domingo, 28 de novembro de 2010

Uma lenda ao vivo

O guitarrista dos Rolling Stones Keith Richards vive dizendo que doará o corpo para a ciência quando morrer para que os cientistas estudem como ele sobreviveu às drogas até a idade em que vier a falecer. Acho que Paul McCartney deveria fazer o mesmo para que o mundo consiga entender como este senhor conseguiu chegar aos 68 anos preservando dentro do possível a sua voz e com uma vitalidade de fazer Mick Jagger bater palmas.

Sim, porque não é fácil tocar 2h20m ininterruptamente (sim, eu marquei) até a primeira parada para a posterior realização do primeiro dos dois bis a que o público do Morumbi, em São Paulo, teve direito numa apresentação que completaria ao início da madrugada de terça-feira passada quase 3h.

Você poderia argumentar que Paul McCartney não canta rock pesado, logo não precisaria ter aquele alcance vocal que, por exemplo, Ian Gillan não tem mais e o faz pagar mico a cada vez que se reúne com o Deep Purple. Também pode dizer que ele não se movimenta no palco como um Mick Jagger. Sim, seus movimentos são mais, digamos, contidos que muitos de seus pares e sua música é mais generosa com as cordas vocais que as do Led Zeppelin - motivo pelo qual Robert Plant não quer nem pensar em reunião com os dois outros integrantes da banda ainda vivos – ou o Iron Maiden, para ficar em duas bandas quase contemporâneas.

Mas a força e a vitalidade de Paul McCartney está na sua própria música. No peso de 53 anos fazendo esse tal de rock and roll desde que ele conheceu um tal de John Lennon e com George Harrison e Pete Best começou a desenhar a banda que viria a se tornar os Beatles já com Ringo Star nas baquetas.

Pode-se dizer que o show do ex-Beatle (ou seria eterno Beatle?) é relativamente óbvio. Você sabe que mais ou menos metade das músicas serão dos Beatles (e foram 20 das 39 tocadas no segundo show e 21 das 37 tocadas em Porto Alegre e no primeiro concerto em São Paulo), que haverá explosões em “Live and let die”, que ele vai chamar um coro com a plateia em “Hey Jude” e em escala menor que ele vai homenagear John (na bonita “Here Today”) e George (na ainda mais bela “Something”).

Mas Paul McCartney é como drible do Garrincha. Você sabe que vai acontecer, é inevitável e você ainda se emociona. E vai se emocionar enquanto ele tiver o fôlego que muitos de seus pares e membros de gerações posteriores dos anos 70 e até 80 não têm. Por que ele não é apenas um ex-Beatle – e como li há duas semanas no Twitter, ¼ dos Beatles é melhor do que muita banda inteira por aí – e sim porque ele é uma lenda viva. Porque a sua música tem a força de emocionar e embalar gerações e gerações de pessoas. E muitos ainda serão influenciados e se emocionarão por esta mesma música mesmo quando ele se juntar a John e George.

Quando falei sobre a previsibilidade de sua apresentação, não estava necessariamente criticando. Até porque, o ex-beatle sabe ser imprevisível quando quer. Multi-instrumentista – no show ele toca o lendário baixo Hofner, além de guitarras Gibson, piano, bandolim e uquelele -, já o vi num especial de TV criar uma música ao vivo e diante de uma atônita plateia. Foi só uma constatação e que não impede o show de ser absolutamente fantástico.

Se há um momento de surpresa no Morumbi, no entanto, é na absurda qualidade de sua banda formada por Rusty Anderson (guitarra), Brian Ray (guitarra e baixo), o figuraça Abe Laborial Jr (bateria) e Paul Wickens (teclado, guitarra, harmônica).

Rusty e Brian passeiam facilmente da pegada mais blueseira (“Letting Go”) a rocks como “Live and let die”, “Paperback Writer” e “Get Back” até chegar no peso de canções como “Back in the U.S.S.R” e o quase heavy metal “Helter Skelter”, uma das minhas favoritas, aliás. Jogam em todas com a maestria de um camisa 10.

