sábado, 25 de janeiro de 2020

Em seu filme mais palatável, Malick desvela um herói austríaco

Fani e Franz em seus momentos finais antes da prisão
Franz Jägerstätter é um personagem pouco conhecido, mas pode-se dizer que é uma espécie de herói da Segunda Guerra Mundial. Ou melhor, uma consciência que sublimou a “histeria coletiva” do inferno nazista para dizer não enquanto todo o mundo germânico dizia sim para Adolf Hitler e os nazistas. Considerado um mártir e beatificado pelo Papa Bento XVI em 2007, Jägerstätter já teve a sua história contada em livro e documentário e agora ganha uma nova versão no cinema pelas mãos do diretor Terrence Malick.

“Uma vida oculta” (“A hidden life”, no original em inglês) talvez seja o filme mais palatável do diretor americano conhecido por obras como “Além da linha vermelha” (1998), o extremamente simbólico “A árvore da vida” (2011), além de “Amor pleno” (2012) e “De canção em canção” (2017).

É claro que os enquadramentos típicos de Malick, o uso da trilha sonora e a assinatura do diretor continuam muito fortes, mas ao contrário de “Árvore da vida” e “Amor pleno”, por exemplo, Malick opta por contar uma história praticamente linear e enfatizada no estoicismo de Jägerstätter (vivido no filme por August Diehl).

Ajudou também ao cinema de Malick, o fato de o filme ser baseado no livro “Franz Jägerstätter: Letters and Writings from prison”. Boa parte das três horas de filme é preenchida pela troca de correspondências entre Franz e a mulher Fani (Valerie Pachner), o que se torna um prato cheio para o diretor exercitar um cinema baseado em imagens e impressões deixando apenas a música ou a narração das cartas ditando os acontecimentos ao fundo.

No resto do filme, Malick opta por refletir sobre como ser um arauto de resistência numa comunidade, um país, uma região tomada pelo nazismo. Jägerstätter teve a sua vida e a de sua família destruída simplesmente porque percebeu o mal que Hitler representava, porque viu o horror causado pela guerra e questionou se talvez os alemães é que não estivessem do lado errado.

Como um fazendeiro de Radegund, cidade do interior austríaco, no alto de suas montanhas, enxergou algo que nem os maiores intelectuais alemães conseguiram? É algo que Malick deixa para o espectador concluir, embora ele acabe por justificar a opção de Jägerstätter através da fé. O senso de razão e de moral e a certeza do uso do livre-arbítrio e do que aprendeu na Igreja é que levam o agricultor a negar obediência ao ditador nazista.

Enquanto isso, Jägerstätter vê todo o ambiente ao seu redor ser contaminado pela onda de ódio. A começar pelos camponeses da vila em que vive, que começam a adotar o discurso semelhante ao da liderança nazista. Dentro daquele microcosmo, Malick faz um exercício de como o nazismo se espalhou como uma doença e se entranhou na população a partir de uma série de frustrações daquele povo no período entre guerras. E no meio de tudo, estava Jägerstätter, a ovelha negra da comunidade que ousou ter a consciência e, mais do que isso, o dever de pensar com a própria cabeça e não seguir uma corrente que se mostrava absolutamente equivocada desde o início. De seguir a vida a partir de parâmetros éticos e morais e não empurrado pela massa e a máquina de propaganda nazista.

As convicções trouxeram miséria e dor para a família Jägerstätter, mas, como o pai de Fani diz num dado momento do filme: “É melhor sofrer injustiça do que cometê-la”. Jägerstätter morreu para ter uma consciência limpa. A história comprovou o quanto ele estava certo.

Cotação da Corneta: Nota 9.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Em Lisboa com Madonna e a turnê 'Madame X'

Madonna no terceiro ato/Reprodução Instagram
Madonna nunca foi daquelas artistas que se sentam na usina de hits e fazem um show repetitivo para os fãs. Pelo contrário, a cantora sempre se impôs desafios em quase 40 anos de uma carreira camaleônica tanto no visual quanto nas experiências em sua sonoridade. E é a artista que se impõe desafios que vemos na turnê do seu novo álbum, “Madame X” (2019).

Iniciando por Lisboa uma pequena turnê europeia que ainda passará por Londres e Paris, Madonna trouxe à cidade que foi por algum tempo a sua casa porque um de seus filhos joga na base do Benfica (“Nunca pensei que iria me tornar uma soccer mon”), um pouco das influências do que a capital portuguesa lhe ofereceu aliada à força do seu novo disco e alguns clássicos de sua carreira.

