quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Um artista em busca da identidade

Pintar é preciso. Viver não é preciso
Muitos filmes alemães refletem sobre o período entre guerras. Mais especificamente sobre a segunda guerra e o domínio nazista. Florian Henckel Von Donnersmarck parece gostar de refletir sobre o quanto a realidade deste período influência o trabalho de um artista. Pelo menos é o que mostra seus dois filmes alemães. Se “A vida dos outros” (Das Leben der anderen, 2006), era sobre um autor de teatro perseguido e que soube driblar a censura e vigília da Stasi, a polícia da antiga Alemanha Oriental, seu mais novo filme, “Nunca deixes de olhar” (Werke ohne autor, no original), é um pouco sobre um artista em busca da sua própria identidade em meio a uma vida e a própria Alemanha fragmentária. 

“Nunca deixes de olhar” é um filme brutalmente lindo. Conta a história do jovem Kurt Barnert (Tom Schilling), que desde pequeno demonstra um grande talento para pintar, mas cresce com dificuldades numa Alemanha prestes a entrar na Segunda Guerra Mundial. 

Estávamos em 1937, Adolf Hitler era um líder assustadoramente idolatrado pelas massas enquanto por trás dos panos o governo nazista conduzia uma política terrível de purificação da população. Qualquer pessoa que mostrasse algum problema físico ou mental era eliminada. A ordem aos médicos era expressa: a vaga nos hospitais era apenas para os arianos puros que possam transformar a Alemanha numa raça perfeita. 

É por causa disso que Kurt se vê diante da sua primeira tragédia: a perda da tia, grande incentivadora do seu talento e de espírito puramente artístico, mas que supostamente sofria de esquizofrenia. 

E a partir desse momento que as histórias das famílias de Kurt e do professor Carl Seeband (Sebastian Koch) começam a se cruzar. Seeband é um ginecologista famoso que dirige a clínica de Dresden onde sua tia foi assassinada. Mais à frente, Kurt acabará entrando para a família do professor a partir do namoro com Ellie (Paula Beer), jovem estudante de moda da Academia de Artes de Dresden. 

Cada um deles encontra uma forma de sobreviver a mudança do regime ditatorial. Do nazismo para o socialismo soviético, o professor conta com a sorte para garantir a proteção de um general e a retomada da sua vida de bonança ao mesmo tempo em que apaga o seu passado nazista. Kurt, por sua vez, trabalha duro. Os primeiros passos da sua arte são escrevendo letras em uma fábrica de placas. Daí, ele ganha incentivo para a escola de Belas Artes e vai galgando trabalhos graças ao seu talento. 

Kurt, porém, nunca se mostra satisfeito. Von Donnersmarck faz questão de mostrar que não importa o regime. Quando a arte não é livre, ela não é genuína. Se os nazistas faziam questão de ridicularizar a arte moderna, os Kandinskys e tudo o que apresentava uma postura crítica, os soviéticos faziam questão de negar os artistas que não pensavam no comunismo e no bem do proletariado. Picasso era o maior exemplo do que não se seguir. 

E no meio disso, Kurt parecia cada vez mais insatisfeito com seus murais exibindo a glória do trabalhador de foice e martelo. Tudo era falso, tudo era irreal, tudo era sem identidade. Era preciso mudar para buscar a verdade. A verdade que ele tanto persegue com afinco no filme.

Assim, Kurt e a namorada vão em busca de um mundo todo novo no lado ocidental antes da construção do Muro de Berlim. Buscar a verdade acaba sendo a senha para Kurt se mudar e refletir sobre a pureza das imagens a partir de fotografias antigas. Mas até lá, há um longo processo de aprendizado, desconstrução, destruição, recriação. 

Entre os méritos do filme de Von Donnersmarck é o de mostrar essa jornada dolorosa que é a da criação. E de como o meio, o ambiente e a bagagem de vida do artista pesam demais sob a sua obra. 

É curioso que o diretor tenha optado também por fugir do caminho fácil da revelação hollywoodiana. Apenas nós enquanto espectadores e, no fim, Seeband, sabemos da conexão de dor e mortes que liga o professor a Kurt. O personagem principal nunca sabe disso, mas a sua obra acaba por se revelar, por coincidência, de uma enorme força a partir destes eventos. Talvez a arte tenha um aspecto divino que nunca conheceremos de criar conexões inimagináveis. 

“Nunca deixes de olhar” é uma saga muito bela e com merecidas duas indicações ao Oscar. É um filme que merece ser apreciado pela força dessa jornada de Kurt e pelas transformações que a arte provoca. 

Indicações ao Oscar: fotografia e filme estrangeiro. 


Cotação da Corneta: Nota 8

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