segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Chiaroscuro no abarrotado Circo

Em meio a onda negra que vai tomando conta das dependências do Circo Voador a cada minuto que passa, ela se destaca. Com um vestido negro para não se distinguir da maioria e sandálias claras e rasteiras, ela se destaca pela simplicidade com que se veste em meio aos exageros de arroubos adolescentes, cópias piratas ávidas por ver e ouvir a original, e os tipos costumeiramente (e divertidamente) esquisitos que quem freqüenta shows de rock há 11 anos já está acostumado a ver.

Ao contrário destes tipos, ela tem a pele aparentemente virgem de tatuagens quaisquer, sejam as declaratórias como a do casal de lésbicas que passa à esquerda ou a da garota de botas até a canela com a panturrilha tomada por um desenho impossível de entender no escuro. Falta o contraste do disco da cantora para iluminar o local e trazer compreensão. Mas tudo isso a menos que o vestido esconda algo além do belo corpo daquela mulher sozinha, porém, não (aparentemente) solitária que se diferencia da massa.

Com um sorriso de Mona Lisa e um olhar de estrela de film noir, ela toma o único copo de cerveja que se permitiu comprar com a sabedoria de quem apreciava um néctar divino. Uma bebida que parece produzida diretamente pelas bacantes e especialmente para ela.

Entre um gole e outro, a casa toca na longa espera uma seqüência de músicas que rádio nenhuma do Rio tem a coragem de tocar. Alternando clássicos e canções novas de altíssima qualidade, o DJ da vez agrada a todos os presentes, convertendo a unanimidade rodriguiana numa sabedoria olímpica, com o perdão da desgastada palavra usada demais nos últimos dias, mas que remete aqui apenas à morada dos deuses.

Com movimentos econômicos, ela não deixa transparecer se está gostando ou não da seleção. Mas sorri com um leve tracejar de sua boca ao observar o casal ao seu lado dançando animadamente. Acompanhando a filha menor de idade, eles deixam transparecer os 40 anos de rock and roll quando a parede sonora de “Highway to hell” do AC/DC singra por todo o Circo Voador.

Com a educação que lhe foi oferecida e aceita por ela, escolhe subir os três degraus que a separam da mais próxima lixeira. Caminhar até lá é como um desfile informal que apenas os mais observadores reparam. O balanço pendular do vestido acompanha o ritmo dos seus cabelos negros simetricamente cortados com os últimos fios atingindo um palmo e meio abaixo do ombro.

Ela observa a noite em que a chuva parece dar uma trégua. Lhe dá o direito ao último gole antes de se desfazer do copo e retorna a um ponto mais estratégico. São 21h30m e o casaco que serviria para o frio é amarrado na sua cintura. É preciso liberdade nos braços para o espetáculo. O calor é denunciado quando suas mãos manuseiam com desenvoltura os cabelos e os prendem deixando o pescoço a mostra. Há 60 anos não haveria nada mais erótico.

Cinco minutos se passam. O show está atrasado e ela resolve desfilar por outras áreas. Flutua sem dificuldade entre a multidão que abarrota a casa e da mesma maneira que surgiu, desaparece.

No palco, Pitty anuncia com o clichê característico do rock and roll e a infâmia tipicamente nacional: “Welcome to hell. To Hell de Janeiro”. Sem concorrência, ela brilha sozinha no acanhado palco do Circo onde em 1h40m despeja sucessos dos seus dois primeiros e bons discos, “Admirável Chip Novo” (2003) e “Anacrônico” (2005), e apresenta as canções do novo álbum, o terceiro de estúdio, “Chiaroscuro”, lançado neste ano.

Um desavisado que entrasse ali durante o show acharia que é um espetáculo apenas de sucessos. Pitty tem fãs fieis e que a surpreendem cantando a plenos pulmões até mesmo as canções que acabaram de sair do forno. E isso não se resume a apenas “Me Adora”, música que já está tocando em todo lugar que se anda. Feliz, ela conta com humildade que a banda ainda está aprendendo a tocar as canções novas, porque os arranjos têm que ser por questões tecnológicas diferentes do que as pessoas encontram no disco. Neste primeiro teste, a cantora é aprovada sem qualquer problema.

Se houve erro, pelo contrário, foi em uma canção antiga. Algo quase imperceptível em “Teto de Vidro”. Além da última música do show, “Pulsos”, quando a excessiva empolgação do público a fez esquecer a letra, parar, continuar, numa zona que até desligou a guitarra de Martin Mendonça e a fez chamar a atenção do povo, que estava realmente passando dos limites.

Tudo natural para quem sabe tocar o coração dos adolescentes e românticos em geral em cheio com letras como as de “Na Sua Estante” e “Equalize”. Pitty é uma ótima compositora de rock. Ao vivo suas músicas reverberam ainda mais. Suas canções mais pesadas ganham ainda mais potência. É o caso, por exemplo, da ótima “Memórias”.

Entre uma música e outra, Pitty procura interagir com os fãs. E não deixa de atender ninguém. Nem o engraçadinho que a chama de gostosa e recebe uma bem humorada resposta: “Eu já disse que só se pode chamar de gostosa quem você comeu. Não é? As aparências enganam”, diz, para delírio da plateia. Diante de ousada insistência e o pedido para “prová-la”, a devolução é de primeira num belo voleio: “Ah, entra na fila. Tá achando que é assim?”.

Mas Pitty não está ali para se fazer de gostosa. Com seu vestido preto e branco, claro e escuro, luz e sombra como na técnica de Leonardo da Vinci que inspira o nome do disco, tênis brancos e meias escuras, nem se veste como tal. Pitty se impõe e é adorada por sua música apenas. Foi através dela que ela se colocou como um nome importante do rock nacional neste século XXI em meio a tanta tralha que povoa rádios, TVs e outros meios.

Por isso, até os céus dão uma trégua para ela se apresentar. Coincidência ou não, quando já passa de 1h, cortesia do horário de verão, a chuva volta a molhar a Lapa. Pitty já foi embora. A musa misteriosa também. Mas a alma já está lavada.
Abaixo, alguns momentos do show.
Pitty - "Na Estante"

Pitty - "Equalize"

Pitty - "Me Adora"
Pitty - "Pulsos"

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