domingo, 19 de fevereiro de 2012

Entre quadrinhos e cavalos

O jovem e seu amado cavalo: argh!
É raro ter no cinema dois filmes do mesmo diretor passando ao mesmo tempo. Ainda mais raro é o diretor cometer tantos equívocos e errar duas vezes com as suas películas fazendo dois trabalhos bem fracos. Essa é a marca que Steven Spielberg conseguiu com “Cavalo de Guerra” e “As aventuras de Tintim”.

Eu não gostei de “Cavalo de Guerra” com três minutos de uma película que é beeeem longa. Aquela imagem de campos verdes com a câmera voando e com cavalos quase virgens cavalgando numa celebração da liberdade enquanto a música de John Williams ecoava forte, bem forte, nas caixas de som como se fazia nos filmes dos anos 40 e 50, me deu náuseas. Embrulhou o estômago mesmo.

E nas 2h30m subsequentes, “Cavalo de Guerra” só comprovou sua ruindade nas atuações, na pieguice, enfim, é o pior filme que o diretor já fez. Peraí, pior filme? Sai do cinema com essa sensação, mas será que era para isso tudo mesmo? Tudo bem, Spielberg fez “E.T.” (1982), mas até o alienígena conseguia ser mais simpático do que o filme dos cavalos.

Com medo de ser traído pela minha mente, fui consultar a Bíblia do cinema. Leia-se o site “Imdb”. Estão ali. Cinquenta filmes como diretor. Entre eles algumas coisas muito ruins como “Guerra dos mundos” (2005), outras que não fedem nem cheiram como “Prenda-me se for capaz” (2002) ou “O Terminal” (2004), filmes que gosto muito como “Munique” (2005), “A.I. Inteligência Artificial” (2001) e “O resgate do Soldado Ryan” (1998) e outros muito bons como “O império do sol” (1987), “A lista de Schindler” (1993) e “Amistad” (1997). É, Spielberg, você já fez coisa muito melhor.

Após uma acurada análise nos filmes dele que já vi pude concluir com segurança: “Cavalo de Guerra” definitivamente é o pior filme do diretor americano de 65 anos. Tudo ali dá errado. Da direção ao roteiro de Lee Hall e Richard Curtis. Sem contar as atuações lamentáveis. A começar pelo protagonista Jeremy Irvine, o jovem Albert Narracott, que desde cedo se apaixona pelo tal cavalo do título.

Depois que o pai resolve comprar o animal fraco só para não se render aos caprichos financeiros do senhor feudal da região, Albert promete domá-lo e fazer arar a terra mesmo fora de época e num terreno muito ruim. Mas milagres acontecem nos filmes de Spielberg. Chove. Chove muito e a dupla que estava sendo ridicularizada pela população local dá a volta por cima mostrando que persistência é uma virtude dos nobres.

Será a primeira tentativa de Spielberg de nos emocionar. A chuva que salva é a mesma que devasta, no entanto. A colheita não pode ser feita e para pagar o aluguel, Ted (Peter Mullan) precisa vender o cavalo que o filho tanto ama.

A primeira guerra mundial se aproxima e o cavalo vai para o exército. Mas com a promessa de Albert de que um dia eles iriam se reencontrar. Assim que o garoto puder se alistar no exército.

O cavalo faz amizade com outros de sua espécie (sim, o cavalo é quase humano), eles se cuidam, passam pelo exército inglês, pelo exército alemão e o tal cavalo tem, digamos, “a guarda” disputada por um inglês e um alemão num momento de bandeira branca em meio as putrefatas trincheiras. É uma das cenas mais patéticas que eu já vi. Passada, aliás, depois de outra cena igualmente patética do cavalo cavalgando desesperadamente para fugir da loucura da guerra, mas acabando preso no arame farpado das trincheiras.

Mas Albert só quer saber de encontrar o seu querido cavalo, cuja imagem ele guarda na carteira com o mesmo amor que os outros soldados guardam lembranças de esposas e namoradas.

No fim, é claro que tudo ficará bem e terminará com uma tomada em outra nauseante cena de pôr do sol. Como alguém não virou para o Spielberg e disse que estava tudo errado ali?

Tintim é simpático, mas o roteiro é confuso
Esse mesmo indivíduo deveria ter sido crítico com “Tintim”. Ao contrário de “Cavalo de Guerra”, “Tintim” não é um desastre, mas também não figuraria na minha lista de 50 animações a serem vistas antes de morrer.

O problema no filme baseado nos quadrinhos do belga Hergé é o roteiro confuso de Steven Moffat, Edgar Wright e Joe Cornish. Talvez não tenha sido uma boa ideia fazer uma película baseada em três histórias de Hergé. Deixou o filme com uma história meio capenga e confusa.

