domingo, 14 de outubro de 2007

Diário de guerra de um justiceiro

O Rio é um estado em guerra e precisa de alguém para fazer o trabalho sujo. Essa é a missão do Capitão Nascimento (Wagner Moura, em atuação magistral). E ele sabe que, assim como dizem as regras do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope), missão dada é missão cumprida. Fim de papo. End of story.

“Tropa de Elite” é um espelho cruel, mas absolutamente e tristemente fiel do Rio de Janeiro. Estão lá todos os elementos que levaram esse estado à falência moral. É a polícia corrupta, a polícia que tortura, playboys e patricinhas que ajudam a financiar o tráfico, políticos e comandantes de batalhões corruptos, Ongs que fazem acordos com bandidos e propaganda política canalha, traficantes circulando livremente como verdadeiros senhores feudais das favelas...

São tantos os elementos que jogaram esse estado na lona, são tantos os culpados, que chamar o filme de fascista como alguns fizeram é querer justificar o filme com um posicionamento político que ele não tem e não analisar o problema do tamanho que ele é apresentado. Gigantesco.

E no meio disso tudo, como não poderia deixar de ser numa obra de ficção, tem que haver um herói. No caso, ele é mais um anti-herói. Seu nome é Capitão Nascimento. Sua missão é extirpar da cidade o câncer praticado pelo duo corrupção/hipocrisia enquanto ele mesmo vai sendo derrotado pelos anos de dedicação àquela vida sofrível. Muitos dos seus métodos são condenáveis, mas como questioná-los na guerra em que vivemos? Pois se ninguém percebeu ainda que a situação é de guerra, basta ver o filme. Ele não aumenta nem inventa nada. É verdade crua.

Nascimento lembra que numa situação como a que o Rio vive, “ou você se corrompe, ou você se omite, ou vai para a guerra”. Esta foi a opção dele. Sua visão é simples e direta. Bandido bom, é bandido morto. Estudante que fuma maconha financia o tráfico e merece castigo. E que depois de fumar um baseado não venha querer fazer passeata pela paz que ele mesmo ajuda a destruir.

Não é verdade que o filme coloca o Bope num pedestal e a Polícia Militar como apenas corrupta. Do primeiro se acusou o diretor José Padilha de dizer que não há corrupção no Batalhão. Ele nunca diz isso textualmente. Quem diz é Nascimento. E é natural que ele pense isso, uma vez que o Bope é sua vida, a instituição pela qual ele dedicou sua vida com afinco e honestidade. Afinal, como ele mesmo admite, o Bope, por vezes, se assemelha a uma seita. Daí a ser tudo verdadeiro são outros quinhentos. O filme é claramente a visão do capitão. É narrado em primeira pessoa e é o ponto de vista único e exclusivamente dele. Nada mais. Faltou a muitos entenderem isso.

Um segundo ponto. Se o filme coloca o Bope em posição heróica e de bastião da moral e dos bons costumes das duas uma: ou eu não entendo mais o que é um herói ou os conceitos mudaram bastante e eu não percebi. Desde quando uma instituição que tortura (de acordo com o filme, sempre. Não sei até onde vai a verdade nestes atos) qualquer um, mata primeiro e pergunta depois, intimida as pessoas (lembrai a cena em que Matias conversa com o universitário enquanto o agride e diz claramente: “Qual é? Vai reagir? Vai bater em policial?”) e ameaça empalar um jovem jovem morador da favela com um cabo de vassoura pode ser considerada exemplo? Que pedestal divino é esse?

Segunda parte. A corrupção venal da PM é mostrada e não a PM corrupta como um todo. Há exemplos sutis de que nem todos são canalhas. Não viu quem não quis ou tem teto de vidro. Um exemplo: Matias (André Ramiro, excelente) faz um mapa do crime na área do batalhão em que trabalha e é esculachado pelo comandante do Batalhão, que pensa apenas nos seus interesses. Seu superior imediato sai em sua defesa: “Mas é um relatório perfeito sobre tudo o que acontece na cidade”. O relatório continha os erros, as estatísticas desfavoráveis ao capitão e uma solução para agir na melhoria da segurança dos moradores. O comandante o joga no lixo e manda refazer o documento com um pouco mais de amenidades. Conclusão: Nem todos são podres, mas a corrupção atinge muitos e em cargos estratégicos.

Segundo ponto. A corrupção dos PMs de menor escalão é apresentada de uma maneira em que os policiais são bandidos sim, mas também vítimas de um sistema que os massacra, que os faz arriscar vidas por quase nada. É o caso de Fábio (Milhem Cortaz) que diz: “Eu ganho R$ 500 por mês. Você acha que eu vou subir favela? Preciso sobreviver”. Não justifica, mas explica um dos motivos do problema. E como diz o capitão Nascimento: “Policial também tem família e medo de morrer”.

