segunda-feira, 29 de março de 2021

“Druk” fica no meio do caminho entre reflexão e celebração

Madds Mikkelsen tomando todas
Segundo uma teoria do psiquiatra norueguês Finn Skarderud, o homem tem o nível de álcool no sangue muito baixo. Mais precisamente 0,5% a menos do que o normal. E se os homens bebessem alguma substância alcoólica diariamente para compensar esta suposta perda, terão melhor desempenho em suas vidas pessoais e profissionais. Com o intuito de testar a teoria, quatro professores do ensino médio resolvem inserir a bebida como uma atividade constante em suas vidas. Essa é a premissa de “Druk — mais uma rodada” (Druk, no original) novo filme do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, que concorre a dois Oscar.

A partir das experiências de Martin (Madds Mikkelsen), Tommy (Thomas Bo Larsen), Nikolaj (Magnus Millang) e Peter (Lars Ranthe), “Druk” levanta algumas questões sobre o alcoolismo, mas não consegue se aprofundar ao que se propõe. O filme parece ter ficado no meio do caminho entre uma crítica social abordando um problema real na Dinamarca e uma celebração das intensidades da vida. E isso talvez possa ter relação com o trágico bastidor revelado a partir de sua dedicatória.

Ao fim do filme, vemos que “Druk” é dedicado a uma jovem chamada Ida, que vem s ser a filha de Vinterberg que morreu em um acidente de carro na Bélgica pouco antes do início das filmagens deste seu novo trabalho. Ida participaria do filme como uma filha de Martin, um dos protagonistas. Com a sua morte, o roteiro foi modificado e Martin passou a ter dois filhos homens.

Foi de Ida a ideia de que Vinterberg transformasse a peça de teatro que escrevera em filme. Também foi da filha que Vinterberg colheu muitas das histórias de bebedeiras de jovens que foram usadas no filme.

Por trás disso, há uma estatística perigosa. A Dinamarca tem uma das mais altas taxas de consumo de álcool entre jovens. Um jovem dinamarquês de 15 anos consome quase o dobro de álcool que seus colegas de idade semelhante em toda a Europa.

Toda essa questão do uso de álcool é levantada no filme nas experiências dos quatro professores que vão escalando até ficarem insustentáveis e com consequências para as suas vidas, mas também são verbalmente explicitadas numa briga que Martin tem com sua esposa Anika (Maria Bonnevie) antes de se separarem. É quando Anika diz que “A Dinamarca está bebendo demais”.

Portanto, “Druk” arranha nestas questões do alcoolismo, mas não aprofunda a discussão. Não traz consequências mais graves ou não jogar mais luz ao debate envolvendo seus protagonistas. O único que sofre consequências mais dramáticas é justamente o menos relevante dos quatro amigos. E mesmo ela não traz impacto, pois os três amigos restantes já haviam largado a bebida. Até com uma certa facilidade para quem estava flertando perigosamente com o alcoolismo.

Nesse ponto, o filme também se encaminha por uma celebração da vida. Vinterberg disse que o filme é também sobre “estar acordado para a vida”. E não tem como imaginar que a sua filha podia ter sido um dos jovens na grande e bonita celebração do fim do filme, com os jovens aprovados do ensino médio.

No fim, o filme se equilibra muito entre estes dois mundos, o da crítica ao uso incontrolável do álcool e o da celebração de um meio de viver do dinamarquês que é muito associado ao álcool. E a sua cena final, com a bela coreografia de dança de Mikkelsen é a exibição física desta dualidade que Vinterberg construiu e que Mikkelsen soube personificar tão bem.

“Druk” não é tão interessante quanto “A caça” (2012), só para ficar em outra parceria entre Vinterberg e Mikkelsen. Arranha em seus objetivos, sem realmente dizer para onde quer seguir. Mas ainda que, depois de muito prometer, tenha ficado no meio do caminho, não deixa de ser um bom filme.

Cotação da Corneta: nota 7.

Indicações ao Oscar: Direção (Thomas Vinterberg) e filme em língua estrangeira.



“Nomadland”: A dor e a beleza da vida de nômade moderno

Frances McDormand na vida de nômade moderno
Após o colapso de uma empresa em Nevada causada pela Grande Recessão de 2008, Fern (Frances McDormand) pega a sua van e embarca numa viagem pelos Estados Unidos vivendo uma vida fora dos padrões estabelecidos pela sociedade como uma nômade moderna.

O enredo de “Nomadland” deixa claro que é o chamado “filme de Oscar”, mas o trabalho escrito e dirigido pela diretora Chloé Zhao não é exatamente um desfile de clichês Oscar bait para fisgar os prêmios da Academia ao qual o filme recebeu cinco indicações de prêmios.