Já Abe é um show à parte. O baterista, por sinal, muito melhor do que Ringo jamais foi, é o grande nome do show. Depois de Sir Paul, evidentemente. Gordinho, bota todo o peso das suas mãos nas baquetas e agride a bateria com um prazer orgástico. Além de fazer backing vocal em quase todas as canções, Abe também mostra um lado "sensível" ensaiando uma dancinha em “Dance Tonight” com direito a passos de macarena, ula-ula e John Travolta em “Os embalos de sábado à noite” que divertiram e levaram a plateia a dar boas risadas.

Em entrevista à “Rolling Stone” desse mês, Paul McCartney disse que já está há tanto tempo com essa banda que eles realmente viraram uma banda. E nota-se isso pelo entrosamento do quinteto. O crédito do show pode chamar por Paul, mas além de gênio por trás de cada uma das canções, ele é meio que o vocalista desse grupo que se apresenta ali na sua frente. Outro grande grupo depois dos Beatles e dos Wings.

É uma pena que como todo show uma hora ele tem que acabar, embora o desejo dos mais de 60 mil presentes seja o mesmo de um trecho da letra de “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, que encerra os trabalhos no estádio: “I don’t really want to stop the show”.

Veja abaixo o set list e alguns dos bons momentos do espetáculo:

Magical Mystery Tour
Jet
All My Loving
Letting Go
Got to Get You into My Life
Highway
Let Me Roll It / Foxy Lady
The Long and Winding Road
Nineteen Hundred and Eighty-Five
Let 'Em In
My Love
I'm Looking Through You
Two of Us
Blackbird
Here Today
Bluebird
Dance Tonight
Mrs. Vandebilt
Eleanor Rigby
Something
Sing The Changes
Band On The Run
Ob-La-Di, Ob-La-Da
Back in the U.S.S.R.
I've Got a Feeling
Paperback Writer
A Day In The Life/Give Peace A Chance
Let It Be
Live and Let Die
Hey Jude
Day Tripper
Lady Madonna
Get Back
Yesterday
Helter Skelter
Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band/The End
XXXXXXXXXXXX
Magical Mistery Tour/Jet

All my loving

Something

Band on the run

Eleonor Rigby

Long and widing road

Live and let die

Back in the USSR

Paperback Writer

Get Bac

Helter Skelter

Sgt. Peppers e The End

sábado, 20 de novembro de 2010

Um herói das pistas

“O Senna é a única coisa que o Brasil tem de bom”. “No Brasil falta educação, segurança, saneamento, falta tudo, mas tínhamos a alegria com o Senna. Agora nem alegria temos mais”. Estes são dois depoimentos que mais do que serem retratos do Brasil entre o final da década de 80 e o início da década de 90, mostram a dimensão que Ayrton Senna da Silva tinha nesse país.

Senna foi um herói quase perfeito no imaginário popular. E é essa quase divindade que encontramos no documentário do diretor inglês Asif Kapadia, que junto com o roteirista Manish Pandev se debruçou sobre mais de cinco mil horas de gravações, depoimentos, comentários e imagens, milhares de imagens, para contar a história de um mito do automobilismo que com o seu talento expandiu as fronteiras da Fórmula-1 para se tornar um dos maiores nomes do esporte mundial.

Como um herói trágico, Ayrton Senna morreu jovem e fazendo o que sabia fazer melhor. Foi aos 34 anos em Ímola, na Itália, que ele deixou órfão um país e fez o mundo inteiro chorar numa manhã de domingo em que costumava trazer alegrias como nas suas 41 vitórias e três títulos mundiais na principal categoria do automobilismo.

