domingo, 31 de maio de 2009

Minúcias da mulher gostosa

Enclausurado numa caixa climatizada que leva e trás diariamente trabalhadores, estudantes e todo o tipo de gente entre uma cidade e outra, há pouco espaço para as sensações mundanas. Lá fora o calor escaldante se reflete no suor do homem que tira o paletó e revela a camisa branca e a testa molhadas de suor e preocupação e no fagueiro vestido da loura que finge não perceber os rostos que se entortam em busca de revelações um pouco mais acima de suas coxas ou além do generoso decote.

No ônibus, uma suave fragrância invade o clima quase politicamente correto. Temperatura a vinte e poucos graus e um espaço absolutamente inodoro. O perfume tem endereço certo. O banco ao lado, de um azul fortemente escuro, é banhado pelo grená do vestido daquela morena de rabo-de-cavalo bem ao estilo dos anos 90 do século passado e feições enigmáticas, cujos olhos escondiam-se sob delicados óculos escuros. Tudo nela esbanja leveza. É uma bailarina perto de ogros e eu sou toda a sua plateia.

O sapato é comportado. Sem saltos e escondendo os dedos dos pés. Se há alguém presente com este tipo de tara, estará decepcionado com ela. O vestido na altura do joelho ressaltaria uma mulher comportada para trabalhar se no seu tronco não abrisse um imenso V de vitória para os amantes da oitava arte (já que já havia sete pré-determinadas antes mesmo do meu nascimento): a do corpo feminino.

Os seios não são fartos, mas as fendas em sua vestimenta, verdadeiros Grand Canyons da luxúria, revelam uma mulher moldada para o paraíso. Uma mulher sem a mínima necessidade de um photoshop, programa que se sentiria inútil se pudesse contemplar tamanha beleza.

Em suas mãos, o símbolo máximo da mulher gostosa. Quem pensa que a mulher gostosa bebe cerveja nos bares ou vinho nos restaurantes está enganado. Quem pensa que a mulher gostosa degusta mojitos nos points da moda ou o cosmopolitan nas boates do momento se banha na inocência ou é levado pela propaganda. A bebida da mulher gostosa é, pura e simplesmente, a Coca-Cola.

Mas não naquelas garrafas sujas e mal ajambradas que os machos gostam de pegar e beber no gargalo para mostrar a coragem de um cromossomo XY que desaparece ao mero sinal de uma ratazana. Não. A mulher gostosa bebe Coca-Cola em lata. E com canudinho.

E na sua mão a lata sequer sua paralisada pelo privilégio de ser contemplada pelos olhos que agora se revelam libertos daquelas lentes escuras. O rebentar da lata que se abre quebra o silêncio impetrado pelo sinal vermelho que provocara o imperativo descansar do motor do ônibus e jorra o ar ligeiramente gelado causando a mistura que provoca pequenas borbulhas dando um novo sabor ao refrigerante.

Antes de se deliciar com o doce que ela se permite naquele instante, a mulher gostosa tem ainda um último ato. Uma última cena nessa peça teatral, nesse Shakespeare urbano.

Ela puxa levemente o vestido e revela parte de suas coxas moldadas nas melhores academias. Aquelas em que os professores regozijam-se de estarem criando o ser humano perfeito diante do espelho vazio, mas preparados para as mais árduas e brutais batalhas sexuais. Ali, onde muitos homens sonhariam estar, ela deposita a lata que sofre um verdadeiro choque térmico.

É quando a mulher gostosa, com o cuidado para não estragar as unhas recém-pintadas de vermelho, se dá ao trabalho de rasgar o papel que cobre o canudo de plástico, essa interface que refrescará o seu corpo com o néctar moderno. Ela deposita, em movimentos milimétricos, o canudo dentro da lata. Leva-o a boca de traços finos e se permite como primeiro saborear nada menos do que dois goles.

Revigorada por aquele pequeno frescor, ela busca o papel que encobria o canudo. Amassa-o até o menor tamanho possível para aquele corpo que ainda assim tem um mínimo de densidade. Curva-se como jamais se curvaria para qualquer autoridade máxima do maior dos impérios e encerra o seu monólogo shakespeariano deixando o papel cair tragicamente, sob o peso de mil trovões, no chão do ônibus.

A deusa era humana. Lamentavelmente humana.

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Moral da história: Não adianta ser gostosa se não se tem consciência ecológica.

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