“Nomadland” tem a delicadeza, a beleza e a sutileza dos grandes filmes. Daqueles que surgem de tempos em tempos e elevam o grau de beleza do cinema que está sendo exibido na ocasião do seu lançamento.

Na jornada de Fern, acompanhamos as dores , as dificuldades, mas também a beleza do estilo de vida nômade, enquanto a própria personagem tenta reencontrar o seu lugar no mundo e se reconectar com algo em sua vida depois de ter perdido tudo. Fern não viu apenas o emprego e a casa se perderem com a falência da empresa para a qual trabalhava. Ela também é uma viúva cujo marido morrera recentemente no tempo em que acompanhamos a história.

Enquanto perpassa por muitos ciclos de luto de uma vida que não voltará mais, Fern vai sobrevivendo com uma série de empregos temporários. Nos silêncios, nos olhares distantes para horizontes curtos ou longos, conseguimos imaginar tudo o que pode estar passando pela cabeça desta mulher na casa dos 60 anos, dirigindo uma van que tem a sua cara, o seu estilo, mas também parece ter a sua idade e os seus problemas.

Fern e sua “Vanguard”, como apelidou o carro, já viveram muito, mas não querem assentar em algum lugar e nem receber olhares piedosos de ninguém. Aposentadoria está fora de questão. Ela quer um emprego, pois tem forças para se manter. Sua casa é a estrada e sua vida é construída em meio aos quilômetros rodados.

E é no silêncio da estrada e nas oportunidades que se vê em contato com a natureza que Fern recupera as energias. Nestes pontos, o filme ganha enorme beleza, graças a direção de Zhao e a fotografia de Joshua James Richards.

Já os amigos e contatos que faz na estrada funcionam como uma espécie de mentores para Fern. Boa parte dos personagens com quem McDormand contracena no filme são nômades reais. Pessoas como Bob, Linda May e Swankie estão no filme para contarem suas histórias. Seus depoimentos fazem “Nomadland” ganhar uma aura de documentário deste estilo de vida e dão muita personalidade ao filme.

E não podemos deixar de citar o belo trabalho de McDormand. Ela, que durante as filmagens passou por diferentes estágios da vida nômade, desde ter trabalhado de fato em alguns dos empregos temporários, a dirigir e dormir num trailer pelos Estados Unidos, conseguiu captar, ou melhor, transpor para a tela com bastante veracidade a vida do nômade moderno.

McDormand, Zhao e os nômades reais formam a trinca que faz com que “Nomadland” seja um grande filme.

Cotação da Corneta: nota 9.

Indicações ao Oscar: Filme, atriz (Frances McDormand), direção (Chloé Zhao), roteiro adaptado, edição, fotografia.



O SnyderCut é a melhor versão da Liga da Justiça. E justifica sua existência

Snyder conseguiu fazer sua versão do filme

Zack Snyder
 não é um visionário como seus fãs gostam de dizer. E até o marketing de seu novo/velho filme tentou vender. Mas tinha uma ideia e um plano bem desenhado sobre o que queria fazer com os heróis da Liga da Justiça quando assumiu a direção do “Homem de Aço” (2013). Contratempos e tragédias já fartamente relatados na imprensa o tiraram da direção do “Liga da Justiça”, que foi finalizado por Joss Whedon e muito criticado na ocasião do seu lançamento em 2017. E curiosamente um filme que parece que vai piorando conforme o tempo vai passando.

Logo depois foi iniciada uma campanha na internet para que fosse lançado o Snydercut, a versão idealizada pelo diretor. Quatro anos depois, o que era meme virou realidade. E uma longa, por vezes cansativa, realidade de quatro horas de duração.

SnyderCut da “Liga da Justiça” evidência três coisas:

  1. O quão a versão de Joss Whedon é ruim. Uma verdadeira colcha de retalhos e uma versão pálida do que o filme realmente prometia. Claro que aqui o estúdio também tem culpa. Mas como diretor, acaba que Whedon tem que absorver a maior parte das críticas. Afinal, se fosse o inverso ele estaria colhendo os louros da vitória.
  2. O quanto está trilogia sempre foi sobre o Superman (Henry Cavill) e em torno dele.
  3. Como o protagonismo do Cyborg (Ray Fisher) foi apagado inexplicavelmente na versão do Whedon.

Começando pelo fim, o Cyborg é a alma do filme. Tudo gira em torno dele desde a ação para a ressurreição do Superman até o ato final para que os heróis derrotem o Steppenwolf e, consequentemente, impeçam o Darkseid de voltar a invadir aTerra.