Filme de ficção nenhum poderia ser melhor do que a história real de Ayrton Senna contada pelo próprio e pelas pessoas que conviveram com ele. A dificuldade estava em organizar o vasto material deixado num trabalho enxuto de 1h45m que conseguisse contar a história de um piloto fantástico, um dos melhores da história da Fórmula 1 e um dos maiores esportistas de todos os tempos. E a missão de Kapadia e Pandev resultada no documentário “Senna” foi mais do que cumprida num filme excelente e fundamental para quem gosta de Senna, da F-1 e de esporte. Com a ressalva de que não é um documentário para leigos.

Estão lá o esportista que conseguia tirar leite de pedra de carros inferiores e brilhou no cockpit da McLaren, a rivalidade com o francês Alain Prost, tetracampeão do mundo e que foi de colega a inimigo mortal e posteriormente apenas rival que respeitava o brasileiro e hoje é colaborador do Instituto Ayrton Senna. Essa foi uma das maiores rivalidades da história do esporte e que impulsionou a popularidade da F-1.

Mas há também o piloto que tentava lutar contra o sistema da Fórmula 1, que buscava justiça e mais segurança para os pilotos e tinha o respeito dos colegas (exceto Prost, é claro).

Um gênio que era ainda mais genial na chuva, que ia além dos limites do carro e testava os seus próprios limites. Que foi sacaneado e também deu suas porradinhas, que foi campeão correndo para vencer com o que sempre se chamou de “faca nos dentes”. Um comentarista inglês o define com uma palavra: “fast”. É assim que era Senna.


As vitórias que construíram o mito também ganham espaço. A de 91, a primeira em Interlagos, só com a sexta marcha funcionando no carro que o desgastou profundamente. A de 93, também em Interlagos, com a torcida invadindo a pista, é mostrada de relance. E muitas outras que valeram ou não. O rei de Mônaco, o ídolo, são muitos os Sennas que aparecem na tela. São muitas as imagens curiosas que enriquecem a história da Fórmula 1 e não cabe a mim aqui contar para não estragar o filme. Melhor é vê-lo no cinema e recordar alguns momentos inesquecíveis nos vídeos abaixo. Eles não mostram necessariamente as grandes vitórias do cena, mas momentos de muita emoção na carreira de maior piloto que o Brasil já teve.






sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Quando a vaga é maior que o título

É curioso como ultimamente no futebol brasileiro tudo gira em torno da tal da vaga na Libertadores. Só se fala nela no início, no meio e no fim do ano. Hoje em dia, ser campeão é um detalhe. O que vale é a vaga na Libertadores. Até o líder Fluminense, a quatro longos passos de ser campeão brasileiro, começou o campeonato com seu treinador Muricy Ramalho dizendo que o objetivo nesse primeiro ano de contrato dele era a... vaga na Libertadores!

Ninguém assume que quer ser campeão. E os tropeços do tricolor, Corinthians e Cruzeiro durante o campeonato mostram realmente que há um esforço concentrado de entrega. Quem vai ceder mais? Bom, isso é papo para outro post. Estou mesmo interessado na vaga na Libertadores.

Vejam só. Os times começam o ano divididos. Cinco deles (em geral, cinco grandes) poupam seus titulares no Estadual porque estão jogando a Libertadores. Os outros sete grandes poupam seus titulares no Estadual porque estão jogando a Copa do Brasil, competição importante porque... dá vaga na Libertadores, ora!

Assim, o Estadual se arrasta até que por acidente alguém é campeão. E alguém tem que ser. Fazer o que? Nesse ano, o azar de levantar a taça do Estadual, que não vale vaga na Libertadores, coube a Botafogo (Rio), Santos (São Paulo), Atlético-MG (Minas Gerais) e Grêmio (Rio Grande do Sul).

Mas peraí, o Estadual não vale nada para os grandes. Para os pequenos eles valem muito porque uma boa classificação significa uma vaga na Copa do Brasil que, afinal de contas, é “o caminho mais curto para a... Libertadores!”