Para isso, ela apostou em algo que raramente se vê um artista pop que atinge uma certa grandeza fazer. Um show intimista num lugar pequeno (em Lisboa, o Coliseu) e com características muito particulares. A frente do palco, cadeiras para os fãs ficarem sentados, o que praticamente não aconteceu. Nos bolsos e bolsas, celulares lacrados com bolsinhas impossíveis de abrir e que só são retiradas pelos seguranças ao fim do espetáculo. O objetivo de Madonna é fazer o público viver a experiência sem perder tempo filmando e fotografando. Numa era de superexposição e popularidade medida por likes, a cantora prefere ver a satisfação nos olhos de quem a observa e não nos números das redes sociais. E não deixa de brincar com isso.

- Eu também olho para vocês e fico pensando: por que não estão tirando fotos minhas? Talvez eu também estivesse ficando viciada – disse ela ao explicar a importância deste contato olho no olho com os fãs.

De fato, a proximidade do palco e o espaço infinitamente menor do que os estádios que ela se apresentou em todas as suas últimas turnês, trouxe uma inédita sensação de intimidade rara com um artista do porte de Madonna. Isso a deixou bem à vontade também para interagir e provocar os fãs, contar histórias da vida lisboeta, fazer piadas e até bater um papo rápido com duas pessoas que tiveram a chance de terem ainda mais proximidade com ela.

Madonna circulou no meio da plateia, sentou em uma das cadeiras para descansar e reclamou constantemente da lesão muscular que lhe causa muitas dores nos membros inferiores e já a fez cancelar sete shows da turnê. Dois deles em Lisboa.

- Madame X está lesionada – disse a cantora, que nunca perdeu o bom-humor ao dizer que o melhor momento do show é quando ela senta.

Mas pode-se dizer que com um espetáculo tão diferente, os fãs ficaram satisfeitos? Depende do que cada um esperava. Se ele for ao concerto de “Madame X” para ver Madonna enfileirando seus sucessos, haverá um certo sentimento de frustração. Principalmente porque o set list é todo baseado no novo álbum (são 11 canções de um disco de 13 faixas) com algumas músicas pinçadas da carreira da cantora para colorirem um pouco mais e servirem ao que o espetáculo propõe. 

Se, por outro lado, o fã da cantora comprar a ideia de um show com muitos elementos teatrais dividido em quatro atos, um prólogo e um epílogo onde Madonna levanta suas conhecidas bandeiras e faz com que as músicas estejam a serviço da ideia de contar uma história encadeada, aí a experiência pode ser mais agradável. 

As ideias de Madame X

Madonna propõe duas ideias diferentes em “Madame X”. Uma delas é um grande manifesto político que passa por críticas ao governo Donald Trump, algo mais forte em “American life”, a quem ela também aproveita para provocar dizendo que o presidente americano têm um pênis pequeno, e pela defesa da liberdade de todos e da força das mulheres e dos gays na sociedade. E não é por acaso que ela vai embora estendendo uma grande bandeira do movimento LGBT+ em “I Rise”. Aqui é a Madonna que se propõe incomodar como está na poesia de James Baldwin citada antes do show: “Artists are here too disturb the peace”.

Durante o show, Madonna ainda revisita seus elementos e brinca com isso. “Vocês conhecem meus clichês”. O sagrado e o profano estão sempre ali presentes, seja com bailarinas vestidas de freiras ou outros rituais encenados no palco. As provocações ganham o seu ponto alto na interpretação de “Like a prayer”, quando o palco exibe cruzes, mas também as backing vocals se postam na escadaria que forma um X com Madonna cantando ao centro. 

A segunda ideia proposta pela cantora é uma viagem por sua experiência portuguesa. Especialmente no terceiro ato. Madonna deixa clara a importância que a música portuguesa e as experiências que viveu morando em Lisboa foram importantes para a construção do álbum “Madame X” e para trazerem um frescor à sua música. E também foram fundamentais para ela sair em turnê.

- Engordei tanto comendo bacalhau que tive que sair em turnê – disse.

Sentada por causa de lesão/Reprodução/Instagram
É neste ponto que o cenário vira uma casa com diversos elementos portugueses (azulejos, escadarias, janelas bem típicas) e ela chama Dino D’Santiago e o guitarrista Gaspar Varela para tocarem com ela. 

Uma particularidade acerca disso, porém, mantém-se misteriosa. O quanto funcionaria este show para outras plateias na parte mais portuguesa do espetáculo. Será que não haveria uma recepção mais fria quando a turnê passar por países menos afeitos ao fado e com culturas tão diferentes? É algo a se analisar. A menos que está parte do show ganhe outras cores e mais mobilidade num set list que em Portugal não teve variações. 