Sua história, seus dramas, sua motivação são muito mais bem desenvolvidos no filme de Snyder. O suficiente para entendermos a sua importância. E não é apenas porque o filme tem quatro horas. A história do Cyborg foi lamentavelmente reduzida a quase nada na versão de Whedon. E se o filme de 2017 era difícil de compreender, muito se devia a trama tacanha envolvendo o Cyborg, as caixas maternas e o Steppenwolf, o que agora está muito mais bem explicado.

No seu filme, Snyder mostra que na sua concepção de filme a ação tinha que passar pelo Cyborg. E que cada herói ali tem a sua função importante. Cyborg é a alma, o Batman é a liderança, o homem em meio a deuses e que precisa se desdobrar para ser útil e reparar um erro do passado. E como a versão do Ben Affleck ganhou cor e relevância no SnyderCut.

Já o Superman é a esperança. Ele é o grande herói da Terra e é sobre ele que esta trilogia girou mostrando a ascensão em “Homem de aço”, a queda em “Batman vs Superman” (2016) e o reerguimento na “Liga da Justiça”. A segunda chance que o Superman ganha para ser melhor para ser o grande campeão da Terra e temido por todas as ameaças planetárias. Tudo é sobre ele. Até a própria formação da Liga da Justiça.

Junto deles ainda temos o Aquaman (Jason Momoa) e a Mulher-Maravilha (Gal Gadot) como bons coadjuvantes e um Flash (Ezra Miller) que nem Snyder conseguiu corrigir. Uma versão boba e adolescente para servir de alívio cômico em todo o drama. O Flash merecia mais do que isso.

Se a história do SnyderCut é melhor, por outro lado, o filme por vezes não justifica a sua longa duração. Tem algumas cenas bem arrastadas que poderiam ter sido melhor cortadas sem prejudicar a história. Ou talvez até funcionasse melhor como uma minissérie, já que o próprio filme é dividido em seis capítulos. E neste caso poderia até ter uma duração maior. Todo aquele final com o sonho do Batman mostrando o Coringa (Jared Leto) também pareceu bastante gratuito e desnecessário.

O fetiche do Snyder com a câmera lenta também poderia ser mais bem controlado. Mas este é um estilo do diretor que, gostando ou não, precisamos entender.

No fim, foi bom ver as ideias do diretor postas em prática, bem como as indicações de futuro que ele deixa em aberto (e que provavelmente nunca veremos no cinema). O “Liga da Justiça” de Snyder justifica a sua existência na medida em que é um filme melhor e mais bem conectado aos filmes anteriores desta saga. Acho que já podemos esquecer e colocar na gaveta da história a versão de 2017.

Cotação da Corneta: nota 7.



terça-feira, 23 de março de 2021

“Cherry” não traz a independência dos irmãos Russo sobre a Marvel

Tom Holland se esforça num filme que deixa a desejar
Os irmãos Anthony e Joe Russo têm uma carreira bem consolidada quando se trata de seus trabalhos feitos para a Marvel. Eles foram responsáveis por quatro dos 23 filmes da Saga do Infinito, incluindo os dois trabalhos que encerraram a história: os filmes “Vingadores: Guerra Infinita” (2018) e “Vingadores: Ultimato” (2019).

Faltava a eles, no entanto, mostrar que de fato podem ser bons diretores fora do chapéu da Marvel e fora do gênero “filme de super-herói”.

“Cherry — Inocência perdida” (Cherry, no original) não responde exatamente à está pergunta. Mas é uma carta de intenções. Com promessas, acertos e defeitos. Fica no meio do caminho em muitas propostas, parece confuso em outras, abandona algumas ideias no decorrer do filme e mostra que poderia ter sido mais bem trabalhado em outras questões. Sendo assim, não traz um pleno atestado de independência dos irmãos Russo sobre o estúdio pelo qual eles fizeram seus principais filmes. Lembremos que além dos dois “Vingadores”, eles foram responsáveis por outros dois bons filmes da Marvel: “Capitão América 2: o soldado invernal” (2014) e “Capitão América: Guerra Civil” (2016).

“Cherry” conta a história de um soldado do exército sem nome (Tom Holland) que sofre de transtorno de estresse pós-traumático. De volta aos Estados Unidos depois de dois anos no Iraque, ele torna-se um ladrão de bancos para bancar o vício em heroína dele e de sua mulher, Emily (Ciara Bravo, extremamente apática no filme).