Ou melhor, era. Isso porque a partir deste ano, também conhecido no futebolês como temporada, a Copa Sul-Americana passou a dar uma vaga - adivinhem? – na Libertadores. E aí, a Copa Sul-Americana, o patinho feio que virou cisne repentinamente como num desenho de Walt Disney, passou a ter um interesse incomum. Clubes brasileiros se digladiam não pelo título, mas pela...vaga na Libertadores. E Palmeiras e Goiás estão a quatro jogos desse sonho. Apesar de que, bem, a LDU está aí né. Fluminense e Internacional sabem do que eu estou falando.

Só que a Libertadores não é como coração de mãe. Não cabe todo mundo. Isso gera ciumeira entre os brasileiros que disputam a quarta vaga da festa do Brasileirão. Mais do que isso. Botafogo, Grêmio, Atlético-PR e até o São Paulo estão secando os times verdes envolvidos na Sul-Americana porque querem eles essa vaguinha na Libertadores. E assim atravessamos o ano (temporada) só pensando nela. São cinco vagas, três chances e muitas emoções para conquistar essa vaga. A taça é um detalhe.

Mas esses casos todos nos ensinam lições sobre a vida. Se lidássemos com ela da mesma maneira que no futebol, seríamos mais felizes. Veja o José Serra, por exemplo. Ficou em segundo lugar na eleição. Saiu derrotado, triste, para baixo. Se tivesse uma Libertadores na política, no entanto, ele estaria classificado. E a Marina Silva também, para alegria dos marineiros de plantão.

E aquele (a) amante que você mantém? Aquele (a) que você encontra na hora do almoço naquele motel badalado? Ora, ele é o seu segundo, seu 02, ele é o seu “amor vaga na Libertadores”. Isso desde que o sexo não seja do tipo vaga na Libertadores, né, porque nesse caso, o cidadão tem que ser campeão.

Queria viajar para Barcelona, mas o dinheiro só deu para Buenos Aires? Sorria, é um país de tradição na Libertadores. Seu sonho era encontrar o John Lennon, mas acabou vendo o Paul McCartney? Ora, ele é o seu beatle-Libertadores.

Levando uma vida ao estilo vaga na Libertadores não haveria discussões. O restaurante A está cheio, vamos na segunda, na terceira ou até na quarta opção. Ou aquele restaurante peruano do tipo vaga na Libertadores através da Sul-Americana. Vai ao cinema? Qual filme escolher? Tanto faz. Se o seu parceiro (a) não quer saber da sua opção um, você ficará satisfeito com a opção dois, a opção, tcharããã...vaga na Libertadores. Uma vida ao estilo vaga na Libertadores, portanto, e vejam onde eu quero chegar, acabaria com as discussões de relacionamento que nove entre dez homens detestam. Nessas horas, eles sempre pensam numa saída ao estilo vaga na Libertadores.

A vaga na Libertadores seria a festa dos comunistas, socialistas e toda essa turma que gosta de usar vermelho. Isso porque ela representa uma distribuição maior de felicidade, uma disposição mais igual de satisfação. Onde um sorria, agora sorriem cinco. É o fim do capitalismo selvagem, da competição desembestada para ser apenas o número 1. A felicidade também está em ser segundo, terceiro, quarto... Tenho certeza que Paulo Coelho ou qualquer outro similar ainda vai escrever um livro do tipo auto-ajuda chamado “Vaga na Libertadores”.


E se você estiver fora da Libertadores pense que no ano que vem, ou melhor, na próxima temporada, você terá uma segunda chance, será a sua oportunidade... bem, vocês entenderam.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O Rio nostálgico e romântico de Jabor

Numa bucólica rua do subúrbio do Rio de Janeiro, um pipoqueiro fala algumas sacanagens para jovens que param por ali para discutir as reminiscências sexuais da adolescência enquanto outros discutem em um banheiro quem é melhor: Ademir Marques de Menezes ou Heleno de Freitas. O Rio tem seis grandes clubes com a presença de América e Bangu ao mesmo tempo em que um avô dá lições de vida ao jovem neto sob o testemunho de um céu estrelado e lindo, algo raro em tempos de poluição.

