segunda-feira, 9 de março de 2009

Um filme a ser assistido


Estados Unidos, década de 80. Richard Nixon (Robert Wisden) está no seu quinto mandato como presidente do país e a relação com a União Soviética em plena Guerra Fria nunca esteve tão próxima de explodir em centenas de milhares de ogivas nucleares que destruiriam o planeta e as bilhões de pessoas que nele vivem. Neste cenário sem esperança em que um relógio mede a tensão entre as nações e faltam apenas quatro minutos para a meia-noite, quando o holocausto nuclear se tornará inevitável, vive um grupo de heróis entre a aposentadoria, a marginalidade e o trabalho de cooperação com o governo federal.

O mundo nunca fora tão niilista. Os super-heróis mascarados, tidos como fundamentais para a segurança e responsáveis, neste, como você já percebeu, fictício Estados Unidos, pela vitória no Vietnã, hoje são vistos como vigilantes criminosos que escondem suas identidades para não serem presos.

A população está cansada de vigilantes e seus poderes. O tempo vai passando ao som de mestre Bob Dylan e sua magistral “The Times – They Are A Changin’”. Com a vitória americana no Vietnã, todo o movimento pacifista acaba em mortes. Os tempos estão mudando, mas o violento assassinato do Comediante (Jeffrey Dean Morgan) joga luz sobre um novo mistério. Estariam os super-heróis sendo alvo de uma cruzada assassina para exterminá-los de vez? É o que Rorschach (um espetacular Jackie Earle Haley) está investigando.

Este é o ponto de partida de “Watchmen”, filme de Zack Snyder baseado na graphic novel de Alan Moore que estreou neste fim de semana em todo o mundo. Um trabalho grandioso não apenas nas suas três maravilhosas horas de duração, mas um filme estupidamente bom neste ano com tanta película boazinha ou mais ou menos.

Quem viu “300” (2006), também de Snyder e também baseado numa graphic novel, mas do papa Frank Miller, reconhecerá a linguagem usada pelo diretor em “Watchmen”. Aquelas cenas em câmera lenta que repentinamente aceleram numa mistura de John Woo com “Matrix” (1999) estão presentes. Assim como a forma crua como são mostradas as lutas onde os socos são amplificadamente pesados e ecoantes e o sangue escorre além do normal.

Nos dois trabalhos, parece que a história em quadrinhos salta aos seus olhos no melhor 3-D já feito sem que fosse necessário qualquer óculos especial. A fidelidade é impressionante, embora sempre possa haver fãs mais xiitas contrariados com determinadas e sempre inevitáveis licenças poéticas. Mas assim como é complicado transpor para a tela um livro, é igualmente complexo, embora os desafios sejam completamente diferentes, levar uma história em quadrinhos para o cinema.

E Snyder com seu estilo singular foi muito bem sucedido até aqui. Se “300” é um bom filme, mas que causa certa estranheza, até porque era o segundo filme do diretor – o primeiro fora a refilmagem de “Madrugada dos Mortos” clássico do terror de 1978 lançado em 2004 – e poucos conheciam seu trabalho, “Watchmen” é um degrau acima em beleza, competência e dedicação a uma história que parecia “infilmável”.

Bem diferente da maioria dos heróis mais tradicionais da Marvel e da DC, os super-heróis de “Watchmen” vivem com a humanidade em, digamos, “harmonia”. Não se escondem nas sombras e surgem de tempos em tempos para salvar o mundo. São mais humanos e, como tais, cometem erros e até brocham. Mas ainda assim são vigilantes que mantém o equilíbrio do mundo para que ele não seja ainda pior.

Alguns como Rorschach e o Coruja (Patrick Wilson) trabalham na noite, prendendo bandidos e salvando vidas. Outros como o Dr. Manhattan (Billy Crudup, que achou personagem perfeito para suas limitações) ou Spector (Malin Akerman), colaboram de alguma forma para o governo e realizam pesquisas. Há ainda os que resolveram lucrar com a própria imagem num tempo em que a sociedade está dividida sobre o que acha dos vigilantes. É o caso de Ozymandias (Matthew Goode), tido como o homem mais inteligente do mundo, mais rápido do que uma bala, que resolve revelar sua verdadeira identidade e passa a lucrar com isso.

Mas os caminhos de todos eles vão se cruzar novamente na medida em que esta desconhecida ameaça, o misterioso assassino, estaria à espreita. O Comediante foi o primeiro. Quem seria o próximo? Por ter a identidade mundialmente conhecida, Ozymandias seria uma potencial vítima. Senhor de si, ele não demonstra muita preocupação.

Enquanto isso, o aviso de Rorschach não seduz o Dr. Manhattan, mais preocupado em encontrar um meio de evitar um holocausto nuclear enquanto questiona a sua humanidade (ou o que resta dela) e tenta entender a humanidade, mais complexa, aparentemente, que seus cálculos de físico e seu frio racionalismo possam imaginar.

O mundo de “Watchmen” não é de santos. O próprio Comediante não foi propriamente um coroinha. Matou crianças e uma mulher que ele engravidou no Vietnã, inocentes nos Estados Unidos, tentou estuprar a primeira Spector (Carla Gugino). Não é alguém que você chamaria de herói e que você nem sente pena ao saber que ele foi assassinado - numa das melhores cenas de luta que já vi ao som de “Unforgettable”, de Nat King Cole - depois de tudo isso. Mas lá fora a coisa está tão feia, a cidade é tão fétida, que o Comediante não chega a ser uma piada de mau gosto.

O mundo de “Watchmen” é hipócrita, cínico, pessimista, niilista, degradado. Moldado a feição de um presidente corrupto que permanece por duas décadas no poder. É um mundo, portanto, à feição do Comediante e não do onipresente e quase onisciente Dr. Manhattan, que tenta não ser um Deus, embora tenha poder para tal, ou do idealista pessimista Rorschach, para quem os humanos mais parecem vermes se reproduzindo na sarjeta, ou mesmo do quase inocente Coruja, que acredita naqueles valores mais nobres que a capa de herói poderia lhe oferecer. Cada um a seu modo, no entanto, entende a necessidade de proteger os humanos por mais que eles os odeiem.

Assim é “Watchmen”. Uma obra luxuosa garimpada do mundo dos quadrinhos que me fez até refletir sobre qual seria a melhor de todas as adaptações já feitas até agora. Criei até uma pequena enquete ali do lado com algumas opções para os que quiserem se manifestar. Caso não concordem com nenhuma delas, o espaço para os comentários está aberto a novas sugestões e ao debate.

O filme de Snyder é também belíssimo por sua trilha sonora. Abaixo, três craques: Bob Dylan, Jimi Hendrix e Nat King Cole num dueto espírita com a filha Natalie Cole.

Bob Dylan - "The Times They Are A Changin'"



Jimi Hendrix - "All Along the Watchtower"



Nat King Cole e Natalie Cole - "Unforgettable"

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