha tentando encontrar o caminho para o fim de semana de Natal em família. Do outro lado, exércitos seguindo rígidos protocolos. Do exército que entrega a comida ao exército de cozinheiros do castelo.

Gosto de como Larraín usa as dualidades do filme. De como ele faz Diana querer fugir e ser livre o tempo todo enquanto todo o universo da família real precisa seguir uma rotina de relógio suíço e até a diversão é controlada. Tudo o que Diana busca é um Natal e, consequentemente, uma vida normal. Mas é tudo o que ela não pode ter. Presa que está naquela hierarquia feudal e com um marido que o mundo inteiro sabe que a trai.

Os únicos momentos que não são de martírio dela são com os filhos. Larraín vê William e Harry como o ponto de alívio e amor que Diana tinha no inferno que sofria. O diretor também faz questão de reafirmar o título de princesa do povo ao mostrar que os empregados têm simpatia por ela. Ao contrário dos olhares atravessados, opacos, distantes da família, que parece querer se livrar dela tanto quanto ela deles.

“Spencer” mostra um momento sufocante pré-ruptura. Dali para frente, tudo seria diferente para todos até a trágica morte da princesa. E a escolha de Larraín em mostrar isso justamente num momento de Natal, que devia ser de celebração e união, foi certeira.

O filme, porém, só reforça os entendimentos que se criaram sobre todos estes personagens tão fartamente retratados no cinema e na TV. Neste ponto, portanto, “The Crown” e “A Rainha” são mais interessantes por discutirem e tentarem se aprofundar um pouco mais sobre eles. “Spencer”, por outro lado, tem seu lugar. E não deixa de ser um exercício interessante de Larraín sobre uma mulher com uma vida tão fascinante quanto trágica.

Cotação da Corneta: Nota 6,5.



sábado, 13 de novembro de 2021

"Eternos" ficou devendo, mas ainda assim é divertido

Eternos e suas belas fantasias de carnaval
Levar para o cinema os personagens cósmicos da Marvel era um grande desafio. Primeiro, eles nunca foram realmente incríveis nos quadrinhos. E ainda assim era preciso torná-los interessantes e palatáveis para o grande público que não consome e desconhece completamente estas histórias numa narrativa que se enquadrasse no universo cinematográfico do estúdio e pudesse criar uma nova mitologia neste mesmo universo.

“Eternos” (“Eternals”, no original) não consegue atingir todos os ambiciosos objetivos. De fato, se o filme for visto apenas como uma aventura de uma gama de heróis da Marvel, ele até vai bem. Tem uma história tradicional, plot twists, batalhas interessantes e um final em que o bem vence o mal e, entre ganhos e perdas, a vida segue rumo a próxima aventura.

O filme, porém, não é bem sucedido quando vai para além desta camada primeva. Quando tenta discutir o papel dos Eterno na humanidade e sua função durante sete mil anos, quando levanta as capas de uma suposta hipocrisia e de um jogo de peões interplanetário em um xadrez muito maior do universo ele não passa de uma camada um pouco pálida.

É perceptível o esforço do filme em trazer uma camada de importância e construir um filme que se distancia vagamente da chamada fórmula Marvel, trazendo algumas discussões, digamos, sociológicas. E é muito válido que isso seja feito de alguma forma. Mas era preciso fazer tanta coisa neste filme: apresentar e mostrar quem são os Eternos, explicar o que são os Celestiais e os Deviantes, apresentar Dan Whitman, que deve vir a ter um papel importante na futura formação dos Vingadores, explicar por que os Eternos não interferiram na batalha contra Thanos e os demais conflitos da humanidade. Enfim, era muita coisa a fazer em 2h37min. Portanto, essa tentativa de dar um corpo acadêmico ao filme fica em quinto plano e não passa de flashes numa história que precisa seguir em frente nas batalhas e na construção daquele universo. Creio que “Pantera Negra” (2018) tenha sido mais bem sucedido em tentar ir para além de uma trama tradicional de quadrinhos.

Mas dito isso, “Eternos” é bem legal. Nos apresenta uma gama de personagens que no cinema ficaram interessantes em uma trama tradicional que envolve o dilema entre seguir o seu destino ou cuidar da sua família. Mas essa é muito uma perspectiva de um leitor de quadrinhos.

Para alguém mais leigo, “Eternos” parece um filme bastante frio e distante. Confuso com todos aqueles saltos temporários e um pouco vazio, com pouco aprofundamento da maioria dos seus personagens. Ao mesmo tempo em que talvez seja didático demais. Por outro lado, talvez seja fundamental que ele seja didático para o grande público se ver inserido no contexto daquela mitologia.

Falta a “Eternos” também uma assinatura mais forte de sua diretora. Num ano em que Chloe Zhao ganhou um Oscar por um filme tão autoral e excelente como “Nomadland”, esperava-se que “Eternos” tivesse mais da diretora, por mais que Kevin Feige fosse quem comanda a roda da Marvel. O filme não parece muito diferente do que seria sob o comando de outra cabeça. Mas creio que Zhao pelo menos consegue fazer um feijão com arroz satisfatório na construção desta aventura e, eventualmente, implantar as suas ideias em pontos específicos da história.

Narrativamente, porém, o filme falha na trama de Ikaris (Richard Madden). A virada que o personagem ganha soa artificial uma vez que é abordado de forma muito rápida os conflitos entre a fé e a razão entre os Eternos. E depois disso, quando Ikaris hesita não fica muito claro os seus motivos ou soa um tanto quanto um “momento Martha” por ser simplesmente por amor enquanto até ali ele foi intransigente no seu plano a ponto de ter tomado decisões tão drásticas.