A história resumida no parágrafo anterior poderia ser o palco perfeito para uma longa jornada de dor e, quem sabe, redenção ao fim de duas horas. Nada muito diferente do que já vimos em outros filmes que retratam o vício em drogas (“Réquiem para um sonho”, de 2000, ou “Querido Menino”, de 2018) ou transtorno de estresse pós-traumático (“Sniper americano”, de 2014, ou “Rambo: programado para matar”, de 1982). E de certa forma os irmãos Russo caem um pouco nesta armadilha.

Na hora final, “Cherry” cai num círculo de fetichização do uso de drogas, expondo de todas as formas o seu uso. Em algumas vezes é inserida até uma trilha sonora para trazer um grau de drama cercado de beleza aos momentos em que Cherry ou Emily estão se injetando sem sequer esboçar uma tentativa de sair daquele círculo vicioso.

O problema é que “Cherry” nunca consegue sair do mesmo tom. Ainda que seus personagens continuem escalando no horror entre uma decisão errada no relacionamento, a guerra, as drogas e os assaltos, não sentimos o filme igualmente escalando junto com eles. O filme tem aquele tom de quem observa quase com um olhar sociológico ou antropológico a decadência de mais um americano que sobreviveu ao Iraque. Tudo isso torna “Cherry” um trabalho frio, raso e um pouco sem alma. Mas reconheço que esta é uma percepção muito pessoal.

É evidente ao longo do filme o esforço de Tom Holland na composição do seu personagem. Mais conhecido pelo seu papel como “Homem-Aranha”, Holland também tem se esforçado fora do chapéu da Marvel/Sony com papéis diferentes e que desafiem o seu talento. “Cherry” é assim. Da mesma forma é o seu Arvin em “O diabo de cada dia” (2020). Particularmente acho que Holland está melhor neste filme do que naquele. Ainda que reconheça que diante do roteiro apresentado, o trabalho de Holland seja ok.

“Cherry”, porém, tem outros problemas em sua linguagem. Na primeira metade do filme, ele adota uma narração cansativa feita pelo seu protagonista, mas que desaparece depois. Nesta fase, Holland também exercita a quebra da quarta parede, mas essa postura é posteriormente abandonada. Ficam como questões: O que se propunha fazer com isso? Porque é abandonado depois? A única conclusão que pude ter é que pouco se acrescenta tanto o falatório narrativo quanto o personagem dirigir-se ao espectador para o contexto do filme.

Como primeiro exercício dos Russo fora da Marvel, “Cherry” deixa pontos positivos e negativos. Mas precisava definir melhor o que se queria focar ao adaptar a história do veterano do exército Nico Walker. Por enquanto, o ponto alto dos Russo no cinema continua sendo os filmes da Marvel. O que não deixa de ser um excelente ponto alto.

Cotação da Corneta: nota 5,5.



segunda-feira, 8 de março de 2021

“WandaVision” e o ciclo do luto

Wanda teve que superar muitas perdas para seguir em frente

Wanda Maximoff nunca foi escada para ninguém. Uma das heroínas mais poderosas do Universo Marvel, a personagem interpretado no cinema (e agora na TV/streaming) por Elisabeth Olsen sempre teve luz e arcos narrativos próprios nas histórias em quadrinhos. Mas por oito semanas a internet, esta entidade composta por inúmeros seres humanos com diferentes graus de impaciência teimou em encontrar um plot maior e grandioso. Maior do que a Wanda. Acontece que “WandaVision”, que teve o seu nono e derradeiro episódio indo ao ar na sexta-feira passada sempre foi sobre ela: Wanda Maximoff. E que jornada a Feiticeira Escarlate teve.

(Atenção para potenciais spoilers a partir de agora)

Podemos tirar muitas interpretações para a nova produção do Universo Cinematográfico da Marvel. Há ótimos textos tratando de empoderamento feminino (aqui) e aspectos mais técnico/narrativos (aqui) espalhados pela internet.

Sem entrar em um, e resvalando um pouco em outro, quero abordar o que, para mim, foi o mais interessante na série: a discussão sobre o ciclo do luto dentro de uma obra enraizada num projeto de cultura de massa e num universo tão popular como o da Marvel.

Usando a sua tradicional roupagem pop, ou a chamada “fórmula Marvel”, “WandaVision” usou a história de dor de Wanda Maximoff para tratar de temas importantes dentro da psicologia e psicanálise: o luto.

Deixando os quadrinhos um pouco de lado, a história de Wanda no Universo Cinematográfico da Marvel é de muita dor. Perdeu os pais na infância em Sokovia, o irmão assassinado em “Vingadores: Era de Ultron” (2015) e o seu grande amor, o Visão, morto em “Vingadores: Guerra Infinita” (2018). Com tantas perdas. Wanda tornou-se uma personagem absolutamente quebrada e sofrendo de um profundo sentimento de pesar, de tristeza.