É neste ato que Madonna emenda dois fados intercalados entre suas músicas. “Fado pechincha”, de Isabel de Oliveira, e “Sodade”, de Cesária Évora. A cantora se esforça para interpretar bem em português e tem a simpatia do público, que não faz grandes exigências e entende tudo como uma homenagem. Mas a reação de outras plateias que não estão acostumadas com a música portuguesa pode ser bem mais fria e dispersar um show que exige atenção e tem muitas pausas em suas três horas e meia.
Show este que começa com Madonna fora do palco. O prólogo do espetáculo dura meia hora em que quatro músicos interpretam oito canções apenas de forma instrumental. Entre elas, sucessos com “Secret”, “Who´s that girl”, “Like a virgin” e “Don´t tell me”. O destaque desta parte é a trompetista Jessica Pina, que embala os sucessos da cantora sempre interagindo com os fãs. Fãs estes que se empolgaram muito com “Like a virgin”.

O ponto negativo aqui é a longa espera na transição para o primeiro ato, quando Madonna finalmente dá as caras cantando “God Control”, do álbum “Madame X”. Aqui ela desafia os poderes estabelecidos, a idade e as leis da física durante “Human Nature” e emenda com uma bonita versão à capela de “Express Yourself”.

Neste primeiro ato temos as primeiras expressões interessantes do palco que, embora pequeno, é muito funcional e cheio de entradas e saídas para trazer mobilidade aos bailarinos e à cantora. O palco também é dividido em camadas para que possa ter seu cenário modificado sem que o show sofra grandes interrupções. 

É ainda possível ver com destaque um telão que se amalgama por vezes com Madonna e os bailarinos criando um efeito bem bonito de profundidade e também de fusão que terá o seu ponto alto mais à frente quando a cantora vier a cantar “Frozen”. 

No segundo ato, o destaque é “Vogue”, um dos seus grandes sucessos e cantada numa performance em que no palco surgem várias bailarinas fantasiadas de Madonna. É aqui que também é cantada a já comentada “American Life”.

Daqui vamos para o terceiro ato, quando Madonna deixa o lado político um pouco de lado
para fazer sua homenagem à cultura dos países de língua portuguesa. Traz ao palco as mulheres do batuque para cantar “Batuka”, emenda fados, canta “Crazy”, que tem um refrão em português e dá uma pinçada em “La Isla bonita” que serve de transição para um momento mais latino do show que viria com “Medellin” e recolocaria o espetáculo na rota para o ato final. 

É aqui que percebemos que as canções novas funcionam melhor ao vivo do que no disco e servem bem a proposta do show que se encaminha para o fim com o quarto ato. Aqui
temos uma das interpretações de mais impacto do show. “Frozen”, do álbum “Ray of Light” (1998), uma das mais belas canções de Madonna e interpretada com a cantora se amalgamando com as imagens do telão num efeito muito bonito enquanto a tela mostra a sua filha, Lourdes Maria, se exercitando e fazendo yoga. É um efeito muito bonito e é o momento em que a voz de Madonna soa muito bonita. Aliás, um ponto fundamental deste show é que ao contrário de outras turnês, Madonna canta o tempo todo. Não há playback. 

O espetáculo termina com a já citada “Like a prayer” e o epílogo de “I Rise”, quando Madonna se despede andando no meio da plateia e punho em riste no seu protesto final.

“Madame X” não é um show de prazer fácil. É preciso comprar a sua ideia. E é um espetáculo que se fosse possível seria bom ver pelo menos duas vezes dada a quantidade de detalhes para se prestar atenção no palco. Mas é um show de muito vigor e de uma Madonna que gosta de enfrentar e se impor desafios. Uma Madonna que se recusa a cair na mesmice para oferecer ao seu público um novo olhar sobre a sua obra.


Cotação da corneta: nota 8,5.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Eastwood busca vingança e comete mesmo erro que vitimou Jewell

Olivia Wilde no papel de Kathy Scruggs
Tenho profundo respeito pelo cinema de Clint Eastwood. Acho-o um dos grandes diretores da história de quem poderíamos reunir pelo menos dez filmes incríveis e brilhantes. Mas o Clint que emerge em “O caso Richard Jewell” (“Richard Jewell”, no original) está muito longe de ser o gigante de “Os imperdoáveis” (1992), “Menina de Ouro” (2004) ou “Gran Torino” (2008). O Clint que filma o roteiro de Billy Ray é o que parece buscar uma vingança numa história que, na verdade, foi cheia de erros, com muitos culpados e alguns inocentes. 

Para falar de “O caso Richard Jewell” é preciso contar a história do seu protagonista, vivido de forma bastante convincente pelo ator Paul Walter Hauser. Jewell era um segurança com um passado problemático, mas extremamente dedicado e fiel aos preceitos da lei e profundamente respeitador das forças de segurança americanas. Empregado nos Jogos Olimpicos de Atlanta-96, ele virou um herói da noite para o dia ao descobrir uma bomba durante um show do evento. Sua ação salvou a vida de centenas de pessoas. 

