quarta-feira, 20 de julho de 2016

Sonho de valsa

Martinha, Gigi e Carol eram amigas inseparáveis. Tão amigas que as duas últimas já estavam acostumadas com as esquisitices de Martinha e nem ficavam mais chocadas.
Gigi costumava dizer que Martinha era aquariana. Logo, gostava de causar, de ser diferentona e sempre ficar fora da casinha do senso comum. Fora isso, Martinha era uma pessoa afável e parceira para todas as horas. Por isso, elas eram muito unidas há 15 anos, desde que se conheceram no primeiro período da faculdade de economia.
Mas naquela tarde, Martinha passou um pouco do limite. Tudo começou num piquenique que as amigas organizaram no Parque Lage. Uma mera desculpa para jogarem conversa fora, falarem trivialidades e saírem um pouco da rotina dos swaps reversos e CDBs do dia a dia pesado nas instituições em que trabalhavam.
- Fiz um brownie que, modéstia à parte, está excelente. Aproveitando que essa é uma ocasião especial, usei chocolate Lindt e ficou um espetáculo - propagandeou Carol, a mais talentosa das três quando o assunto era cozinhar. 
- E quem garante que ele ficou excelente mesmo? Há uma opinião isenta para comprovar? - provocou Martinha, apenas sendo Martinha. 
- O Júlio provou - devolveu Carol. 
- Namorado não conta. Homem apaixonado é mais burro que um protozoário - devolveu Gigi.

Mas Gigi e Martinha tiveram que dar o braço a torcer. O brownie realmente era de outro mundo.
Além da economia, o chocolate era um ponto de interseção daquele trio inseparável. Tanto que o grupo de WhatsApp delas era chamado de "Rainhas do Cacau".
- Não tem nada no mundo melhor que chocolate. Maior invenção do homem - disse Gigi. 
- Ao lado do avião, que te proporciona ir para outros lugares do mundo...
- ... Para comer chocolate! - disse Carol, completando a frase de Martinha, já dando gargalhadas.

Carol, então, resolveu manter o assunto na crista da onda perguntando às amigas qual era o chocolate favorito delas. Disse que ela gostava da barra Lindt de caramelo. "Derrete na boca e é quase um orgasmo", comparou.
Mais exótica do trio, Gigi citou um chocolate com açafrão que ela disse ter experimentado numa viagem ao Irã pelo Banco Mundial. Ela garantiu ser o paraíso na terra. "Era maravilhoso. Nunca senti nada tão diferente na boca", dizia.
- Eu gosto de Sonho de Valsa - afirmou Martinha, seca e cortante como uma navalha.
O silêncio tomou conta das duas amigas.
- Que foi, gente? Eu adoro Sonho de Valsa. É delicioso!
- Você não pode estar falando sério, Marta Regina! - retrucou Gigi. 
- Ela só quer ser polêmica no piquenique - disse Carol. 
- Estou falando sério. Eu amo Sonho de Valsa. Tem coisa mais gostosa do que sentir aquele chocolate, ouvir o estalo daquele wafer e mergulhar profundamente naquele creme de castanha de caju? Sonho de Valsa é tudo. Sonho de Valsa é mara.

As amigas não conseguiam acreditar. Não é possível que alguém pudesse gostar daquela classe de bombons redondos a R$ 1 da Loja Americana formada pelos famigerados Sonho de Valsa, Serenata de Amor e Ouro Branco.
- Na minha caixa de bombom, o Sonho de Valsa é sempre o último a ser comido. E fica sempre com o azarado que chegou atrasado - disse Carol. 
- Certa vez, num Natal da família, Tio Rubens comprou uma caixa de bombom "porque Jesus Cristo também gostava de adoçar a vida". Éramos 15 reunidos na casa dele. Cada um pegou um bombom da caixa. Quando Marcos, o namorado de Tio Rubens, percebeu que sobrou o Sonho de Valsa para ele, fez uma cara de decepção, virou e disse: "Estou de dieta" - contou Gigi. 
- Seria a minha primeira opção - garantiu Martinha.

Era inconcebível para Gigi e Carol que o Sonho de Valsa fosse o chocolate preferido de alguém. Tinham mentes brilhantes. Explicavam a teoria da relatividade como quem faz um pão na chapa. Mas elas não entendiam a equação Sonho de Valsa + Martinha = amor.
- Vocês não sabem o prazer que é comer um Sonho de Valsa aos poucos. Dando mordidinhas no chocolates até surgir divinamente aquela massa bege de creme de castanha de caju pronta para receber você. A melhor forma de comer Sonho de Valsa é dissecando-o - garantiu Martinha. 
- Para, Marta! Sai desse corpo que não te pertence! Nos últimos anos houve uma abertura dos portos do cacau, nos trazendo o melhor do mundo. Não precisamos mais destes trágicos espécimes nativos. Agora temos até Kit Kat sendo vendido no sinal de trânsito! - irritou-se, Carol. 
- Nem ligo. Mas se fosse Sonho de Valsa eu levava a caixa. 
- Hahahaha, gente. Eu sabia que a Marta gostava de uma polêmica. Mas essa história supera todas. Até aquele sonho que ela teve com um travesti - disse Gigi. 
- Quando eu casar, quero que a minha noite de núpcias seja numa cama de Sonhos de Valsa. 
- Iiiirc!! - indignou-se Carol. 
- Aliás, quem precisa de marido quando se tem Sonho de Valsa? Eu casaria com um.

No fim das contas, Martinha era sempre garantia de que o papo renderia. A tarde acabou sendo divertida pela polêmica do Sonho de Valsa, que entraria para a história das amigas como "a última da Martinha". Ela ainda ganhou o apelido interno de Creminho de Caju.
Quando foi embora, Martinha ainda tentou comprar um Sonho de Valsa na padaria. "Bateu desejo depois desse papo", disse ela. Mas sua procura foi frustrada. Só tinha Diamante Negro e Chokito.
Quando chegou em casa, Carol encontrou Júlio estatelado no sofá vendo "House of Cards" no Netflix e comendo uma caixa de bombom. Júlio perguntou se ela queria começar com ele a quarta temporada, mas Carol declinou. "Vou tomar um banho. Estou cansada".
- Ainda tem bombom aí? - ela perguntou. 
- Sim, sobrou um. Pode pegar. Quero mais não.

Carol pegou a caixa, abriu e deparou-se com um... Sonho de Valsa. Olhou para ele demoradamente, foi até o quarto e fechou a porta. Mais uma vez fitou aquele bombonzinho redondo em uma embalagem rosa e preta. Abriu e comeu. Comeu discretamente, quase sem fazer barulho, em um esforço louvável para não ser notada pelo universo.
Amava Sonho de Valsa. Mas não admitia isso nem para as amigas.

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