terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O implacável e odiado vice de Bush

Christian Bale monstruoso no papel de um monstro
Há quatro anos, Adam McKay fez um dos filmes mais divertidos e didáticos sobre a economia e a explosão da grande bolha imobiliária americana com “A grande aposta” (Thebig short, no original). Com uma linguagem ágil e fincada na cultura pop, o diretor explicava de forma simples como alguns quebraram e outros lucraram muito naquela crise das hipotecas americanas. Em resumo, havia ali um bando de falcões que souberam agarrar uma oportunidade e foram a caça. “Vice” segue o mesmo modelo de linguagem, narrativa e premissa. A única diferença é que não tem o mesmo humor de “A grande aposta”. Talvez haja uma leve ironia aqui, outra ali, mas era realmente impossível retratar a vida daquele que deve ter sido o mais ativo vice-presidente da história americana com humor. 

“Vice” é a história de um homem que não era ninguém e que se transformou no poderoso vice-presidente do governo de George W. Bush (2001-2009). O filme é impiedoso com Dick Cheney (um Christian Bale num estado em que não há adjetivos para elogia-lo). Na primeira parte, retrata Cheney como um fracassado, alcoólatra e aluno medíocre. No restante do filme, Cheney é um oportunista que soube montar no cavalo selado da história e conduzir-se aos mais altos escalões do governo americano com um pensamento extremamente conservador, sem medir quaisquer consequências e atropelando quem ele quiser para estar na crista do poder. E definitivamente este retrato não poderia deixar de ser diferente. 

Cheney foi durante muito tempo quase um fantasma, mas o filme compactua com e confirma a hipótese de que ele era o braço de ferro da administração Bush (Sam Rockwell). Coube a ele, com uma série de manobras e contando com a participação ativa de correligionários em várias instâncias do poder, esticar ao máximo a legislação americana para iniciar guerras infundadas no Afeganistão e no Iraque. Tudo com a anuência de um presidente fraco e quase servil aos desejos de Cheney e a quem fez todas as vontades para tê-lo ao lado na chapa quando concorreu pela presidência com o democrata Al Gore. 

Narrado por um soldado americano, o que foi uma boa sacada do filme, “Vice” mostra como uma pessoa medíocre e que tinha tudo para se transformar num ser humano irrelevante, acabou agarrando uma oportunidade de fazer um estágio no Congresso americano e se colou às pessoas certas no poder. A primeira delas, Donald Rumsfeld (Steve Carrell), ex-chefe de gabinete de Gerald Ford e que também ocupara cargos no governo Nixon e viria a ser o secretário de Defesa do governo Bush. 

O filme passa a impressão de que Cheney, na verdade, era um líder invisível para o público de toda uma geração de republicanos e a voz dos conservadores americanos contra os “avanços” implementados pelos democratas que, por ventura, ocuparam a Casa Branca. No caso, desde que Cheney surgiu no cenário político, os únicos democratas eleitos presidentes foram Jimmy Carter e Bil Clinton, que comandaram a Casa Branca por 12 anos. Já os presidentes republicanos foram quatro - Gerald Ford, Ronald Reagan, George Bush e George W. Bush - comandando a Casa Branca por um total de 23 anos. Barack Obama representou de vez o fim da geração Cheney, hoje com 78 anos. Mas até lá muito estrago foi feito. 

De fato, o auge do poder de Cheney foi quando ele ocupou a vice-presidência. Cargo que, como mostra o filme, ele só aceitou depois de estudar em como transformá-lo de algo em que considerava insignificante a poderoso e sem qualquer tipo de fiscalização. Ao mesmo tempo, que exigiu ao então candidato Bush o direito de cuidar de uma série de áreas estratégicas para o governo americano, como a energia e as forças armadas. 

Cheney viu a oportunidade de, como brinca o filme, transformar-se num Galactus, o devorador de mundos das histórias em quadrinhos da Marvel. É assim o fez. Com a convicção de que estava fazendo o certo, e o melhor da atuação de Bale é a demonstração desta convicção de forma tão real e cristalina, Cheney transformou o mundo em um lugar pior iniciando uma guerra no Afeganistão contra a Al-Qaeda para caçar Osama Bin Laden. Mas a então chamada Guerra ao Terror do governo Bush não era suficiente para ganhar o apoio da população americana. Era preciso um alvo palatável para o povo. Um país com fronteiras e um líder. 

Foi assim que Cheney uniu o útil ao agradável, o desejo de retirar Saddam Hussein do poder, e iniciou uma guerra no Iraque com informações falsas e manipulação de notícias que convenceram até a imprensa e os principais líderes do mundo. Em troca, o que Cheney ganhou foi a responsabilidade direta pela criação de uma das maiores organizações terroristas do mundo: o Estado Islâmico. 

“Vice” é implacável, didático e conta com um elenco de atores que só abrilhantam ainda mais o filme. Bale está um monstro no papel principal, mas Amy Adams não fica atrás ao fazer a esposa de Cheney, Lynne. E ainda há Steve Carrell e Sam Rockwell muito bem, além de atores em papéis menores que souberam incorporar bem a ideia do cinema de Mckay de contar histórias baseado em conexões com a cultura pop e linguagem ágil e leve, por mais que em vários momentos do filme dê um embrulho no estômago. 

De fato, Mckay seria um bom professor de história se não fizesse cinema. E a cena auto irônica no pós-crédito é a cereja no bolo. Além de mostrar como aquele período ajudou a inaugurar uma cultura de fake news que impera hoje em dia e que ajudou a eleger nomes como Donald Trump nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro no Brasil. 


Cotação da Corneta: nota 8. 

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