sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Uma obra de pura poesia

Moonlight é pura beleza
Eu vejo muita porcaria, muito filme mais ou menos. Enfim, eu gosto de cinema mesmo quando ele é ruim. Mas é nas raras vezes em que ele é maravilhoso que o amor por essa arte mais vale a pena. "Moonlight" provocou na Corneta esse prazer único e raro. É um dos filmes mais impactantes, bonitos e poéticos entre os que concorrem ao Oscar. 

Segundo longa do diretor Barry Jenkins, o filme é um lírico estudo de um personagem que enfrenta todas as adversidades possíveis da vida, ao mesmo tempo que vai sendo moldado pela realidade difícil num bairro pobre de Miami. Dificuldades que são ainda maiores quando se trata de um jovem negro e gay. 

"Moonlight" tem uma força que não vem das palavras. Vem dos gestos, dos olhares, dos enquadramentos escolhidos por Jenkins, dos silêncios... Da necessidade de buscar um caminho que está no coração e sentir o aperto sufocante de não conseguir gritar para o mundo o que você deseja ser. Há ainda uma força que oprime o personagem principal além do limite, quando tudo o que ele deseja é, primeiro entender quem é, depois ser aceito pelo que é. E, por fim, ter uma vida próxima do normal realizando os sonhos e os desejos que qualquer um tem. 

Dividido em três partes, ele conta a história de um jovem durante a sua passagem da infância para a idade adulta. Tímido, sem saber o que está sentindo, mas vendo-se diferente da maioria, Chiron (Alex R. Hibbert) é quase sempre monossilábico. Uma característica que levará até a idade adulta. A não ser pela relação com Kevin (Jaden Piner), o melhor amigo, ele nunca se sente muito parte daquela coletividade na escola. E ainda precisa encarar uma vida difícil em casa com uma mãe viciada em drogas (a ótima Naomie Harris). 

É na infância que Chiron conhece o traficante Juan (Mahershala Ali, outro que está muito bem no filme), cubano que vive em Miami e vende drogas para, entre tantas outras pessoas, a sua mãe. Ao lado da namorada Teresa (Janelle Monáe), ele ajudará a cuidar de Chiron e dar algumas lições sobre a vida nos poucos momentos em que convivem juntos. 

Sem pai, Chiron acaba tendo em Juan a representação mais próxima possível da figura paterna. É curioso que venha de um bandido a sensibilidade para não julgá-lo e para orientá-lo. E ele sequer se assusta com as perguntas que martelam desde sempre a cabeça do menino: "O que é bicha?", "Eu sou bicha?". 

Mesmo com uma convivência tão curta, o traficante deixa marcas indeléveis no garoto e no homem que ele se tornará. "Isso não é você. Quem você está querendo ser?", questiona Kevin (André Holland) ao reencontrá-lo depois de uma década de afastamento. 

A primeira parte é a mais poética de todas. Com suas pausas, seus silêncios, seu jogo de imagens, por vezes lembra até filmes do diretor Terrence Malick (que eu amo). Mas o filme jamais perde a sua força nos demais capítulos desse livro audiovisual. 

A segunda parte passa pela adolescência de Chiron (Ashton Sanders). Juan já não está mais por perto. Morreu pelo caminho e deixou a sua vida como outras tantas pessoas que vêm e vão na vida do ser humano. Mas a mãe segue presente e cada vez mais afundada nas drogas. Teresa surge ainda mais forte como uma mãe substituta, que lhe dá o carinho que precisa. 

Mas a vida na adolescência torna-se ainda mais infernal quando o que não passava de provocações de colegas na infância transforma-se em bullying violento. Chiron precisa transformar-se, defender-se de tudo e todos até a hora que inevitavelmente terá que explodir. Tantas coisas estão reprimidas por tanto tempo e a adolescência é o momento em que Chiron arromba as portas e sofre as consequências disso. 

Mas a opressão da sociedade é algo do qual Chiron (na vida adulta vivido por Trevante Rhodes) nunca se libertará. Que se revela em seus gestos econômicos e seus movimentos cuidadosos, como se estivesse sempre pisando em ovos e estudando um ambiente potencialmente hostil. Mas ao mesmo tempo que o mundo lhe é hostil, ainda mais agora que, além de negro e gay, ele se vê envolvido com atividades criminosas, seus olhares para o nada buscam alguém que o enxergue e o entenda. Chiron sobrevive enquanto só quer viver. 

"Moonlight" é um filme duro, mas de uma poesia e uma beleza ímpares. É CINEMA em caixa alta, em letras garrafais. Gigante como os que a gente esbarra de vez em quando na vida. Uma obra-prima que merece ser reverenciada. Por isso, ganhará da Corneta uma nota 9,5. 


Indicações ao careca dourado: melhor filme, ator coadjuvante (Mahershala Ali), atriz coadjuvante (Naomie Harris), diretor (Barry Jenkins), roteiro adaptado, trilha sonora original, fotografia e montagem.

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