Em “Luto e Melancolia” (1917), o psicanalista Sigmund Freud, descreve o luto como a “reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal, etc..” No estado de luto, “é o mundo que se tornou pobre e vazio”.

É nesse estado que encontramos Wanda em boa parte da série. Porém, dotada de poderes que alteram a probabilidade, Wanda resolve preencher a sua vida com uma grande história de negação, isolando e escravizando uma cidade inteira do subúrbio de Nova Jersey em torno da sonhada vida perfeita que ela tanto desejou ter ao lado do Visão (Paul Bettany) e que lhe foi tirada pelo vilão Thanos em “Guerra Infinita”. Na cabeça de Wanda, negaram-lhe a felicidade. E ela sequer teve o direito de enterrar o corpo de seu amado. Assim, ela se rebela criando a sua própria realidade confortável num hexágono em torno da cidade de Westview, e que foi apelidado de “hex” pela doutora Darcy (Kat Dennings).

E aqui temos que puxar uma outra psicanalista para a história. Trata-se da suíça Elisabeth Kübler-Ross. Foi ela quem identificou os cinco estágios do luto, ou da perspectiva de morte, que viraram base para toda a estrutura narrativa da série. As cinco fases são as seguintes:

Negação — O indivíduo nega o problema, busca maneiras de não entrar em contato com aquela realidade e a pessoa não quer falar sobre o assunto.

Raiva — Aqui o indivíduo se revolta com o mundo, sente-se injustiçado e não se conforma com o que está passando.

Barganha — É o início do ponto de virada, quando a pessoa quer sair daquela situação, começa a entender o problema e faz promessas de melhora a si mesma.

Depressão — É o estágio mais profundo, quando o indivíduo se isola, retira-se para o seu mundo interno e, por vezes, é tomado por melancolia, aém de sentir-se impotente diante da situação difícil em que vive.

Aceitação — O indivíduo finalmente enxerga a realidade como ela realmente é. E está pronto para enfrentar o problema.

Nem todas as pessoas passam por todos os estágios determinado por Kübler-Ross. Mas é interessante notar que, voltando a “WandaVision”, a série foi estruturada para que Wanda passasse por todos eles, mesmo que fosse momentaneamente.

Se tivéssemos que separar os estágios por episódios, embora correndo o risco de ficar excessivamente esquemático, o que a série nunca demonstrou ser, teríamos a seguinte sequência:

Episódios de 1 a 3 — O estágio de negação. Aqui vemos Wanda mergulhada profundamente em sua sitcom, que reflete os seus shows americanos favoritos, produzidos entre os anos 50 e 70. Sitcons estas que ela acompanhava em DVDs em sua infância pobre em Sokovia. Enquanto passeamos por referências a “Dick van Dyke Show” (1961–66) e “Jeannie é um gênio” (1965–70), vemos uma Wanda esforçando-se para manter aquela realidade paralela intacta, apesar das investidas de Mônica Rambeau (Teyonah Parris) e da própria SWORD.

Episódios 3 a 5 — O estágio da raiva. A partir do final do terceiro episódio, quando Wanda expulsa Mônica do Hex, e até o quinto, quando ela enfrenta a SWORD, temos a raiva. Wanda odeia a tudo e a todos é até se vê como uma vilã, quando questionada sobre os males que estava cometendo. Afinal, ela só quer viver isolada de todo o resto em sua vida pseudo-perfeita.

Episódios 5 e 6 — Aqui temos a barganha. Já no final do episódio 5, Wanda começa a se questiona sobre tudo aquilo em que está acontecendo. É neste episódio que surge Pietro (Evan Peters), mas não o seu irmão assassinado em “Era de Ultron”, mas outra pessoa com o mesmo nome e mesmos poderes do seu irmão morto. Porém, duas coisas não batem: Pietro nunca esteve “escalado” por ela para a sua sitcom, sitcom esta que começa a apresentar “falhas de roteiro”, com gags estranhas e comentários unortodoxos de personagens como Agnes (Kathryn Han) e do próprio Visão.

Episódios 7 e 8 — Estágio da depressão. Especialmente no episódio 8, quando temos referências a “Modern Family” (2009–2020) e “The Office” (2005–2013), vemos Wanda mergulhada profundamente na sua dor. Sem querer sair da cama e querendo ficar sozinha (ela nem se incomoda em deixar os filhos com Agnes), sequer procura pelo Visão e sente-se impotente e triste enquanto vê o seu outrora mundo perfeito sofrer profundas falhas, mudando de eras a cada instante. E aqui que vemos uma das frases mais marcantes da série sobre o luto, quando o Visão se dirige a Wanda afirmando: “O que é o luto se não o amor que perdura”.