Como o filme mostra, Jewell, porém, foi alvo de uma investigação que é praxe em qualquer atentado terrorista deste tipo. É aí que começa o pesadelo dele e de sua mãe, Bobi (Kathy Bates). E que começam os erros cometidos pela imprensa. 

É inegável que a vida de Jewell foi virada de cabeça para baixo por causa de uma reportagem irresponsável que carregava nas tintas e o acusava de ser um terrorista sem qualquer prova concreta e apenas baseada num passado interpretado de forma simplória pela imprensa é público em geral. Mas se a reportagem do jornal “Atlanta Connection” foi equivocada, Eastwood usa do mesmo artifício em seu filme para escolher a jornalista Kathy Scruggs (Olívia Wilde) como a vilã de tudo. Não há sequer margem para uma interpretação mais acurada dos fatos ou para a exibição de um outro lado. Scruggs é pintada como uma mulher agressiva que faz de tudo por suas histórias. Inclusive transar com uma fonte para conseguir uma boa história. 

Sem que a jornalista pudesse se defender, o filme a joga na parede da mesma forma que Jewell fora jogado há 24 anos. É quando o filme deixa de ser cinema para se colocar mais como uma peça de vingança. E isso não parece ser necessário nem mesmo sequer sob o ponto de vista de licença de dramaturgia. 

Não é difícil encontrar perfis sobre Scruggs na internet. Ainda mais depois que o filme veio à tona. Neles encontramos relatos de uma jornalista extremamente competitiva, difícil de lidar, mas competente pela sua busca por furos e com um enorme grupo de fontes dentro da polícia e de diversos órgãos de segurança. Algumas reportagens e ex-colegas a relatam como uma “groupie” de policiais, mas não num sentido negativo que este termo costuma carregar, e sim por ser uma seguidora de perto do trabalho da polícia. Se o seu perfil dividia opiniões, principalmente por sua personalidade forte que resvalava na arrogância, todos são unânimes em afirmar que Scruggs jamais transou com qualquer fonte para conseguir uma informação. Tinha sim relações com policiais como qualquer um poderia ter quando se convive com um determinado grupo, mas nunca para conseguir vantagens no trabalho. 

Eastwood, pegou estas informações e carregou nas tintas para dar a ela um perfil simplório de “jornalista que se deita com fonte”, quando na vida real ela era muito mais complexa. É claro que ela e o jornal erraram grosseiramente, mas a vida não é feita de heróis e vilões de forma maniqueísta como o filme pinta. 

Rockwell, Bates e Hauser: bom trabalho dos atores
Jewell, porém, teve a sua redenção. Scruggs, que faleceu em setembro de 2011 de overdose, não teve essa chance. Viveu os cinco anos seguintes à sua reportagem assombrada pelo que escrevera e com dificuldades financeiras pelos processos que enfrentou até que encontrou um fim miserável aos 42 anos. Seu destino, inclusive, sequer é mencionado no desfecho do filme. Ao contrário dos de Jewell e sua mãe. 

Isso afeta a experiência do filme? Depende do ponto de vista de cada um. O filme tem seus méritos e talvez seja o melhor desta recente fase de Eastwood de contar a vida do típico homem comum que se torna um herói americano. É superior a “Sully: o herói do Rio Hudson” (2016), e muito melhor do que o fraco “15h17: Trem para Paris” (2018). 

A interpretação de Hauser também não deixa de ser cativante pela sua entrega ao papel quase mimetizando o verdadeiro Jewell. Assim como Sam Rockwell também dá um brilho especial como o advogado do personagem principal. Kathy Bates e Olivia Wilde também estão bem nos seus papéis, o que faz com que o filme seja muito mais interessante pelo trabalho destes quatro atores do que pela história em si. 

Mas Eastwood podia ter feito um filme melhor e não mais um filme. “O caso Richard Jewell” tem suas falhas, tem imprecisões históricas e enfraquece seu roteiro pela própria postura do diretor. Por outro lado, é bom acompanhá-lo e refletir como uma obra ou reportagem pode destruir a vida de alguém e pensar na responsabilidade que se tem na mão quando se divulga algo com tamanhas imprecisões. Isso vale para o que Jewell sofreu, mas também para Scruggs. No fim, o filme mostra-se mais interessante pela lição que Eastwood não queria passar, mas seu erro é a mostra de como ainda é necessário evoluir. 

Indicações ao Oscar: Atriz coadjuvante (Kathy Bates).

Cotação da Corneta: nota 7.