sábado, 1 de agosto de 2009

Contos da viagem I - A aeromoça

O saguão amplo abafa qualquer som pela sua magnitude. Tudo é gigantesco quando se trata de um aeroporto. A começar pelas máquinas que verdadeiramente te aproximam do mundo globalizado. O computador pode te levar virtualmente para todos os lugares. Mas só estando nestes lugares você sente o sabor, enxerga melhor as cores, respira o ar, entra em contato com o clima e a atmosfera do lugar.

Para Camille, nada disso é novidade. É até uma doce rotina. Será mesmo que ela é doce? Certo é que sua vida é ir e vir com destino certo e incerteza de quando terá a chance de parar. Foi isso que ela escolheu para viver. Sabia das agruras tanto quanto dos prazeres. Não tem, portanto, direito a reclamar.

Mas não é em nada disso que ela pensa quando a porta por trás da fila do check-in se abre e ela cruza o saguão junto com outros companheiros de viagem. No rosto comportadamente maquiado que se destaca com o cabelo preso, um leve sorriso a acompanha. O sorriso de quem aproveitará os poucos momentos de folga naquele país ensolarado como suas madeixas para tomar um café.

O café brasileiro não é como o francês, ela pensa. E nessa comparação há vantagens e desvantagens naturais de um leve choque cultural. Aqui se coloca mais pó ou menos pó do que lá? Quantas colheres de açúcar cabem para que o modelo que ela veste continue sendo prático e confortável.

Ela tergiversa sobre o nada ao mesmo tempo em que o ponteiro do relógio teima em andar, em fazer passar este maldito tempo. O voo é questão de minutos. As bagagens já foram despachadas, mas ainda há tempo para ela se permitir um último prazer: o cigarro.

Enquanto a fumaça serpenteia do cigarro levemente levantando em sua mão esquerda, Camille relaxa. Permite-se até retirar rapidamente os sapatos um tanto apertados. Na mão direita, observa fixamente o anel dourado, presente de quem lhe prometeu o mundo que a companhia que a emprega praticamente já fez o favor de fazê-la conhecer. Resta pouco a ver. E de tanto viajar, sinceramente, ela só pensa em ficar em casa. Se é que depois de cinco anos de trabalho, ela ainda possa considerar algum lugar como casa.

O tempo é realmente cruel com os prazeres da vida. Mesmo os pequenos. O relógio de Camille avisa que é hora de embarcar para mais um dia de trabalho, rumo a mais um destino.

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Quando a aeronave alça voo, Camille já está pronta para servir os passageiros. O que será que passa pela sua cabeça? Será que ela reza para não pegar um mala na sua fileira? Não ter que lidar com nenhum engraçadinho? Ou apenas agradece a Deus por uma decolagem perfeita e reza para que a viagem e a aterrissagem sejam igualmente abençoadas?

Enfim, não deve haver muito tempo para maiores reflexões. As próximas 10 horas serão de movimentos cirúrgicos, compassados e, se tudo der certo, cercados de “mercy” para os íntimos, e “thank you” para os menos letrados.

O ritmo é constante. O trabalho é preciso. Camille entrega as refeições previamente esquentadas para cada fileira. Quando termina a primeira parte, retorna ao início para perguntar o que cada passageiro gostaria de beber. Com todos devidamente atendidos, vai para a fileira seguinte onde repete o processo. Não há falhas. Nem uma gota de bebida escapa das suas mãos. Ela sabe que é boa no que faz. Só não sabe até onde isso é bom para ela.

No ar é preciso esbanjar simpatia. Ser prestativa. Ter soluções práticas e rápidas para a demanda de cada cliente atendido por ela. Neste momento, Camille é a aeromoça precisa e impecável de uma das mais tradicionais companhias aéreas do mundo.
É mais tarde, quando os passageiros já estão alimentados e as luzes se apagam para atender aos que desejam dormir, que ela mostra as marcas do cansaço.

No fundo da aeronave, a única luz que a ajuda a ajeitar o cabelo é a mesma que revela as suas dores e o olhar distante. Quantas noites mal dormidas ela deve acumular em aviões desconfortáveis? Quantas vezes dormiu sentada em cadeiras duras com colchas transparentes e travesseiros do tamanho da sua mão? E o cigarro nem pode acompanhá-la aqui.

Única figura iluminada naquele deserto gelado do céu, no meio de absolutamente nada a não ser o mar ali embaixo a milhares de quilômetros, Camille respira fundo. Joga a parte de cima da sua roupa da esquerda para a direita e tenta alisa-la com as mãos com um único movimento dos seios a cintura. Amarrotara o uniforme, mas o cansaço fora maior do que os cuidados. Ninguém vai reparar, pensa ela.

Outra aeromoça passa e troca algumas palavras amenas com Camille, que esboça um sorriso antes de ser tragada pela luz da cabine.

Em questão de minutos, a cabine deixa de ser o único ponto de luz no avião. É dia. É noite, mas é dia na lógica de uma viagem de 10 horas na prática que vale 15 no relógio, que agora teima em ser mais rápido que o tempo.

Enquanto muitos passageiros ainda estão acordando, se ajeitando em suas poltronas, Camille está pronta com seu carrinho tomado de bandejas de café da manhã. Ela ajeita o sorriso e segue o seu destino.

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