terça-feira, 1 de janeiro de 2019

"Creed II" merecia ser mais do que uma cópia de "Rock IV"

O Drago é grande mesmo
“Creed”, o filme de Ryan Coogler lançado em 2015, de certa forma renovou a franquia de Rocky Balboa ao apresentar um novo protagonista e dar prosseguimento à vida do lutador interpretado por Sylvester Stallone, agora no papel de treinador e mentor de Adonis Creed (Michael B. Jordan), filho do ex-campeão e amigo de Rocky, Apollo. 

Tão elogiado, o filme chegou a ter uma surpreendente, mas merecida indicação ao Oscar para Stallone pelo seu papel de um Rocky ainda tentando reencontrar seu papel no mundo e sentindo-se cada vez mais só anos após a morte de sua eterna amada Adrian, interpretado pela atriz Talia Shire em todos os filmes da franquia até a morte da personagem. 

O sucesso de público e crítica do primeiro filme provocou um natural desejo por uma continuação. Não mais com Coogler como diretor, que depois passaria a se dedicar ao elogiado “Pantera Negra” e sua continuação, ainda sem data de lançamento prevista, mas com Steven Caple Jr. “Creed II” é apenas o seu segundo longa-metragem como diretor e é uma cópia quase fiel de “Rock IV”. 

Talvez não seja por acaso que o roteiro de Stallone e Juel Taylor fosse revisitar a história mais “nacionalista” de Rocky para contar a história da continuação da vida de Adonis Creed, agora um campeão mundial em busca de novos desafios e enfrentando mudanças na vida pessoal - a possibilidade de trocar a Filadélfia por Los Angeles, o casamento com a cantora Bianca (Tessa Thompson). O objetivo parece ser atrelar ainda mais a trajetória de Adonis a de Rocky, mostrar ele enfrentando os mesmos desafios e apelar à memória afetiva dos fãs da franquia. Eles viram o confronto de Apollo e Rocky com Ivan Drago (Dolph Lundgren), agora querem ver os filhos se enfrentando. E, convenhamos, na história do esporte, este tipo de narrativa é bastante comum.

Por outro lado, justamente por esse apelo a um mundo que não mais existe nas configurações de 1985, ano do lançamento do quarto filme do pugilista vivido por Stallone, “Creed II” já nasceu um pouco datado. Quando “Rock IV” foi produzido, o mundo vivia os anos finais da Guerra Fria, ainda havia muro de Berlim e a natural polarização entre Estados Unidos e União Soviética. Incontáveis foram os filmes em que os russos eram os vilões e os americanos salvavam o mundo nas mais de quatro décadas de cinema durante aquele período. “Rocky IV” foi só mais um. Naquele filme, Rocky Balboa via o seu amigo Apollo ser assassinado no ringue por Drago e busca uma revanche contra Drago na Rússia, casa do inimigo, para vingar a pátria americana. Tudo com direito a trilha sonora heroica, treinamento heterodoxo e uma clara visão de hostilidade por parte dos soviéticos. Só o Stallone, aliás, encarnou dois heróis de sucesso desta época da Guerra Fria. Além de Rocky, o próprio Rambo, cujo quinto filme tem previsão de lançamento para este ano. 

Naquela época de “Rocky IV” havia um contexto geopolítico, que por mais que fosse maniqueísta, ajudava a criar uma polarização, embora tacanha, de Ocidente x Oriente, EUA x URSS. O contexto hoje é um pouco diferente. Heróis e vilões, se fosse possível ver a política desta forma, estão mais amalgamados do que outrora. Até porque o volume de informação circulada, bem como de fontes, é bem maior, o que impede uma narrativa dominante. Se, por vezes, ficou mais fácil manipular a história – e a indústria de fake News está ai para provar isso – é também mais difícil ser o dono da história e da sua narrativa. E se a Rússia de Putin ainda merece toda a desconfiança, os Estados Unidos de Trump não ficam muito atrás. 

Portanto, levar esse contexto para a história de Creed é empobrecer esta leitura contemporânea, mais diversificada e que se propõe mais moderna para a franquia Rocky Balboa. Lembremos que quando o primeiro Rocky surgiu em 1976, os grandes nomes do boxe eram todos negros. Joe Frazier, Muhammadi Ali, George Foreman, Leon Spinks, Ken Norton e Larry Holmes, todos campeões mundiais dos pesos pesados entre as décadas de 70 e 80 eram negros. Nesse cenário, Rocky era um lutador de sucesso branco - seu apelido era “o garanhão italiano” - num mundo em que os negros davam as cartas tanto dentro quanto fora do ringue. Afinal, Don King era o grande nome organizador de lutas do esporte. 

Na franquia de Rocky, o lugar do negro era, no máximo, o de coadjuvante. Creed surge para corrigir essa trajetória e reafirmar o protagonismo negro nesse esporte ao mesmo tempo em que o cinema e, especialmente, o Oscar eram alvos de críticas pela falta de negros concorrendo aos prêmios. É curioso que uma das últimas falas de Stallone no filme seja virar para Creed e dizer: “Este é o seu momento”. É claro que era o personagem em sua humildade, e Rocky sempre foi pintado como um personagem humilde e iletrado das periferias da Filadélfia, dizendo que Adonis tinha que brilhar como o protagonista máximo daquela história, mas, numa interpretação livre, podemos também dizer que era o momento dessa virada, enquanto Rocky agora é um coadjuvante. Pois esse é também o papel do treinador. 

Da mesma forma, o papel da mulher na franquia de Rocky, que também era de coadjuvante, é absolutamente diferente em Creed. Adrian era uma mulher simples que vivia para o marido e sem grandes ambições a não ser ter uma vida como esposa de Rocky. A Bianca de Creed é uma mulher independente e com uma carreira ascendente como cantora. Ela está longe do papel de mulher que sofre na frente da TV vendo o marido apanhar. Ela entra junto com ele, conduz o marido até o ringue com atitude e desafiando os rivais. 

Além disso, Bianca tem uma deficiência auditiva agora herdada pela filha do casal, que traz a inclusão das pessoas com deficiência dentro da nova proposta da franquia e promete render novas histórias em torno desse tema. 

Por tudo isso que revisitar “Rocky IV”, e olhar mais para o passado que para o presente e futuro, que “Creed II” deixa a desejar como proposta de cinema para além do mero entretenimento. E como entretenimento ele não deixa de ser muito bom, pois emula tudo o que o filme de 1985 tinha. A derrota dramática para Drago no início, o treinamento nada ortodoxo de Creed no deserto lembrando o treinamento na neve de Rocky, a ida à Rússia para a luta final, a hostilidade do público russo, a trilha sonora característica...Tudo é igual ao filme de 85. É ainda há o elemento de “reescrever a história”, visto que o pai de Adonis morreu no ringue para Ivan Drago. 

A questão é que “Creed” apontava para outros caminhos. E o filme de 2015 é daqueles que poderiam figurar em listas dos melhores sobre boxe. E neste ponto, esta ainda jovem franquia se desviou um pouco do que parecia estar se desenhando. 

Talvez o objetivo fosse apenas soltar as faíscas da memória afetiva dos filmes de Rocky. E o quarto é um dos mais emblemáticos. Porém, “Creed II” merecia mais do que ser uma mera cópia de um filme de mais de 30 anos atrás. É um filme que diverte e entretém, mas nada além disso. 

Cotação da Corneta: nota 7.

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