Mas ao contrário de “Cavalo de Guerra”, “Tintim” tem seus bons momentos, com passagens divertidas que não causam asco como no trabalho sobre o cavalo. Diante da concorrência, até poderia ter recebido uma indicação ao Oscar de animação. Afinal, “Kung Fu Panda 2” está lá, meus amigos. Mas a academia não gostou do simpático jornalista e preferiu dar seis indicações ao cavalo e seu dono chorão contra apenas uma técnica para “Tintim”. Uma das indicações ao cavalo, inclusive é para melhor filme. Eu sinceramente não sei onde os velhinhos do Oscar viram tanta qualidade no trabalho de Spielberg.

Indicações ao Oscar de “Cavalo de Guerra”: Melhor filme, direção de arte, fotografia, trilha sonora original, edição de som, mixagem de som

Indicação ao Oscar de “As aventuras de Tintim”: Melhor trilha sonora original.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O "Miss Sunshine" da vez

Clooney e Shailene no paradisíaco Havaí
Volta e meia o Oscar aparece com um filme fofinho, comédia leve e divertida e que tem uma lição positiva no fim concorrendo ao prêmio de melhor filme. Foi assim em 2007 com “Pequena Miss Sunshine” e no ano seguinte com “Juno”. Em 2010, “Amor sem escalas” chegava perto do gênero. Agora é a vez de “Os descendentes”.

Estrelado por George Clooney e passado em belas paisagens do Havaí (que vontade de conhecer o arquipélago), o filme de Alexander Payne recebeu cinco indicações ao Oscar, sendo até mais bem sucedido do que os três filmes citados acima em relação ao número de estatuetas a disputar. Resta saber se a película sairá com algum prêmio entre as indicações.

Se a minha opinião valesse mais do que uma nota de R$ 3, o filme sairia de mãos vazias da festa. Não que “Os descendentes” seja ruim. Mas tem concorrentes melhores.

O filme conta a história do riquinho Matt King. O advogado vivido numa boa por Clooney tem uma esposa que está à beira da morte após um acidente no mar e precisa reconstruir sua relação com as duas filhas, Scottie (Amara Miller) e Alexandra (Shailene Woodley). Ao mesmo tempo, Matt precisa decidir com uma penca de primos que vestem bermuda e camisas floridas a venda de uma área ainda virgem no Havaí que será transformada em hotéis, parques temáticos e tudo aquilo possível que serve para dar dinheiro.

Só que sua filha lhe faz uma revelação. A mãe ali agonizando no hospital não é flor que se cheire e estava dando bola nas costas do marido com um corretor de imóveis. Sim, Payne vende a ideia que Clooney também pode levar bola nas costas.

Essa é a senha para Clooney mostrar os valores de ser bom, praticar o bem e fazer a coisa certa, por mais bizarro que algumas de suas decisões possam parecer. E isso vale tanto para como ele vai lidar com a traição, quanto com a relação com as filhas e a venda do terreno. No meio disso tudo, algumas boas e divertidas cenas, piadas leves e a conclusão de que “Os descendentes” é um filme família.

Clooney está bem no filme? Sim (com sorriso amarelo e sem muita animação nesta afirmação). Mas tem trabalhos melhores. “Um homem misterioso” (2010) é um dos meus favoritos. Também gosto muito de “Conduta de risco” (2007), “Syriana” (2005) e "Boa noite e boa sorte” (2005), de modo que não concordo com o merchandising do filme que diz que é a melhor atuação da carreira dele. E se fosse para comparar com os filmes do Oscar que eu vi, Gary Oldman está melhor em “O espião que sabia demais”.

Mas nenhuma ressalva que eu possa fazer tira de “Os descendentes” a aura de filme fofo da vez. É uma boa diversão e em breve estará passando na TV na sua “Sessão da Tarde”. Tire folga no dia e divirta-se.

Indicações ao Oscar: melhor filme, diretor para Alexander Payne, ator para George Clooney, roteiro adaptado e montagem.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

De profundis. Or not

Pintura de Edvard Munch
- Afinal, qual é o sentido da vida?

A pergunta caiu como uma bomba na mesa do bar em que os quatro amigos se encontravam todo mês. Há relatos de que até os copos de cerveja transpiravam de tensão. Uma licença poética que ignorava o calor senegalês que fazia no Rio de Janeiro.

- Eu falo sério. O que faz, eu, você ou ele levantarmos diariamente cedo, encararmos engarrafamentos monstruosos para trabalhar feito cornos. Todo dia sempre igual. De segunda a sexta. Sem falar alguns fins de semana e feriados. Para que fazemos isso tudo? Por que fazemos isso tudo? Foi só para isso que aquele macaco lá atrás resolveu começar a andar, desenvolver o raciocínio e botar para funcionar o seu telencéfalo altamente desenvolvido e a porra do polegar opositor?

