sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Cafarnaum, uma obra-prima dura e brilhante

Yonas, Zain e a jornada dura de "Cafarnaum"
Um antigo e famoso carnavalesco chamado Joãosinho Trinta dizia que “o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”. Era uma de suas frases mais marcantes. É muito fácil sentar na privilegiada cadeira de um cinema com ar condicionado e todas as facilidades que uma vida privilegiada pode dar e “admirar” com ares de sociólogo a miséria exposta pela diretora libanesa Nadine Labaki, e sair falando maravilhas sobre “Cafarnaum” (Capharnaüm, no original). É extremamente fácil contemplar a sofrida saga de Zain (Zain Al Rafeea), posar de intelectual de esquerda de mesa de bar e dissertar sobre as injustiças sociais e a necessidade de se buscar uma sociedade mais igualitária e menos cruel. 

Estas são interpretações legítimas, mas vou tentar fugir um pouco delas sob pena de parecer tão insensível e distante quanto a imagem da advogada de Zain na trama, vivida pela própria diretora, que fica sem reação diante do discurso da mãe do menino no tribunal dizendo que ela nunca saberia o que é ter a vida dela. E jamais aguentaria o que ela aguentou. Esta é uma das muitas cenas muito fortes deste filme. De fato, tal qual a advogada, por mais que eu pudesse me sensibilizar com todo o drama, por mais que eu pudesse mostrar empatia, eu jamais saberia o que é viver e como descrever o que é estar tão à margem de uma sociedade como Zain e sua família.  

“Cafarnaum” é uma obra-prima com a qual raras vezes nos deparamos diante de nós. É também um filme sobre como falhamos como seres humanos nos mais variados aspectos. A exploração da miséria, o trabalho escravo, a violação dos direitos mais básicos, famílias devastadas pela pobreza e pela falta de perspectiva de uma situação melhor, a ilegalidade da vida de imigrante, casamentos arranjados em troca de dinheiro, pais negligentes com seus filhos. “Cafarnaum” é um rosário de tragédias pessoais exibidos em 125 minutos de filme.

É quase como se a região permanecesse até hoje sofrendo da negação de Cristo. O nome do filme remete à cidade bíblica que ficava na margem norte do mar da Galileia. Perto passava a importante Via Maris (estrada do mar), que ligava o Egito, à Síria e ao Líbano. Na Bíblia, Cafarnaum é um dos lugares onde Jesus realizou uma série de milagres, como dois exorcismos, a cura da sogra de Pedro de uma enfermidade, e a cura de um paralítico, na tão conhecida passagem da Bíblia, onde Jesus disse ao homem: “Levanta-te e anda”. Mas, segundo consta na história, o povo da cidade também acabou por não se arrepender dos seus pecados e se afastou de Jesus, que teria previsto a destruição da cidade. A partir daí, Cafarnaum, que era um centro de cobranças de impostos e onde também havia um posto militar romano entrou em declínio tornando-se desabitada no século V depois de Cristo.

Se é possível traçar um paralelo entre a Cafarnaum bíblica e o Líbano traçado por Nadine ela está justamente na miséria moral do ser humano que explora uns aos outros, mesmo nas camadas mais baixas. O ser humano que não se arrepende dos seus pecados e segue reproduzindo os comportamentos exploratórios e vis a cada instante. 

No centro do filme está a história do jovem Zain (vivido monstruosamente pelo menino Zain Al Rafeea). O jovem de 12 anos forçado a ter a maturidade de um adulto por conta da negligência dos seus pais, foi preso e condenado a cinco anos na prisão por ter estaqueado um homem que se casara com a sua irmã, Sahani. O motivo do crime foi a morte da menina de 11 anos, logo após a sua gravidez. 

Mais velho dos seus muito irmãos, Zain fora obrigado a amadurecer a força para ajudar no sustento da família. E é por já ter uma consciência quase de adulto no corpo de uma criança que o jovem resolve processar os pais pelo crime de lhes ter dado a vida. Zain considera que seus pais foram criminosamente negligentes com toda a família e não podem mais ter filhos. As provas estavam na sua irmã morta e nele mesmo, um adolescente preso e que sequer fora formalmente registrado. 

O filme vai alternando cenas do julgamento com a jornada de Zain nas ruas do Líbano. A vida difícil, as dificuldades para comer, a falta de esperança após perder a irmã que tinha menstruado pela primeira vez recentemente para um homem que só queria abusar dela...

Até que vem a fuga e Zain se depara com a imigrante etíope Rahil (Yordanos Shiferaw), que o acolhe. Zain, então, passa a cuidar do seu filho, Yonas (Boluwatife Treasure Bankole), até o dia em que ela simplesmente não volta. Ilegal, Rahil é pega pela polícia, deixando Zain sozinho cuidando de Yonas. 

É um dos momentos mais dramáticos do filme o período em que Zain se vê num papel de pai. É de partir o coração vê-lo tentar e tentar fazer o mais correto e se virar como dar para alimentar a criança e cuidar dela. Tudo até o momento em que não tem mais forças porque a vida entre os que estão à margem simplesmente não consegue avançar. 

Vemos tudo isso pelos olhos de Zain. Um menino que não encontra heróis de Hollywood para ajudá-lo. O mais próximo disso é o velho “Homem-Barata”, o “primo do Homem-Aranha”, que cruza o seu caminho. Zain precisa ser o herói dele mesmo. Tão jovem, o menino sente-se carregando um fardo enorme da existência quando tudo o que desejava era ser um homem bom. E o discurso dele ao fim do filme é absolutamente tocante ao mesmo tempo em que é muito duro.

“Cafarnaum” merecia mais do que uma mera indicação ao Oscar de filme estrangeiro. Talvez seja o melhor de todos os que concorrem ao Oscar. Pelo menos Cannes reconheceu o seu valor, dando-lhe três prêmios no ano passado. Nadine Labaki realizou um filme duro e brilhante que merece ser visto por todos. 

Cotação da Corneta: nota 10.

Indicação ao Oscar: melhor filme estrangeiro.

Nenhum comentário: