domingo, 23 de março de 2008

O preço cobrado pela guerra

O holandês Paul Verhoeven é um cineasta que gosta de tratar coisas simples da vida com a crueza e naturalidade que elas têm. Em suas mãos, seios aparecendo ou cenas de sexo fazem parte do cinema porque fazem parte da vida e as pessoas estão aí, diariamente, fazendo o que são ou foram retratados em seus filmes. Não dá para dizer que a arte não imite a vida em seus trabalhos.

Com um pouco de fantasia, é verdade. Não estou aqui dizendo que existem escritoras assassinas que matam homens com picadores de gelo após transarem com eles como no avassalador “Instinto Selvagem” (1992). Mas mulheres que fazem de tudo pela fama e uma condição melhor como o mostrado no bom “Showgirls” (1995), inexplicavelmente – ou até compreensivelmente se pensarmos no conservadorismo - um fracasso nos Estados Unidos não são muito diferentes de... bem, deixa para lá, vamos evitar processos.

O que acontece é que nas suas mãos uma mulher pintando a vagina de louro tem a naturalidade de uma mulher pintando a vagina de louro. Nada é gratuito, mas nada é escondido em seus trabalhos. Deve ser a tal da liberdade e modernidade holandesa que agora libera até sexo em praça pública.

E nesta sua volta à terra natal num filme falado na língua nativa, Verhoeven constrói uma história de sacrifício, perdas e marcas irreversíveis deixadas pela II Guerra Mundial em “A espiã”, filme de 2006 que só chegou aos cinemas brasileiros neste ano.

Em meio a ocupação da Holanda pelos alemães já no fim do conflito, Rachel/Ellis de Vries (Carice van Houten) é uma judia que tenta escapar da morte fugindo para a Bélgica. Mas a escapada é delatada e oficiais alemães liderados por Franken (Waldemar Kobus) matam toda a sua família e mais um punhado de judeus que tentavam escapar clandestinamente.

Única sobrevivente, Ellis retorna ao advogado Smaal (Dolf de Vries) sem dinheiro, roubado pelos alemães, e em busca de abrigo. Acaba conhecendo Gerben Kuipers (Derek de Lint) e passa a trabalhar como espiã para a Resistência holandesa, um grupo miliciano que tenta combater os alemães.

Traumatizada pelo barulho de bombas e aviões que a perseguem desde o início da guerra, Ellis terá que fazer uma série de concessões para sobreviver. Uma de suas atribuições é seduzir o capitão Muntze (Sebastian Koch, o escritor perseguido pelo regime comunista em “A vida dos outros” (2006). Perdida e sem muita alternativa, ela se dedica com afinco a ponto de pintar os cabelos de louro (todos eles) para não ser confundida com uma judia.

Seu disfarce não funciona e ela é facilmente desmascarada por Muntze. Mas a realidade que se desenha no momento com a inevitável derrota dos alemães e o fim da ocupação do país acabam favorecendo um surgimento de uma paixão impensável. Ela acaba ganhando um aliado e trabalhando aos dois interesses, o de Muntze e o dos rebeldes, sem que haja um conflito entre ambos que no fim buscam nada além da liberdade e o fim da guerra insana.

Nesse cenário, Muntze negocia com os rebeldes um cessar-fogo enquanto Frankel quer o acirramento do conflito com o assassinato de todos os inimigos capturados.

Enquanto vê todos a sua volta morrerem, inclusive o oficial alemão que ela passou a amar pela solidão que compartilhavam e a perda da família pela guerra, Ellis sobrevive. Viver seria demais para ela, tão marcada pelas chagas da guerra que nem mais de dez anos depois vão se apagar. Não é a toa que Verhoeven encerra o filme com sua imagem num kibutz em Israel envolto em cerca de arames farpados com soldados se preparando para uma batalha. Mesmo na liberdade, ela se encontra presa.

Num enredo cheio de reviravoltas e traições em todos os lados, “A espiã” é um excelente trabalho de Verhoeven. Baseado em fatos reais, o filme nos apresenta um lado raramente visto da história que é envolvimento da Holanda na guerra e as marcas deixadas no país. E nesta história, Ellis encarna alguns dos sacrifícios dos judeus para sobreviverem ao horror nazista e lutarem contra ele.

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