domingo, 15 de fevereiro de 2009

A beleza da literatura cinematográfica

Eu tenho um fraco por filmes que falem sobre a literatura. Não aqueles baseados em obras, sejam elas best-sellers ou contos de esquina, mas as películas que reverenciam o saber literário, a leitura, a escrita, o processo criativo, enfim, toda a sensação que envolve páginas e mais páginas de um livro.

De “Sociedade dos poetas mortos” (1989), de Peter Weir, a “Em busca da terra do nunca” (2004), de Marc Forster, passando por “Encontrando Forrester” (2000), de Gus Van Sant, não consigo me lembrar de nenhum filme que aborde o tema que não seja tocante. Mas o mais marcante para mim sempre foi Fahrenheit 461 (1966), uma obra-prima de François Truffaut que tem uma cena tão dramática quanto bela de uma senhora dando literalmente a vida por sua biblioteca em meio a uma sociedade futurista em que a literatura é um pecado combatido com o incêndio e obras são proibidas. Ali, só a ignorância e a alienação podiam predominar.

Portanto, você pode imaginar como eu me senti ao assistir ao filme “O Leitor”, novo trabalho de Stephen Daldry que ora concorre a cinco estatuetas do Oscar, todas indicações merecidas.

Daldry é alguém que sabe usar as diferentes formas de arte para se adaptarem ao seu cinema. Se em “As Horas” (2002), um dos melhores filmes que já vi, era a trilha sonora o elemento que causava o envolvimento do espectador com o filme – e uma aposta arriscada por ser sempre uma canção intermitente e que perpetuava em todas as duas horas da película – aqui ele deixa que as páginas de clássicos literários, livros de quinta ou histórias em quadrinhos vão te conquistando aos poucos da mesma forma que conquistam Hanna Schmitz (Kate Winslet, cuja atuação embora não seja absolutamente marcante é de uma entrega à personagem digna de Oscar).

Em “O Leitor”, a trilha sonora dá lugar à voz de Michael Berg (David Kross, uma surpreendente revelação), que conhece Hanna, mulher duas décadas mais velha do que ele, por acaso e acaba passando o verão inteiro de 1958 com ela sob dois únicos prazeres: o sexo e a literatura. Há coisa melhor?

Ao mesmo tempo em que o jovem descobre os atalhos do amor com uma paciente e amorosa Hanna, ela também se vê com aquele rapaz diante de um mundo novo. Gosta que ele leia para ela. E como boa ouvinte segue escutando obras como “The lady with the little dog”, “Lady Chatterlay” ou “A Odisséia”.

Berg lê para uma curiosa Hanna, sempre ávida por mais e mais obras. Assim será até o fim daquele verão, quando ela vai embora, promovida que foi pela firma de bondes para a qual trabalhava. De forma triste, portanto, se encerra o verão encantado de Berg.

A vida deve seguir e Berg acaba por entrar na faculdade de Direito. Quis o destino que ao acompanhar seu professor Rohl (Bruno Ganz, o Adolf Hitler de “A Queda” - 2004), Berg reencontrasse Hanna e infelizmente descobrisse todo o seu passado.

Como isto não é segredo para quem já leu a crítica do filme ou fundamental para a história, posso seguir e dizer que Hanna fora na II Guerra Mundial uma oficial da SS nazista. Mandou muitas mulheres para a morte no campo de concentração de Auschwitz. Naquele julgamento, todas as emoções de Berg vêm a tona. A única mulher que ele amara era uma nazista cruel e insensível. A ponto de não abrir as portas de uma igreja em chamas porque as prisioneiras poderiam se espalhar e escapar. A única mulher que não saia do seu coração praticara crimes hediondos com a calma e a tranqüilidade de quem trabalha numa repartição pública.

O mundo de Berg desaba nos seus prantos. A mulher para quem ele tanto leu, que parecia dotada de tamanha sensibilidade, não era quem ele pensava que fosse. Ou era. Afinal, ela poderia ter coração, alma, apesar de tudo.

Mas “O Leitor” não é mais um filme sobre os horrores nazistas. É sobre uma paixão pela literatura e a ferramenta transformadora que ela pode ser na vida de uma pessoa. Qualquer uma.

E antes que alguém possa pensar, Daldry jamais quer redimir os horrores nazistas com uma personagem dúbia e/ou com coração. Apesar do verão luminar, e com o passar do filme e algumas situações/revelações, você percebe que Hanna vive às sombras, sempre escondida, fugindo da responsabilidade que tinha, Hanna é cruelmente condenada por seus atos. E não apenas na mera sentença de um juiz.

O trabalho do diretor inglês usa apenas a história como pano de fundo para algo maior. Contar como uma paixão pode ser transformadora. Como pode impulsionar um ser humano, dar-lhe força de vontade, um norte, um sentido.

E quando algumas revelações impossíveis de serem contadas aqui caem por terra durante o filme, é possível parar e pensar sobre o quão bela é a literatura e que dom maravilhoso têm aqueles capazes de escrever (no qual eu infelizmente não me incluo).

Até o fim Hanna e Berg, já adulto vivido por Ralph Fiennes, estarão ligados de alguma forma. Os livros e Berg lhe deram uma razão para seguir em frente, esquecendo do triste passado. A Berg, ela nada poderá dar, a não ser deixar de ser um obstáculo para que ele finalmente possa também seguir em frente. E é emblemático que até o fim, ela esteja acompanhada dos seus livros. Aqueles que lhe ofereceram todas as portas para que ela pudesse escolher quais abrir.

Não sei se Daldry ganhará o Oscar, uma vez que “Quem quer ser um milionário?” aponta como o grande favorito da noite do dia 22 depois de faturar todos os prêmios possíveis, mas a minha modesta torcida, por enquanto, vai para “O Leitor”, mas um trabalho marcante do diretor inglês.

Indicações ao Oscar: Melhor filme, melhor diretor para Stephen Daldry, melhor atriz para Kate Winslet, melhor roteiro adaptado para David Hare e melhor fotografia para Chris Menges e Roger Deakins.

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