João Luiz era o filósofo da turma. Formado em História, cineasta frustrado, escritor com bloqueios que o deixavam ansioso, achando que nunca mais conseguiria fazer algo decente diante do computador, era um professor dedicado de uma faculdade particular. Querido pelos alunos e pelos colegas, parecia pronto a mudar o mundo com suas ideias a cada vez que atravessava a rua.

Era um iconoclasta. E se achava um fracassado por mais que tivesse sucesso no trabalho, bons amigos e realizasse os sonhos que ele podia realizar com o salário que ganhava. A ideia de dirigir uma Ferrari ou um Aston Martin nunca esteve nessa lista de sonhos possíveis.

Mas uma frase tão enigmática quando profunda como aquela deixou seus amigos preocupados. Parecia o primeiro passo para um ato final shakespeariano do suicídio.

- O que você tem, bicho? A vida tem todo sentido. Você não está feliz em estar aqui com a gente, tomando uma gelada, nessa night gostosa?

Esse é Roberto. Mais velho da turma, nasceu no mesmo dia que o cantor Roberto Carlos uns 35 anos depois. A coincidência não deixou dúvida para a sua mãe, fã do Rei. Melhor para ele. Do contrário, receberia o nome de um dos avôs numa curiosa disputa de cara ou coroa em plena maternidade. E, convenhamos, ser chamado de Atanagildo ou Florisberto ia, no mínimo, causar sérios problemas para a criança.

O Rei salvou a sua vida, mas deixou sequelas graves. Uma delas é a cada três frases usar o termo “bicho” que nem o Roberto Carlos deve falar mais. Produtor de TV, Roberto já tinha feito uma série de programas sobre a Jovem Guarda. É um fã a serviço do ídolo, mas também um bom amigo. Talvez o melhor de João Luiz.

- Bicho, a vida é amor. Você está aqui interagindo conosco e com a sociedade para ajudar a criar um mundo melhor para os seus filhos. As suas aulas são a sua contribuição para este mundo novo que surge a partir dos teus atos. Bicho, tudo é muito astral... Você não sente isso? Essa energia que nos move?

- Poucas vezes em ouvi tanta bobagem. Só faltou você citar que Deus nos criou a sua imagem e semelhança – rebateu de primeira Rogério.

Rogério é cientista, niilista e ateu. Todo o papo flower power de Roberto o dava azia. É prático, cartesiano e, principalmente, kantiano. O baixinho de Kögnisberg era o seu ídolo, a ponto dele saber citar de cor trechos da “Crítica da Razão Pura” ou da “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”. João Luiz, no entanto, gostava de dizer que Kant estava mais para o seu Deus só para provocá-lo. Rogério é tão kantiano que tem um hábito bizarro. Todo dia, no mesmo horário, caminha pela Lagoa. Até ai, nada demais. O problema é que ele não faz isso por causa do exercício em si, mas porque Kant, quando vivo, lá no século XVIII, fazia o mesmo pelas ruas da sua cidade na antiga Prússia a ponto da população local acertar os seus relógios a partir das passadas do filósofo.

Se o Rio de Janeiro soubesse daquele segredo de Rogério como os três amigos da mesa, também faria o mesmo com o seu relógio.

- Kant dizia: “Eu dormi e sonhei que a vida era beleza. Acordei e notei que a vida era dever”. É isso, meu caro. E não adianta procurar tal explicação para o seu dilema porque você não vai encontrá-la. Talvez o propósito não seja questionar qual é o sentido da vida, mas como você a faz ter sentido. Ou o que você fará para dar a ela algum sentido.

- Eu tenho 30 anos e não fiz nada de relevante. O que o faz crer que nos próximos 30 eu farei algo?

- João, estamos aqui há uma hora e meia. E eu não bebi o suficiente para ter afetada as minhas funções matemáticas. Cinco ex-alunos seus fizeram questão de parar aqui para te cumprimentar. Você de alguma forma marcou a vida destas pessoas e as ajudou a torná-las melhor, mais divertida ou a tê-las mais sapiência. Isso sem contar aquelas duas mulheres que você fez questão de NÃO nós apresentar.

- Bicho, a loura tinha os peitos maiores do que os da Wanderléia!

- E a morena com aquele olhar de Rita Hayworth em “Sangue e Areia”? Divina e pura sensualidade como uma Gilda do século XXI.

Até então Walter José estava quieto. Mas quando se trata de falar de mulher, ele sempre se manifesta. Walter é cineasta e tem prazer em filmar tudo o que diz respeito ao universo feminino. Trata mulheres com lirismo. São poesias vivas e sua única inspiração.

