sexta-feira, 5 de março de 2021

“Pelé”: O Rei, a ditadura militar e o Brasil que vive em círculos

Pelé ganhou um documentário incompleto
Maior jogador de futebol de todos os tempos, Edson Arantes do Nascimento, mundialmente conhecido como Pelé, já teve a sua vida contada e recontada em livros, reportagens e pelo menos dois filmes: “Pelé Eterno” (2004) e “Pelé: o nascimento de uma lenda” (2016). Então, o que mais um documentário poderia acrescentar ao vasto material já produzido sobre o chamado Rei do Futebol? Este era o maior desafio de “Pelé”, documentário dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, que está disponível na Netflix.

Para um conhecedor da história de Pelé, o documentário não traz quase nada de novo. Mas isso não faz o filme ser menos delicioso de assistir. Em quase duas horas, Nicholas e Tryhorn partem de um recorte das quatro Copas do Mundo que o Rei jogou (1958–62–66–70) para condensar a história do jogador de futebol e dar pinceladas sobre o homem por trás do mito. A maior riqueza está no equilíbrio dos depoimentos dos colegas de Santos e de seleção brasileira, e de alguns jornalistas que acompanharam a sua carreira se alternando com as imagens de Pelé em campo.

O pouco tempo, porém, faz com que o documentário não saia do superficial sobre Pelé. De fato, Pelé é gigante demais para caber em 1h48min e o filme dos dois diretores funciona mais como aqueles discos de “Greatest Hits” das grandes bandas da história da música. Tem-se uma noção sobre a sua produção, mas sempre fica faltando algo e não se aprofunda em nada.

E neste ponto não tem como não lembrar de “The Last Dance”, série documental sobre Michael Jordan e o Chicago Bulls, que ganhou dez episódios feitos pela ESPN e que também foram transmitidos pela Netflix. Pelé merecia algo semelhante até para que pudesse ser melhor aprofundada uma série de questões somente levantadas no filme.

Dentre todas elas, destaca-se a relação de Pelé com a ditadura militar e sua falta de posicionamento contra um regime cruel que torturou 20 mil pessoas e deixou pelo menos 434 pessoas mortas ou desaparecidas ao longo de 21 anos, segundo relatório da Human Rights Watch. O que vemos é um Pelé que não era necessariamente alienado aos acontecimentos do Brasil durante os dez anos finais de sua carreira, mas que ao mesmo tempo não queria se envolver. Incomoda vê-lo dizer secamente que para ele não havia mudado nada com ou sem a ditadura, enquanto todos sabemos que por trás dos muros de sua casa e da Vila Belmiro, muita coisa havia mudado, e para pior, para muita gente depois de um período quase mágico que o Brasil havia vivido até 1964, como bem descreveram os jornalistas Juca Kfouri e José Trajano em suas entrevistas para o documentário.

O filme resgata entrevistas antigas de Pelé afirmando não querer se meter com política e dizer não entender de política. Curiosamente, décadas depois, Pelé viria a se tornar o primeiro ministro dos Esportes, entre 1995 e 1998, durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Contudo, o filme também confirma a pressão feita pelo ditador Emilio Garrastazu Médici para que o Rei jogasse a Copa de 1970. O próprio Pelé lembra no filme que recebeu diversos “convites” de políticos para voltar a defender a seleção, que havia abandonado após o fracasso da Copa de 1966, na Inglaterra. Por trás de tudo estava o interesse do governo em usar o futebol a seu favor e para alavancar a sua popularidade em um momento em que o Brasil atravessava o período mais cruel da ditadura após a assinatura do Ato Institucional número 5, em 1968. O que o filme não mostra é que o próprio Pelé foi investigado pela ditadura por suspeita de simpatia com a esquerda brasileira após receber um manifesto pedindo a liberação de presos políticos e se recusou a jogar o Mundial de 1974 porque a ditadura estaria “prejudicando demais o povo”, nas suas próprias palavras.

Por mais que fossem palavras verdadeiras, o que fica mais evidente é que a decisão de jogar em 1970 e não jogar em 1974 partiu única e exclusivamente de Pelé e seus interesses e desafios esportivos. A política não era uma questão para ele. Após 1966, o Rei havia declarado que não defenderia mais a seleção depois de duas Copas em que ele perdeu a chance de disputar por completo por causa de lesões. Pelé sentia-se azarado com Copas do Mundo. Voltar a jogar em 70, aos 29 anos, o que na época significava que ele estava mais perto do fim da carreira do que no futebol praticado hoje em dia, e em meio às desconfianças generalizadas sobre o seu estado físico até do então treinador João Saldanha — depois substituído por Zagallo por pressão da ditadura militar — representava uma espécie de chance de redenção.

E foi. O Mundial de 70 foi de Pelé, onde ele foi o jogador mais decisivo em um dos maiores times já montados em todos os tempos. Foi uma Copa com tanta cara de Pelé, que a sensação que o documentário deixa é que nem a ditadura conseguiu faturar com a vitória do Brasil.