Houve quem chiasse por generalizar o comportamento dos estudantes. Eu diria que vestiram a carapuça. Minha faculdade tinha até maconhódromo. O fato é que muitos jovens fumam adoidado por se acharem transgressores. Esqueceram que Woodstock acabou, drogas não são mais românticas e ajudam sim a financiar o tráfico. Portanto, meu amigo, se você está lendo esse texto fumando um baseadinho legal, num maior barato, saiba que qualquer um, inclusive você, pode ser vitima de violência gerada a partir desse cigarrinho “inocente”. É com esse dinheiro sim que o tráfico compra parte do seu arsenal. Não acredita nisso? Estou exagerando? Veja “Babel” (2006) para você ver como o mundo é interligado e o ácido não te faz perceber.

Num mundo perfeito, uma espécie de cruzamento entre Holanda, Suíça e Noruega, liberar as drogas seria uma solução e eu concordo. Mas para que isso aconteça seria preciso praticamente recomeçar este país, reeducá-lo. Refundar, privatizar, qualquer coisa, porque ele começou errado, continua errado e não vejo o menor esforço para consertá-lo. Os políticos estão mais preocupados com os seus próprios interesses do que com os da população. Enquanto isso, ninguém investe em educação.

Quem disse que as Ongs que trabalham nas favelas são colocadas como corruptas e safadas também não entendeu a mensagem. Na realidade, elas fazem parte de um jogo sujo entre quem as financia de um lado, os políticos canalhas, e quem as deixa trabalhar na favela, os traficantes. Alguns podem se corromper e viverem felizes ou aceitar incomodados aquela situação em nome da boa ação que desejam praticar. Uma única Ong é mostrada através de um cidadão que escolheu a primeira opção. Mas ninguém diz que todas são assim.

Agora, é a mais cristalina verdade quando o filme diz que a Ong só funciona com a anuência do tráfico. Ora, até o Michael Jackson teve que pedir benção aos traficantes para filmar o clipe de “They don´t really care about us” no Dona Marta.

O mais importante é que a obra de Padilha mostra o ser humano com suas nuances. Ninguém é 100% bom, muito menos 100% mau. Ora, não somos assim no dia-a-dia? Acabou há muito tempo essa história de herói perfeito e bandido querendo dominar o mundo. Nem os filmes do 007 mostram mais essa dualidade. O maior exemplo disso atualmente é a série “24 horas”, onde Jack Bauer (Kiefer Sutherland) lida com muitos tipos complexos e ele mesmo não é um mocinho, digamos, convencional.
A obra

Feitas estas considerações passemos ao filme em si. E como filme, “Tropa de Elite” é excelente. Ele acompanha a vida trágica de Nascimento e a busca dele por um substituto no Bope que será o jovem e cerebral estudante de Direito Matias ou o passional e impulsivo Neto (Caio Junqueira, em também ótima performance).

A força de suas atuações e a linguagem direta e sem muitos floreios são o seu forte. Tudo aliado a um roteiro extremamente competente, rico, um dos melhores do cinema brasileiro, escrito pelo próprio Padilha, por Bráulio Mantovani, também roteirista de “Cidade de Deus” (2002), e Rodrigo Pimentel, ex-membro do Bope e autor do livro “Elite da tropa” de onde o filme se baseou.

Numa inevitável comparação com “Cidade de Deus”, aliás, pode-se dizer que os filmes são espelhos, dois lados de uma mesma guerra como o são as obras de Clint Eastwood “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”. Na película de Fernando Meirelles, é mostrada a realidade de dentro da favela, numa linguagem mais pop, videoclípica e edição acelerada. O filme de Padilha mostra o olhar do policial, tem uma direção mais conservadora, mas não direitista ou esquerdista, antagonismos tão ralos, conceitos que para mim jazem mortos há muito tempo. Mas suas cenas de ação são eletrizantes.

Em ambos, porém, cada um a seu estilo, se mostra uma realidade assustadora. Se há cinco anos nada foi feito para melhorar, esperamos que agora, com esse novo filme e um secretário de segurança que parece realmente bem intencionado, algo seja feito. A cada vez que o tempo passa, a sensação é de que o tráfico ganha a batalha.


“Tropa de Elite” é um dos melhores filmes do ano. De todos os que vi, rivaliza apenas com “Diamante de Sangue” e “A Rainha”. Ele é, contudo, tão perfeito na realidade que transpõe, que chega a provocar náusea. Por que deixaram o Rio ficar desse jeito? E até quando viveremos assim?

2 comentários:

fábio balassiano disse...

Meu amigo, confesso que li todas as 476 linhas do seu texto. Muito bom, concordo com você em quase tudo. Mas a única coisa que digo é: essa relação que se criou do mito Nascimento está muito mais no problema de quem vê do que no de quem fez. Fui ver o filme no cinema e as pessoas gritavam a cada tiro (como se fora um gol) e aplaudiram no final. Nao duvido, porém, que essas mesmas pessoas tenham comportamentos estranhos, pra dizer o mínimo, fora da sala (fechada) do cinema. abs, parabéns. fábio balassiano

Anônimo disse...

Concordo plenamente. Ainda bem que a minha sessão foi mais civilizada e não teve nenhuma manifestação do gênero. Lamentável.