Episódio 9 — O estágio final, a aceitação. Depois de ser desafiada por Agatha Harkness, que se revela como a vilã da série, aqui Wanda compreende e aceita a sua realidade. Ela não pode viver aquele conto de fadas enquanto mantém uma cidade inteira refém da sua dor, e sofrendo profundamente junto com ela. Wanda completa o seu ciclo, reagindo a dor, aceitando a morte do Visão e que não terá de fato filhos com ele e precisa buscar um novo propósito na sua vida. É neste momento que ela vê amplificar os seus poderes e agora precisará entendê-los, dando-lhe um novo propósito enquanto bruxa e uma das bruxas mais poderosas da história dentro daquele universo. Mas não sem antes se despedir do Visão dirigindo-se a ela com as seguintes palavras: “Você é minha tristeza e minha esperança. Mas principalmente você é meu amor”.

E assim Wanda entendeu que precisava seguir em frente e, ao mesmo tempo, administrar a dor e a saudade da vida que poderia ter tido ao lado do Visão. Ela sente a culpa por ter escravizado toda uma cidade em torno da sua dor, mas encontra o conforto nas palavras de Mônica Rambeau. E quantos talvez não tivessem feito o mesmo que ela se tivessem os mesmos poderes?

Pensando no futuro, o final da série promete trazer novos desdobramentos dentro do Universo Cinematográfico transmedia da Marvel. Agora temos um Visão branco que não tem sentimentos como o Visão original, mas recuperou toda a base de dados do que viveu desde o tempo em que era apenas a voz de Jarvis. Temos uma Wanda mais poderosa, tentando entender os seus poderes de Feiticeira Escarlate, e que ainda deve lidar com as consequências de seus atos em Westview. Algo que devemos ver em “Doutor Estranho e o Multiverso da Loucura”, previsto para ser lançado em 2022.

E ainda temo o futuro de Mônica Rambeau e de Agatha Harkness. Mônica deve ser levada para a base espacial onde está Nick Fury, os Skrulls e, muito provavelmente sua história e seus poderes serão melhor desenvolvidos em “Capitã Marvel 2” ou na série “Invasão Secreta”. O filme está previsto para 2022. A série ainda não tem data definida.

Já Agatha ainda deve voltar a aparecer em torno de Wanda, pois ela foi um pouco vilã e mentora na minissérie e, invariavelmente, Wanda precisará contar com a experiência da bruxa. Principalmente depois dos acontecimentos da cena final pós-créditos de “WandaVision”.

Assim, a Marvel vai desenhando o início de uma segunda saga de fôlego depois do sucesso da Saga do Infinito (2008–2019). Há pelo menos 13 filmes programados para serem lançados até 2023, além de 11 séries. E todas elas devem dialogar de alguma forma nesta nova saga que ainda não tem nome.

Não faltará, portanto, entretenimento para se ver nos próximos anos. E será ainda melhor se todos — ou ao menos a maioria — tiverem a mesma qualidade de “WandaVision”.

Cotação da Corneta: nota 8.

sexta-feira, 5 de março de 2021

“Pelé”: O Rei, a ditadura militar e o Brasil que vive em círculos

Pelé ganhou um documentário incompleto
Maior jogador de futebol de todos os tempos, Edson Arantes do Nascimento, mundialmente conhecido como Pelé, já teve a sua vida contada e recontada em livros, reportagens e pelo menos dois filmes: “Pelé Eterno” (2004) e “Pelé: o nascimento de uma lenda” (2016). Então, o que mais um documentário poderia acrescentar ao vasto material já produzido sobre o chamado Rei do Futebol? Este era o maior desafio de “Pelé”, documentário dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, que está disponível na Netflix.

Para um conhecedor da história de Pelé, o documentário não traz quase nada de novo. Mas isso não faz o filme ser menos delicioso de assistir. Em quase duas horas, Nicholas e Tryhorn partem de um recorte das quatro Copas do Mundo que o Rei jogou (1958–62–66–70) para condensar a história do jogador de futebol e dar pinceladas sobre o homem por trás do mito. A maior riqueza está no equilíbrio dos depoimentos dos colegas de Santos e de seleção brasileira, e de alguns jornalistas que acompanharam a sua carreira se alternando com as imagens de Pelé em campo.