- Você está em crise, João. É a crise dos 30. Ela passa. Vai por mim. Estou com 33 e bebo aqui sem culpa enquanto penso no meu próximo filme e na minha próxima mulher. Não necessariamente nessa ordem.

Galã da turma e com nome de astro da Hollywood dos anos 40 – pelo menos é assim que ele gosta de imaginar -, Walter se vê como um Cary Grant ou um Clark Gable melhorado (mas os amigos dizem que ele não passa de um Mazaropi pós-moderno). Boêmio, um tanto fanfarrão, mas divertido, era a face vídeo-intelectual do grupo, sendo capaz de citar diálogos inteiros de cenas de filmes de Fellini, imitando os atores envolvidos, o que era sempre garantia de diversão.

- A vida, meu caro, não tem um sentido único. É você que o constrói a partir do uso que faz destes anos que teve, tem e terá a partir do momento do seu nascimento. Questionar um sentido para ela, me soa como sintoma de depressão. E um passo para o suícido, pois se você questiona um sentido para ela dá margem a questionar todo o resto e ficará paralisado.

- A questão não é - retrucou João - dar cabo da vida porque eu posso estar vendo alguma falta de sentido nela. O que eu questiono é a razão de todos os meus atos. Ou dos nossos atos. Com que objetivo eu levanto, me alimento, trabalho, saio no fim de semana, vejo um filme ou não. Vou a um show ou não. Qual o motivo da minha existência? Por que eu estou aqui?

- Você não deve fazer estas perguntas, porque muitas delas não têm resposta. Você deveria procurar ser feliz, bicho.

- Mas o que é a felicidade, Roberto?

Nesse momento, Roberto vira para Walter e diz:

- Maldito Sócrates! Eu falei que você não devia tê-lo apresentado aos diálogos de Platão.

- Certa vez eu conheci um guia turístico que devia ter a minha idade numa ilha que visitei nas férias. O lugar era paradisíaco com uma água de um azul mais azul que os olhos da Kate Winslet. Ele ficava ali de bermuda e camiseta ensinando a história da ilha para nós turistas num inglês bem aceitável. Tinha uma serenidade que eu não tenho. Ou sequer acho que possa ter tido mesmo num momento em que eu poderia estar mais perto da plena felicidade em que o ser humano pode alcançar. Ele parecia ser feliz e não ter angústias. Era um estado de plenitude. Tudo isso sem toda a I-tecnologia, sem carro, sem nada de extra. Apenas ali, ele de bermuda, chinelo e camiseta e o mar a sua frente. 

Roberto e Walter observam o desabafo de João aparentando não saber mais o que fazer para animar o amigo. Rogério, no entanto, arrasta o copo uns dois palmos na mesa, vira-se para João e, olhando nos seus olhos, diz:

- A felicidade é um ponto fora da curva numa escala de tormentos e provações pelas quais o ser humano passa. É impossível ser feliz. Todavia, você pode estar feliz. Só que buscar isso, paradoxalmente o trará angústia e infelicidade. Kant dizia que “a felicidade não é um ideal da razão, mas sim da imaginação”. Ou seja, o que discutimos aqui é uma abstração difícil de chegar a uma conclusão. Trocando em miúdos, estamos perdendo tempo dando círculos numa versão pasteurizada do eterno retorno nietzschiano.

- Resumindo o que o Rogério disse, deixe a vida te levar, meu caro. Entra no carro e segue pelas curvas da estrada de Santos sem olhar para trás, bicho.

- Mas com que motivação eu entro nessa estrada? Por que pegar o carro para o desconhecido?

- E há algo melhor e mais excitante do que embarcar no desconhecido? Já imaginou se o Frodo tivesse continuado naquela área idílica da Terra Média? Nunca teria conhecido o lado bom e o lado ruim de tudo naquela aventura. Ele sofreu muito, ganhou e perdeu, mas saiu maior do que entrou. Arriscar é preciso. Sempre.

As palavras de Walter não trouxeram conforto nem solução para as questões de João. O cineasta rebateu dizendo que a arte nunca visa o conforto, mas o incômodo.

- Olha, não sei a que conclusão chegaremos aqui, nem se chegaremos a ela. Mas sei de uma coisa. Esse papo meio “Ponto de Mutação” me deixou com fome. Ainda servem aqui aqueles bolinhos de bacalhau divinos?

- Claro que sim, Roberto! Aquilo é praticamente a definição de felicidade e o sentido da vida que o nosso amigo aqui tanto procura.

Enquanto Walter pede os famosos bolinhos da casa, Rogério vira para João e resolve propor um brinde à vida e à sua total falta de sentido.

- Mas ainda assim, é o nosso bem mais valioso.


E todos finalmente concordam com uma coisa. Os bolinhos de bacalhau realmente são divinos.