O que fica de positivo em “Eternos” é sua aventura, a participação de Angelina Jolie, os personagens interessantes, as boas cenas de luta e a perspectiva de um segundo filme que aprofunde mais suas histórias e desenvolva as consequências dos atos dos personagens neste filme, uma vez que o universo já está estabelecido.

O futuro parece promissor. O presente, porém, ficou entre o morno e o divertido. E com umas boas piscadelas da Marvel para a DC, talvez uma das boas sacadas do filme em seus momentos mais cômicos.

Cotação da Corneta: Nota 7.



"Duna" é um filme grandioso

Paul nunca abandona a mãe
Originalmente um longo romance de ficção científica de Frank Herbert, “Duna” parecia infilmável. Afinal, como jogar para a tela um livro de mais de 600 páginas com uma gama relativamente grande de personagens importantes e várias tramas relevantes? Foi um desafio que o diretor canadense Dennis Villeneuve pegou para si. E tal qual um fremen cavalgando nas costas de um verme de areia, Villeneuve dominou muito bem o desafio.

“Duna” (“Dune: part 1”, no original) é um filme grandioso, solene, irresistivelmente belo e uma adaptação respeitosa e cirúrgica do livro de Herbert. Será preciso ser muito chato e cri-cri para que o fandom de “Duna” torça a cara para este filme. Estão ali todo os elementos do livro explorados com a minúcia que 2h35min de uma adaptação de aproximadamente metade do livro permitem. As casas são destacadas, os conflitos políticos, a questão envolvendo o meio ambiente, a luta pela especiaria, os interesses particulares das Bene Gesserit. a jornada do herói Paul Atreides (Thimothée Chalamet).

É claro que “Duna” não é um filme perfeito. E nem o melhor filme de Villeneuve. Mas isso diz mais sobre as qualidades de um diretor que já realizou trabalhos como “Blade Runner 2049” (2017), “A Chegada” (2016), “Sicário: Terra de Ninguém” (2015) e “Incêndios” (2010) do que depõe contra o seu trabalho em construir o mundo e os conflitos imaginados por Herbert.

Entre os acertos de “Duna” estão as escolhas de Villeneuve. Primeiro focar sua adaptação em uma parte do livro e não em sua totalidade. Assim, “Duna” pôde ter um ritmo mais lento, trabalhar mais a construção de seu universo e copiar até diálogos inteiros do livro. Segundo, escolher no meio de tudo focar na jornada do jovem Paul Atreides, filho do Duque Leto (Oscar Isaac) e, para os habitantes de Arrakis, o escolhido. Tudo gira em torno de Paul enquanto a trama política e ecológica fica como pano de fundo. Com destaque também, mas num patamar um pouco abaixo. Talvez isso não fosse o mais interessante para quem gosta mais das tramas políticas de “Duna”. Mas era preciso fazer escolhas e Villeneuve fez as dele.

Esteticamente é preciso destacar a trilha sonora inspirada de Hans Zimmer, que soube dar corpo à grandiosidade visual do filme. Também vejo como pontos positivos, detalhes das escolhas de Villeneuve como o uso da Voz, espécie de poder mental exibido pelas Bene Gesserit. O tom meio aterrorizante pareceu ser correto. Também foi boa escolha a sutileza que se exibem as especiarias, quase invisíveis para olhos mais distraídos, mas sempre ali relativamente brilhando em sua cor alaranjada e misturada a areia do deserto. Assim como o conceito dos escudos dos personagens.

Outro acerto foi a estética dos vermes do deserto, assustadores, meio escuros, sem um rosto aparente e raramente aparecendo em sua plenitude. Villeneuve soube ainda emular muito bem a forma como o deserto se movimenta como se fosse um mar de areia tão bem descrito no livro de Herbert.

Por outro lado, muito do que torna “Duna” grandioso pode incomodar o espectador comum. Por vezes, o filme de Villeneuve parece frio e sem alma. Crítica que “Blade Runner 2049” também já sofrera. Eu discordo. Acho que ele tem a força em sua beleza e os personagens carregam muito desta alma do filme desde as menores participações até Chalamet. E como estão bem Isaacs, Rebecca Ferguson, Stellan Skarsgaard, Javier Barden, Josh Brolin, Jason Momoa, Charlotte Rampling e outros. Cada ator entrega bem o que seu personagem pede.

É questionável também o modo como o filme termina. Me parece que só não causará incômodo e estranhamento em quem leu o livro, pois este grupo já conhece o que está por vir. Mas quem nunca pegou na obra de Herbert e vai conhecer o universo pela primeira vez pode ficar frustrado, mesmo que tenha sido enredado pela beleza do filme.

Haveria outro momento melhor para encerrar esta primeira parte? Talvez. Faltou um clímax ao filme? Provavelmente. Contudo, não foi exatamente ruim que a primeira parte terminasse com o amadurecimento de Paul, a sua necessária morte metafórica, enquanto a segunda deve se ocupar mais com a ascensão de Muad’Dib.

“Duna” correspondeu a muitas das expectativas. Sua grandiosidade, porém, só terá um atestado definitivo quando a parte 2 ganhar a luz do dia. Até lá, no entanto, nos contentemos com uma primeira parte cheia de predicados.

Cotação da Corneta: Nota 8,5.