O pouco tempo, porém, faz com que o documentário não saia do superficial sobre Pelé. De fato, Pelé é gigante demais para caber em 1h48min e o filme dos dois diretores funciona mais como aqueles discos de “Greatest Hits” das grandes bandas da história da música. Tem-se uma noção sobre a sua produção, mas sempre fica faltando algo e não se aprofunda em nada.

E neste ponto não tem como não lembrar de “The Last Dance”, série documental sobre Michael Jordan e o Chicago Bulls, que ganhou dez episódios feitos pela ESPN e que também foram transmitidos pela Netflix. Pelé merecia algo semelhante até para que pudesse ser melhor aprofundada uma série de questões somente levantadas no filme.

Dentre todas elas, destaca-se a relação de Pelé com a ditadura militar e sua falta de posicionamento contra um regime cruel que torturou 20 mil pessoas e deixou pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas ao longo de 21 anos, segundo relatório da Human Rights Watch. O que vemos é um Pelé que não era necessariamente alienado aos acontecimentos do Brasil durante os dez anos finais de sua carreira, mas que ao mesmo tempo não queria se envolver. Incomoda vê-lo dizer secamente que para ele não havia mudado nada com ou sem a ditadura, enquanto todos sabemos que por trás dos muros de sua casa e da Vila Belmiro, muita coisa havia mudado, e para pior, para muita gente depois de um período quase mágico que o Brasil havia vivido até 1964, como bem descreveram os jornalistas Juca Kfouri e José Trajano em suas entrevistas para o documentário.

O filme resgata entrevistas antigas de Pelé afirmando não querer se meter com política e dizer não entender de política. Curiosamente, décadas depois, Pelé viria a se tornar o primeiro ministro dos Esportes, entre 1995 e 1998, durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Contudo, o filme também confirma a pressão feita pelo ditador Emilio Garrastazu Médici para que o Rei jogasse a Copa de 1970. O próprio Pelé lembra no filme que recebeu diversos “convites” de políticos para voltar a defender a seleção, que havia abandonado após o fracasso da Copa de 1966, na Inglaterra. Por trás de tudo estava o interesse do governo em usar o futebol a seu favor e para alavancar a sua popularidade em um momento em que o Brasil atravessava o período mais cruel da ditadura após a assinatura do Ato Institucional número 5, em 1968. O que o filme não mostra é que o próprio Pelé foi investigado pela ditadura por suspeita de simpatia com a esquerda brasileira após receber um manifesto pedindo a liberação de presos políticos e se recusou a jogar o Mundial de 1974 porque a ditadura estaria “prejudicando demais o povo”, nas suas próprias palavras.

Por mais que fossem palavras verdadeiras, o que fica mais evidente é que a decisão de jogar em 1970 e não jogar em 1974 partiu única e exclusivamente de Pelé e seus interesses e desafios esportivos. A política não era uma questão para ele. Após 1966, o Rei havia declarado que não defenderia mais a seleção depois de duas Copas em que ele perdeu a chance de disputar por completo por causa de lesões. Pelé sentia-se azarado com Copas do Mundo. Voltar a jogar em 70, aos 29 anos, o que na época significava que ele estava mais perto do fim da carreira do que no futebol praticado hoje em dia, e em meio às desconfianças generalizadas sobre o seu estado físico até do então treinador João Saldanha — depois substituído por Zagallo por pressão da ditadura militar — representava uma espécie de chance de redenção.

E foi. O Mundial de 70 foi de Pelé, onde ele foi o jogador mais decisivo em um dos maiores times já montados em todos os tempos. Foi uma Copa com tanta cara de Pelé, que a sensação que o documentário deixa é que nem a ditadura conseguiu faturar com a vitória do Brasil.

O que não exime Pelé de não ter se posicionado mais fortemente contra a ditadura. Por outro lado, uma análise feita por Juca Kfouri ao mencionar a constante comparação dele com o boxeador Muhammadi Ali, nos leva, no mínimo, a uma reflexão. Ao contrário de Ali, Pelé poderia ser torturado e até morto naquele tempo. É claro que o boxeador foi preso e teve a sua carreira prejudicada por boicotes do governo americano por ter se recusado a lutar na Guerra do Vietnã (1955–1975), mas Kfouri lembra que o Brasil vivia uma ditadura. E numa ditadura, qualquer um, até mesmo o jogador mais famoso do planeta, pode ser preso e torturado. Não se trata aqui de querer passar pano para Pelé, mas entender o contexto. Ele poderia ter feito mais? Talvez sim. E são desconfortáveis as imagens dos encontros de Pelé com Médici. Mas não é uma decisão fácil de se tomar no calor dos acontecimentos e sabendo que não apenas você, mas a sua família também corre risco de vida por qualquer atitude mais combativa que você tomar. Pelé optou por permanecer neutro, e vivendo com as consequências do que fez e do que não fez.