É um Rio menos veloz, menos sujo com a inocência do carnaval de rua e onde o jazz anda disputando espaço com o nascente rock and roll, invenção americana aportando na cidade que é o coração e a alma do Brasil. Mas na Lapa, essas “músicas moderninhas” não tem vez nas casas de dança onde brilham o samba e o choro. Casas estas coladas aos puteiros com o que há de melhor e pior para se satisfazer de acordo com o gosto do freguês.

Demorou 26 anos – desde “Eu sei que vou te amar” (1984) - para que o jornalista Arnaldo Jabor deixasse um pouco de lado sua verve ácida com que vocifera contra os desmandos e escândalos do governo Lula e sua futura sucessora Dilma Rousseff e voltasse a pegar numa câmera para rodar um Rio de Janeiro dos seus sonhos. Um Rio de Janeiro idílico presente na sua memória e por vezes retratado em suas crônicas no Segundo Caderno do Globo.

Agora o pipoqueiro, as prostitutas, o avô e tantos outros personagens ganharam imagem, cor, falas e movimento num roteiro de um filme essencialmente nostálgico com uma visão romântica da cidade que o cineasta conheceu a partir do seu nascimento há 70 anos.

Essa poderia ser uma definição apressada de “A Suprema Felicidade”, novo filme de Jabor após esse longo hiato. Outra descrição básica é o óbvio que o filme conta a história do crescimento e do amadurecimento do jovem Paulinho (Jayme Matarazzo, que faz o personagem na adolescência e idade adulta) e sua relação com o avô (um estupendo Marco Nanini, dono da película), num Rio de Janeiro entre o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 e o fim da década de 50 e início da década de 60.

É um enredo simples num roteiro que, é verdade, se perde por vezes nas suas idas e vindas (ou faz com que nos percamos) e tem cenas que parecem não ter muito nexo com relação ao resto da história. Mas assim também não é a vida? Por vezes não nos deparamos com situações sem sentido que nos tiram do eixo normal, do destino previamente traçado e depois que passamos por elas retomamos o rumo anterior? Ou não?

Poderia se dizer que o filme de Jabor é sobre nada. E alguns amigos deste blogueiro comentaram isso para criticá-lo. Mas é também sobre tudo porque ele é um pouquinho da vida. Uma reflexão sobre essa atividade pulsante que gosta de quem gosta dela como bem lembra o personagem de Marco Nanini.

Sim, “A Suprema Felicidade” é por vezes cansativo. Talvez funcionasse melhor com uns 20 minutos menos. Ele tem também um ritmo bem menos acelerado do que nos acostumamos a ver hoje em dia e por isso às vezes causa rejeição de quem o assiste. Mas não é diferente nessa questão específica do ritmo de qualquer Fellini ou Godard. E acho que isso é um problema mais do espectador, não do filme.

Se você se perde nestas idas e vindas sem ordem cronológica, é aí que vale se apegar aquela definição básica do neto que aprende os segredos da vida com o avô apaixonado por cada segundo que lhe resta e por tudo o que ela, a vida, lhe oferece descritas acima. E apreciar o filme sem moderação ou pré-conceitos.

“A Suprema Felicidade” pode não ser a película que entrará na lista de melhores da sua vida, mas ele é um trabalho simpático (ou fofo, como descreveu uma amiga minha) do diretor que consegue nos brindar com esse Rio mais romântico e único para quem o viveu. Eram tempos pré-“Cidade de Deus” (2002) e “Tropa de Elite” (2007).

