sábado, 23 de fevereiro de 2019

O manifesto Black Lives Matter de Barry Jenkins

Um romance interrompido pela injustiça
O cinema sempre tentou acompanhar as transformações da sociedade. Na maioria das vezes, de forma extremamente lenta e atrasada. Em outras, dando um bom retrato de um momento bem atual. Uma outra forma de ver, um pouco mais cínica, é verdade, é que o cinema sempre se aproveita de ondas para lucrar. Afinal, isso ainda é uma indústria. E indústria precisa dar lucro. Mas gosto de pensar, que a sede de faturar pode muito bem andar junta com a necessidade de um compromisso sociológico, político e cultural. E que ações e reações surgem a partir daí em movimentos peristálticos que geram bons trabalhos e outros nem tanto.

Dois movimentos, de certa forma, ajudaram a catapultar para um lugar de destaque, e muito próximo do topo em alguns casos, e dar visibilidade a alguns diretores negros que estão sendo responsáveis por fazer uma gama de bons filmes nesta década. Um deles é o Black Lives Matter (Vidas negras importam), iniciado a partir de protestos em torno da morte de negros por policiais nos Estados Unidos. Dois momentos de auge aconteceram em 2013 e em 2014. Em 2013, George Zimmerman foi absolvido da morte a tiros do adolescente negro Trayvon Martin, o que gerou muitos protestos. No ano seguinte, as manifestações de rua se intensificaram quando após a morte de dois negros nos Estados Unidos: Michael Brown e Eric Garner. O outro foi o #Oscarsowhite, protesto contra a edição do Oscar de 2016, quando não havia negros concorrendo nas principais categorias.

Na esteira, principalmente do primeiro movimento, Hollywood talvez tenha começado a perceber que as histórias negras também importam. Foi quando nomes como Ryan Coogler, Jordan Peele, Ava DuVerney, Dee Rees e Barry Jenkins começaram a ganhar destaque. Além de Steve McQueen, que não é tão contemporâneo deste quarteto.

Só a partir de 2013, Coogler foi responsável por revigorar a franquia de Rocky Balboa com “Creed: nascido para lutar” (2015) e por fazer um dos melhores filmes de super-heróis de todos os tempos, o “Pantera Negra” (2018). Ele ainda está envolvido na sequência do filme do herói da Marvel. DuVernay fez “Selma: uma luta pela igualdade”, sobre a marcha da cidade americana até Montgomery, no Alabama, em uma campanha idealizada por Martin Luther King pela luta dos direitos de voto dos negros. Dee Rees realizou "Mudbound", história de um negro que foi herói da Segunda Guerra Mundial e volta para o Mississippi para lidar com o terrível racismo na região. Pelo filme, ela recebeu uma indicação ao Oscar de roteiro. Jordan Peele realizou o “Corra!”, um dos melhores filmes de terror recentes, que aborda muito fortemente a questão do racismo. E neste ano lançará “Nós”, outro filme do gênero e também com uma série de atores negros. McQueen realizou “12 anos de escravidão” (2013), filme pelo qual ele ganhou o Oscar, e recentemente “As viúvas” (2018), cuja protagonista é a negra Viola Davis. E que merecia uma indicação ao Oscar.

Já Barry Jenkins fez “Moonlight” (2016), belíssima história sobre um homem negro e gay, cuja mãe tinha problemas com drogas, filme pelo qual ganhou o Oscar, e agora volta a disputar três prêmios da academia com “Se a rua Beale falasse” ("If Beale Street Could Talk", no original).

Seu novo filme é uma narrativa sobre a resistência. Ele tem a força de quem enche os pulmões para gritar que as vidas negras precisam importar. Ao mesmo tempo, é uma história de amor tão romântica e tradicional, por contar a história de dois jovens que cresceram juntos, se apaixonaram e planejavam construir a vida toda juntos até uma sentença falsa e uma prisão injusta mudarem a vida deles para sempre. Interromperem sonhos que já eram tão difíceis de realizar pela estupidez que é o racismo e o julgamento pela cor da pele das pessoas.

Ao mesmo tempo em que vai nos contando essa história tão bonita de amor entre Tish (Kiki Layne) e Fonny (Stephan James), Jenkins expõe as dificuldades que eles sofrem por serem negros, ainda que não tenham nada que lhes seja desabonador. A falta de um emprego bom, a dificuldade para alugar uma casa, o olhar enviesado da polícia... Cada dia é uma batalha vencida, cada novo dia é um recomeçar pisando em ovos, mas sem desistir na busca do sonho de uma vida melhor a cada geração. E o diretor mostra que só a força do amor daquele casal e da família no entorno seguram essa grande batalha que é viver.

De um lado, Jenkins conta o presente, a vida passando enquanto Fonny mofa na cadeia após ser acusado de estupro em um processo viciado, cheio de buracos na narrativa, mas com pouca esperança de reversão, pois onde o racismo ainda impera tão fortemente, suas chances são pequenas.

Do outro, há essa construção do romance a partir dos fatos passados, antes da prisão. Os olhares dos jovens, a primeira noite numa tocante cena de sexo. Tão ou mais bonita quanto a cena do metrô, quando eles se admiram num local tão banal. Tudo isso com uma trilha sonora de encher os olhos. Eis outro dos pontos fortes do filme.

Jenkins compõe sua história a partir de um mosaico. Não há uma linearidade nas ações. Cabe ao espectador compor e compreender o todo da história a partir dos fragmentos que ele vai colocando na tela. Mas ao mesmo tempo, tudo tem uma coesão que torna relativamente fácil o entendimento.

“Se a rua Beale falasse” pode não ser tão brilhante quanto “Moonlight”, mas quão bonito é o filme. Quão bonita é a forma com que Jenkins conta suas histórias. E seu desfecho mostra que o racismo continua vencendo e continuamos muito longe de uma igualdade. Até quando?


Cotação da Corneta: nota 8.

Indicações ao Oscar: Atriz coadjuvante (Regina King), roteiro adaptado e trilha sonora original.


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