UM BRASIL QUE SE REPETE

Triste é olhar para o documentário de Pelé é ver um Brasil que vive em círculos nas suas alegrias e mazelas. Se o período entre o final da década de 50 e o início da década de 60, foi, como descrito, um dos mais felizes da história recente do país, se sucedeu a ele o início de uma ditadura que atrasou o país em muito mais do que os 50 anos de avanço prometidos pelo governo Juscelino Kubitschek em seu Plano de Metas.

Se é possível traçar um paralelo disso, podemos dizer que houve um período que, se não foi de genuína ou, talvez, romântica, felicidade, daquele tempo em que o Brasil era bicampeão do mundo e tinha inventado a Bossa Nova, houve uma esperança de dias melhores entre o controle da inflação galopante nos governos Itamar Franco (1992–94) e Fernando Henrique Cardoso (1995–2003) e a melhoria de vida de uma grande parcela da população brasileira durante o governo Lula (2003–2011). A isto se sucedeu um período de trevas com a eleição de Jair Bolsonaro como presidente em 2018. Tal como o que foi usado no golpe de 64, o chamado perigo de o país virar comunista era uma das plataformas do presidente eleito, junto com uma usina de fake news, acionada até hoje em momentos de crise do governo. E assim como em 64, soa ridícula e irreal esta ameaça de comunismo até hoje.

Tal como Médici, Bolsonaro usa o futebol para tentar se promover e já vestiu uma invejável coleção de camisas de clubes, embora se declare palmeirense. Assim como o ditador, e talvez até pior do que ele, isso não adianta em nada em sua popularidade. Traz é rejeição de muitos torcedores.

Fora da política, e de volta aos gramados, os ciclos se mantém. Já em 1970, João Saldanha falava em jogar de forma moderna como os europeus, um discurso que volta e meia vemos se repetir. É curiosa também uma entrevista resgatada de Pelé às vésperas da Copa de 1966, afirmando que o futebol já não era mais tão bonito e havia se tornado mais físico. Outro discurso que vemos se repetir de tempos em tempos na imprensa esportiva, quando dentro de campo o próprio futebol se renova em ciclos em que times mais reativos e defensivos e equipes mais ofensivas e que praticam um jogo mais plástico se revezam ditando a moda e as conquistas. E o próprio jogo mudou muito ao longo das décadas.

Estes são apenas alguns paralelos que nos fazem aproximar o tempo em que Pelé era jogador do tempo atual.

SANTOS COMO COADJUVANTE

Com a opção pelo recorte feito pela Copa do Mundo, falta ao documentário se aprofundar em outras questões que poderiam ter sido interessantes. O próprio Santos é coadjuvante no filme, embora seja fundamental na vida de Pelé. Sequer são mostradas as conquistas da Libertadores e o que Pelé fez em campo nestes títulos. Sem contar as inúmeras excursões pelo mundo com o Santos exibindo a sua arte.

Tudo é muito discreto, mostrado muito rapidamente tanto em imagens de jogos quanto em entrevistas. Percebe-se que foi uma escolha para que fosse focado no grande evento Copa e o que aconteceu na vida de Pelé entre estes torneios. Mas não deixa de ser uma pena, pois certamente há uma geração de jovens que conhecem pouco de Pelé e um documentário na Netflix aumentaria o alcance do Rei a muitos que não sabem o quão mágico, único e ainda incomparável Pelé foi dentro do campo. Neste ponto, vale a pena complementar este filme com outro documentário, “Pelé eterno”, de Aníbal Massaini Neto.

O mesmo se pode dizer pela falta de aprofundamento em sua vida pessoal. Sabe-se muito pouco no documentário sobre o Edson por trás da figura do Pelé. Há apenas uma passagem sobre o seu primeiro casamento e as dificuldades em mantê-lo em meio aos muitos compromissos profissionais e assédios de mulheres ao maior jogador do mundo, mas não se fala do que aconteceu depois, dos demais relacionamentos de Pelé, dos filhos. Ficou uma lacuna por preencher.

Mas nada disso, diminui o quão fascinante é a vida de Pelé e, principalmente, o que ele fez dentro de campo. Dentro de campo, por mais que tentem, o Rei permanece inigualável. E em meio a revisionismos tacanhos, é importante que o documentário termine com uma informação fundamental: Pelé marcou 1.283 gols em 1.367 jogos. Um recorde que muito dificilmente algum outro jogador um dia conseguirá bater.

Cotação da Corneta: nota 7,5.