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O justiceiro em outra batalha

Beto Nascimento (Wagner Moura) entra no seu apartamento pequeno e escuro cuja sala é equipada por uma TV antiga e um pequeno sofá. Da mesma perspectiva se vê o solitário justiceiro entrando na cozinha para abrir uma geladeira vazia onde a água é a bebida que refresca a alma de um corpo marcado pela guerra. Estamos no Rio de Janeiro, onde o outrora capitão, hoje tenente-coronel "caiu para cima" depois de anos de serviço ao Bope e assumiu a subsecretaria de Segurança do estado. Seus ideais são os mesmos aos quais ele dedicou toda a vida. A caveira passou a ser mais importante do que ele próprio, que viu sua vida pessoal se acabar no divórcio junto com o afastamento do filho.

Pior do que ter que lidar com as ausências, é saber que sua ex-mulher se casou com um almofadinha pacifista que acha que bandido tem que ser tratado de forma humana enquanto ele tem em mente apenas o melhor plano de dizimá-los da face da terra. O futuro deputado Fraga (Irandhir Santos) é a antítese do caveira Nascimento e aliado improvável de uma guerra que agora é mais complexa do que o velho esquema caubói mocinho vs bandido.

Agora a corrupção e a podridão do Rio de Janeiro estão expostas em valas coletivas. Ela fede em cada esquina, em cada gabinete de políticos corruptos, apresentadores de TV aproveitadores, da classe alta e da classe média conivente e de policiais que na pior lógica darwinista se adaptam em meio ao caos para tirar vantagem de tudo e sem intermediários.

O subtítulo do petardo do diretor José Padilha intitulado "Tropa de elite 2" é "O inimigo agora é outro". O inimigo está no sistema, essa entidade que tem tentáculos de polvo e rede digna da mais aterradora máfia italiana. Ele está nas comunidades sufocadas pelo tráfico que busca uma solução. O sistema tem agora outra ponta na sua pirâmide e seu nome genérico é milícia.

É com ela que Nascimento agora terá que lidar dessa vez pegando menos em armas e fazendo um trabalho de inteligência a partir de um fato que vai mudar a sua visão e fazê-lo botar a mão no lixo que domina o governo.

Nascimento é uma espécie de Frank Castle brasileiro, um justiceiro como o personagem dos quadrinhos que narra o seu filme como o seu diário de guerra. O Rio é o seu Iraque, o seu Afeganistão ou a Nova York de Castle, e a sua vida é com movimentos extremamente pré-determinados para que ele não seja surpreendido. Nascimento precisa estar sempre um passo a frente dos inimigos. É assim que ele escapa de emboscadas e consegue salvar da morte as pessoas que ama. É assim que é a sua vida.

Longe da questão comparativa, “Tropa de elite 2” é mais do que melhor ou pior do que o primeiro, uma continuação da história desse anti-herói chamado Nascimento que lida com seus demônios para tentar levar segurança a uma cidade caótica como o Rio. Ele nunca foi fascista como o acusaram no primeiro filme (e o roteiro de Bráulio Mantovani dá uma alfinetada no tema), e nem “amoleceu” ou “se sentiu culpado pelo passado” agora. Apenas saiu de frente do campo de batalha para lutar em outras frentes numa batalha muito mais complexa, numa guerra de trincheiras em um complicado e intrincado xadrez em que se ganha uma vez e se perde outras 15. Reconhece erros, é verdade, mas continua sendo um caveira.

Padilha conseguiu juntar neste segundo filme todos os elementos que jogaram o Rio no fundo do poço e dar um retrato fiel da cidade a partir disso. Ele declarou certa vez que fez o filme que gostaria de ter feito. Enquanto isso eu me pergunto se certos personagens da cultura local facilmente identificáveis vestiram a carapuça.

Não terei essa resposta. Independentemente dela, a conclusão a que posso chegar é que o excelente trabalho capitaneado por Padilha é daqueles filmes fundamentais para entender o Rio. Além de ser uma obra cinematográfica única.