O que não exime Pelé de não ter se posicionado mais fortemente contra a ditadura. Por outro lado, uma análise feita por Juca Kfouri ao mencionar a constante comparação dele com o boxeador Muhammadi Ali, nos leva, no mínimo, a uma reflexão. Ao contrário de Ali, Pelé poderia ser torturado e até morto naquele tempo. É claro que o boxeador foi preso e teve a sua carreira prejudicada por boicotes do governo americano por ter se recusado a lutar na Guerra do Vietnã (1955–1975), mas Kfouri lembra que o Brasil vivia uma ditadura. E numa ditadura, qualquer um, até mesmo o jogador mais famoso do planeta, pode ser preso e torturado. Não se trata aqui de querer passar pano para Pelé, mas entender o contexto. Ele poderia ter feito mais? Talvez sim. E são desconfortáveis as imagens dos encontros de Pelé com Médici. Mas não é uma decisão fácil de se tomar no calor dos acontecimentos e sabendo que não apenas você, mas a sua família também corre risco de vida por qualquer atitude mais combativa que você tomar. Pelé optou por permanecer neutro, e vivendo com as consequências do que fez e do que não fez.

UM BRASIL QUE SE REPETE

Triste é olhar para o documentário de Pelé é ver um Brasil que vive em círculos nas suas alegrias e mazelas. Se o período entre o final da década de 50 e o início da década de 60, foi, como descrito, um dos mais felizes da história recente do país, se sucedeu a ele o início de uma ditadura que atrasou o país em muito mais do que os 50 anos de avanço prometidos pelo governo Juscelino Kubitschek em seu Plano de Metas.

Se é possível traçar um paralelo disso, podemos dizer que houve um período que, se não foi de genuína ou, talvez, romântica, felicidade, daquele tempo em que o Brasil era bicampeão do mundo e tinha inventado a Bossa Nova, houve uma esperança de dias melhores entre o controle da inflação galopante nos governos Itamar Franco (1992–94) e Fernando Henrique Cardoso (1995–2003) e a melhoria de vida de uma grande parcela da população brasileira durante o governo Lula (2003–2011). A isto se sucedeu um período de trevas com a eleição de Jair Bolsonaro como presidente em 2018. Tal como o que foi usado no golpe de 64, o chamado perigo de o país virar comunista era uma das plataformas do presidente eleito, junto com uma usina de fake news, acionada até hoje em momentos de crise do governo. E assim como em 64, soa ridícula e irreal esta ameaça de comunismo até hoje.

Tal como Médici, Bolsonaro usa o futebol para tentar se promover e já vestiu uma invejável coleção de camisas de clubes, embora se declare palmeirense. Assim como o ditador, e talvez até pior do que ele, isso não adianta em nada em sua popularidade. Traz é rejeição de muitos torcedores.

Fora da política, e de volta aos gramados, os ciclos se mantém. Já em 1970, João Saldanha falava em jogar de forma moderna como os europeus, um discurso que volta e meia vemos se repetir. É curiosa também uma entrevista resgatada de Pelé às vésperas da Copa de 1966, afirmando que o futebol já não era mais tão bonito e havia se tornado mais físico. Outro discurso que vemos se repetir de tempos em tempos na imprensa esportiva, quando dentro de campo o próprio futebol se renova em ciclos em que times mais reativos e defensivos e equipes mais ofensivas e que praticam um jogo mais plástico se revezam ditando a moda e as conquistas. E o próprio jogo mudou muito ao longo das décadas.

Estes são apenas alguns paralelos que nos fazem aproximar o tempo em que Pelé era jogador do tempo atual.

SANTOS COMO COADJUVANTE

Com a opção pelo recorte feito pela Copa do Mundo, falta ao documentário se aprofundar em outras questões que poderiam ter sido interessantes. O próprio Santos é coadjuvante no filme, embora seja fundamental na vida de Pelé. Sequer são mostradas as conquistas da Libertadores e o que Pelé fez em campo nestes títulos. Sem contar as inúmeras excursões pelo mundo com o Santos exibindo a sua arte.

Tudo é muito discreto, mostrado muito rapidamente tanto em imagens de jogos quanto em entrevistas. Percebe-se que foi uma escolha para que fosse focado no grande evento Copa e o que aconteceu na vida de Pelé entre estes torneios. Mas não deixa de ser uma pena, pois certamente há uma geração de jovens que conhecem pouco de Pelé e um documentário na Netflix aumentaria o alcance do Rei a muitos que não sabem o quão mágico, único e ainda incomparável Pelé foi dentro do campo. Neste ponto, vale a pena complementar este filme com outro documentário, “Pelé eterno”, de Aníbal Massaini Neto.

O mesmo se pode dizer pela falta de aprofundamento em sua vida pessoal. Sabe-se muito pouco no documentário sobre o Edson por trás da figura do Pelé. Há apenas uma passagem sobre o seu primeiro casamento e as dificuldades em mantê-lo em meio aos muitos compromissos profissionais e assédios de mulheres ao maior jogador do mundo, mas não se fala do que aconteceu depois, dos demais relacionamentos de Pelé, dos filhos. Ficou uma lacuna por preencher.

Mas nada disso, diminui o quão fascinante é a vida de Pelé e, principalmente, o que ele fez dentro de campo. Dentro de campo, por mais que tentem, o Rei permanece inigualável. E em meio a revisionismos tacanhos, é importante que o documentário termine com uma informação fundamental: Pelé marcou 1.283 gols em 1.367 jogos. Um recorde que muito dificilmente algum outro jogador um dia conseguirá bater.

Cotação da Corneta: nota 7,5.



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