quarta-feira, 11 de junho de 2008

O inferno somos nós

Se o escritor Jean-Paul Sartre certa vez disse que “o inferno são os outros” (mais precisamente no livro “Entre Quatro Paredes”, de 1944), o diretor de cinema Sidney Lumet fez questão em “Antes que o diabo saiba que você está morto” de fazer com que esse conceito reverberasse dentro de nossas almas tratando de apontar a ferida e, diante do espelho, acusar que o inferno somos nós.

Mais recente trabalho do cineasta de 83 anos, conhecido por obras-primas como “Serpico” (1973) e “Assassinato ao Oriente Express” (1974), “Antes que o diabo...” é um intenso filme de inebriante trilha sonora que te pega de jeito na esquina da vida e revela muito do que há de podre no ser humano. Ressentimento, vingança, ódio, ciúme, rejeição são sentimentos nada belos que permeiam o filme. Além do fracasso. Não uma fraqueza em si, mas o medo de ser um fracassado ou a própria sensação da derrota que acaba movendo um homem a fazer de tudo por um punhado de dólares.

E mais do que isso, transparece na película o vazio existencial de um personagem como Andy Hanson (Philip Seymour Hoffman) que sobrevive de pequenos golpes na imobiliária para a qual trabalha para alimentar sua dependência química, vive um casamento sem sentido com Gina (Marisa Tomei) e faz parte de uma família da qual ele sempre se sentiu excluído. Chega um momento em que a vida não é completa. E aí, para onde você vai?

O caminho que Andy escolhe é o de tirar uma parte para si. Aquilo que ele acha merecer por ter suportado um pai que, na sua cabeça, o rejeitava. Este é o caminho da vingança e a sua porta de fuga para uma vida supostamente feliz esquecida no passado, mais precisamente na lua-de-mel no Rio de Janeiro. Um grande golpe, um golpe de mestre em Charles Hanson (Albert Finney) é o que ele internamente precisa para dar uma lição em quem o rejeitou.

Andy não conseguiu solucionar seu problema freudiano com o pai. Sua relação mal resolvida com a figura paterna resulta no pior e mais enlouquecedor golpe no seu coração: a morte da mãe Nanette (Rosemary Harris), figura no momento errado, na hora errada e no dia errado que se vê atropelada pelo destino.

O plano perfeito de Andy pára também na covardia do irmão Hank (Ethan Hawke). Incapaz é o adjetivo que persegue Hank. Incapaz de ir além na vida (mas seria por falta de oportunidades ou talento?), incapaz de dar uma vida melhor à sua filha (embora definitivamente a deseje, apesar da falta de reconhecimento de Chris (Aleksa Palladino), a ex-mulher e da própria criança). Incapaz de levar uma vida normal, sendo amante da cunhada. Incapaz de mesmo ser o autor de um assalto.

Ele deseja irromper o prefixo de negação. E acha que o dinheiro fácil o ajudará a ser um novo homem. Devia saber que a vida fácil do crime coloca sempre o diabo à espreita.

Andy planeja o assalto de forma fria e calculista que sequer passa pela sua cabeça a possibilidade do imprevisto. O destino prega peças, ele devia saber. Uma pessoa errada, uma arma disparada e um turbilhão de acontecimentos desabam sobre ele e sua consciência. E nem mesmo a droga aplacará a fúria do inevitável. Quando o cerco se fechar, a postura radical é que vai selar o seu futuro.

Dentro do mosaico criado por Lumet e pelo roteirista Kelly Masterson, a história de “Antes que o diabo saiba que você está morto” se desenvolve para além da linearidade, pois a vida é feita de nuances, de sinuosidades. É como se os diferentes ângulos da câmera mostrassem mais do que a perspectiva de cada personagem, mas lhe dessem a chance de saber que para cada porta que se abre, cada caminho que se toma, há sempre outras portas para trás que ficaram por abrir. Há sempre a escolha não feita.

Construir isso é trabalho de gente grande. Coisa para Guillermo Arriaga, roteirista de filmes como o excelente “21 Gramas” (2003) e o apenas razoável “Babel” (2006), ou Christopher Nolan, que em “Amnésia” (2000) aposta na contra-linearidade para contar sua história e tentar criar a sensação de perda de memória recente, ou memento no título original do filme, vivida pelo protagonista Leonard (Guy Pearce).

Quando se descobre que “Antes que o diabo...” é o primeiro roteiro de cinema de Masterson esta-se diante de uma revelação e um revigorante frescor de novidade na escrita para o cinema, ultimamente tão cercada de clichês e fórmulas. Nada mal para um bancário de Manhattan que iniciou a carreira escrevendo peças de teatro.

Em entrevista concedida durante o lançamento do filme, Masterson tentou explicar como chegou ao roteiro de “Antes que o diabo saiba que você está morto”. Reproduzo as frases que dão pistas sobre a construção de sua obra:

“Eu não sei. Era inverno e eu acho que estava deprimido quando escrevia. Eu sempre fui fascinado pela amplitude da natureza humana. Amo personagens que podemos entender e até com quem somos solidários, mas que sempre balançamos a cabeça negativamente quando percebemos o quão estupidamente eles agem. Isso provavelmente vem dos meus estudos de teologia (realizados na Universidade da Califórnia), mas eu amo os grandes temas do bem e do mal e de como somos uma grande combinação de ambos. Nós tentamos separar as coisas e viver no lado bom, mas sempre teremos nossos impulsos malignos”, explicou Masterson.

O roteirista tentou por oito anos ver o seu roteiro ganhar o cinema. Lumet mostrou sensibilidade ao identificar uma grande história em “Antes que o diabo…” e apostou nele. Com um elenco de qualidade ímpar, construiu um filme que não deve nada aos seus clássicos e tem tudo para ele mesmo se tornar também um clássico em alguns anos. Não haveria destino melhor a qualquer filme.

2 comentários:

Luisa Belchior disse...

Sorry o clichê, mas concordo em gênero, número e grau! Também vi Freud e Sartre no filme!
E fiquei te devendo a entrada, esqueci de pagar, foi mal!! Fica pra próxima sessão -sem o Grandenne!!!

Anônimo disse...

Mas você viu que eu demorei para digerir o filme. No domingo eu estava alí falando o básico, quase o superficial. Quando eu parei para pensar, observar os detalhes, um novo mundo se abriu.
Esquece esse detalhe da entrada. Nem lembrava mais que paguei seu ingresso.
Mas a próxima sessão (sem o Grandenne!!!, como você descreve)eu aceito.
beijo