segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Contos da viagem II – A Obra

Diz a lenda que ela a tudo observa, não deixando escapar nada, nem os mínimos detalhes num raio de 180 graus. Há quem diga que poderia ser 360 graus se ela não estivesse fadada a viver encostada numa parede. Tamanha atenção gera a dúvida: quem estaria contemplando quem? Quem é a obra que observa e a obra que é observada?

Muitos olhares tentaram desvendá-la. Muitas teorias sobre ela foram escritas. Teses conspiratórias, histórias mirabolantes. É a feia mais bela e admirada do mundo. A admiração por seus traços de genialidade é a vingança sobre uma era em que prevalecem as modelos secas e longilíneas.

Seus fundos opacos e totalmente assexuados – nada me tira da cabeça que são paisagens diferentes à esquerda e à direita e completamente distantes uma da outra – não dão margem para qualquer sensualidade.

Com um vestido escuro absolutamente comportado ela nada revela a não ser um rosto redondo de traços finos. De malícia apenas o singelo sorriso e aquele olhar que te persegue onde você estiver. São os seus pontos fortes, sem dúvida nenhuma. O que lhe dá uma deliciosa aura de mistério e dúvida.

Quando se entra no salão, ela sabe que você chegou. Quando você se aproxima, ela sabe que você está lá. Não importa de onde você venha, sua nacionalidade ou sua profissão. Ela a tudo observa igualmente, seja você um pedreiro ou um agente da CIA. Ela tudo sabe porque tudo vê. É quase um oráculo renascentista.

Há quem diga que vê melhor do que muitos que foram visitá-la. Eu diria que a maioria que atravessa mundos ou esquinas para vê-la na realidade não liga muito para ela. Apenas para o ícone que ela representa. Um ícone de beleza estética, de inteligência, de genialidade. Ela é um dos pontos mais altos de uma carreira. É uma estrela eternamente fincada no panteão da grande arte.

É também um ícone pop e como tal é admirada, reproduzida, parodiada e...fotografada. São muitos os flashes sobre o qual ela é exposta diariamente. Há as pessoas que lhe dão as costas para sorrir para uma objetiva pouco criativa. Há aquelas que apontam para ela e outras que tentam imita-la.

Outros tantos se acotovelam para chegar o mais perto possível sem ultrapassar a linha que a separa da população muito bem vigiada pelos seguranças que a protegem. Afinal, ela é um ídolo e como tal precisa ser observada, ter sua integridade física protegida. E para isso a sua segurança é impecável. Está de olho nos mínimos movimentos, que variam da fanfarronice do italiano à esquerda a concupiscência da alemã à direita.

Tanta admiração e ela não pode ser tocada. Pelo menos não por todos que a amam e a desejam. Para quase todos, ela é uma musa numa redoma de vidro. Apenas pouquíssimos tiveram a chance de tê-la em seus braços. Entre elas seu amante inesquecível que praticamente a moldou, mas cujo tempo se encarregou de afastar. Mas ele sabia que ela era a única fadada à eternidade enquanto o tempo lhe corroeria cruelmente o corpo. Não deve ter sentido remorso ou inveja. Talvez nem suspeitasse que sua musa fosse se tornar o que se tornou. Se pensou em celebrar, não teve tempo para isso.

Minha maior curiosidade é saber o que uma mulher como ela sente quando as luzes se apagam. Uma mulher tão acostumada aos holofotes, que passa pelo menos 15 horas absolutamente vigiada por um batalhão de pessoas de todo o mundo vive durante parte do dia completamente sozinha. Nem tanto, se lembrarmos que câmeras estão ali para vigiar todos os movimentos de outrem, pois elas não captam o sibilar dos seus olhos. Misteriosos olhos que a tudo observam em quase completo silêncio.

Mas há um período do dia em que as luzes se apagam e a ela resta apenas a companhia dos vizinhos tão diferentes dela, com tão menos brilho, e do insuportável barulho do ar condicionado que a mantém com a mesma temperatura desde que se mudou para aquela mansão.

Uma mansão que ela só conhece um cômodo, o que lhe pertence, ali, naquela região central para ser descoberta aos poucos. Ninguém, mesmo desejando, nunca chega diretamente a ela. É preciso passar, no mínimo, por algumas etapas em que é impossível passar despercebido. E o grande admirador nem deseja desperceber a imensidão daquele lugar. Porque aquela mulher é só o prêmio máximo de uma dádiva de estar ali presente conhecendo a mansão.

E quando ele chega finalmente até ela, ali, em meio a confusão que a cerca de flashes, sorrisos e todo o consumismo barato de sua era, ele sente uma maldita lágrima furtiva escorrer pelo seu olho. É naquela conexão direta defletindo o caos em volta que o observador para e suspira:

- Então essa é a sensação que se tem quando se está diante de uma obra-prima?

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