
No ônibus, uma suave fragrância invade o clima quase politicamente correto. Temperatura a vinte e poucos graus e um espaço absolutamente inodoro. O perfume tem endereço certo. O banco ao lado, de um azul fortemente escuro, é banhado pelo grená do vestido daquela morena de rabo-de-cavalo bem ao estilo dos anos 90 do século passado e feições enigmáticas, cujos olhos escondiam-se sob delicados óculos escuros. Tudo nela esbanja leveza. É uma bailarina perto de ogros e eu sou toda a sua plateia.
O sapato é comportado. Sem saltos e escondendo os dedos dos pés. Se há alguém presente com este tipo de tara, estará decepcionado com ela. O vestido na altura do joelho ressaltaria uma mulher comportada para trabalhar se no seu tronco não abrisse um imenso V de vitória para os amantes da oitava arte (já que já havia sete pré-determinadas antes mesmo do meu nascimento): a do corpo feminino.
Os seios não são fartos, mas as fendas em sua vestimenta, verdadeiros Grand Canyons da luxúria, revelam uma mulher moldada para o paraíso. Uma mulher sem a mínima necessidade de um photoshop, programa que se sentiria inútil se pudesse contemplar tamanha beleza.
Em suas mãos, o símbolo máximo da mulher gostosa. Quem pensa que a mulher gostosa bebe cerveja nos bares ou vinho nos restaurantes está enganado. Quem pensa que a mulher gostosa degusta mojitos nos points da moda ou o cosmopolitan nas boates do momento se banha na inocência ou é levado pela propaganda. A bebida da mulher gostosa é, pura e simplesmente, a Coca-Cola.
Mas não naquelas garrafas sujas e mal ajambradas que os machos gostam de pegar e beber no gargalo para mostrar a coragem de um cromossomo XY que desaparece ao mero sinal de uma ratazana. Não. A mulher gostosa bebe Coca-Cola em lata. E com canudinho.
E na sua mão a lata sequer sua paralisada pelo privilégio de ser contemplada pelos olhos que agora se revelam libertos daquelas lentes escuras. O rebentar da lata que se abre quebra o silêncio impetrado pelo sinal vermelho que provocara o imperativo descansar do motor do ônibus e jorra o ar ligeiramente gelado causando a mistura que provoca pequenas borbulhas dando um novo sabor ao refrigerante.
Antes de se deliciar com o doce que ela se permite naquele instante, a mulher gostosa tem ainda um último ato. Uma última cena nessa peça teatral, nesse Shakespeare urbano.
Ela puxa levemente o vestido e revela parte de suas coxas moldadas nas melhores academias. Aquelas em que os professores regozijam-se de estarem criando o ser humano perfeito diante do espelho vazio, mas preparados para as mais árduas e brutais batalhas sexuais. Ali, onde muitos homens sonhariam estar, ela deposita a lata que sofre um verdadeiro choque térmico.
É quando a mulher gostosa, com o cuidado para não estragar as unhas recém-pintadas de vermelho, se dá ao trabalho de rasgar o papel que cobre o canudo de plástico, essa interface que refrescará o seu corpo com o néctar moderno. Ela deposita, em movimentos milimétricos, o canudo dentro da lata. Leva-o a boca de traços finos e se permite como primeiro saborear nada menos do que dois goles.
Revigorada por aquele pequeno frescor, ela busca o papel que encobria o canudo. Amassa-o até o menor tamanho possível para aquele corpo que ainda assim tem um mínimo de densidade. Curva-se como jamais se curvaria para qualquer autoridade máxima do maior dos impérios e encerra o seu monólogo shakespeariano deixando o papel cair tragicamente, sob o peso de mil trovões, no chão do ônibus.
A deusa era humana. Lamentavelmente humana.
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Moral da história: Não adianta ser gostosa se não se tem consciência ecológica.