quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O minimalismo e as reflexões de Godard

A mão, o ponto de partida de tudo
Há anos Jean-Luc Godard vem reduzindo seu cinema para camadas cada vez mais simbólicas e minimalistas. Se nas décadas de 70 e 80, seus trabalhos já chamavam a atenção por uma “ausência de roteiro”, o que na verdade era um texto com linhas gerais que jogavam para o improviso em cena, nas décadas seguintes até o trabalho dos atores passou a ser reduzido ao mínimo. 

Seus filmes hoje são como colagens da história e reflexões sobre os assuntos aos quais ele têm mais interesse: a história e o cinema. E o paralelismo que uma tem com o outro. 

Mais novo trabalho do prolífico diretor, “O livro da imagem” é o ápice do seu cinema de simbolismos e colagens. Não há atores. No máximo a voz cavernosa de Godard, hoje com 88, narrando o filme é fazendo reflexões sobre o século XX, o novo século, a humanidade, a sociedade, e, claro, o cinema. 

Para Godard, o cinema é o livro de imagens do século XX. Da mesma forma que a Bíblia, o Corão e outros textos religiosos são as bases para a vida em sociedade e contam a história dentro de suas respectivas religiões, o cinema é a documentação da história da modernidade e da contemporaneidade. 

Através do “Livro da imagem”, Godard nos convida a refletir sobre a história. E constrói uma jornada pelo século XX numa colagem incessante de imagens e sons que perpassam a história da arte nas suas mais diferentes formas. Tudo dividido em cinco atos, como cinco são os dedos das mãos, como cinco são os sentidos. Cinco é um número que perpassa todo o filme, assim como a metáfora em torno das mãos e seus significados simbólicos em cada atitude.

É através desta metáfora das mãos que Godard chama a atenção para uma história construída pelos signos da linguagem corporal. São as mãos usadas para o amor, mas que também trazem decepção no primeiro ato, as mãos usadas para a violência do segundo ato ou as mãos que legitimam o uso da força pelo espírito das leis do quarto ato. 

A primeira parte do filme é um conjunto de reflexões do que Godard já havia de certa forma falado em outros trabalhos como “Film Socialism” (2010) ou “Para sempre Mozart” (1996). 

A última parte é que traz um Godard com um olhar sobre o Oriente Médio raras vezes, ou talvez até nunca, mostrado com tanta profundidade. A partir de um jogo de palavras em que afirma que “Sheherazade teria contado uma história diferente em 1001 dias”, e não noites como a tradicional história, Godard exibe a falência do olhar do ocidente sobre o oriente. 

Para ele, vemos o oriente como uma massa cultural única, e não como se cada país tivesse a sua própria cultura e visão de mundo. Da mesma forma que olhamos para o oriente como o espelho do que não somos. E isso vai se refletindo na forma como o cinema retrata o oriente. É quando surgem as mãos em movimentos delicados, pintadas com símbolos que não compreendemos ou segurando com força o Corão em sua reza. 

Num momento mais polêmico, Godard apoia a bomba. Apela ao lado positivo da bomba. A bomba, ele vê, é a revolução como a que já ocorreu em outros tempos na Europa. É a reação do oprimido. É complicado apoiar isso em tempos em que a Europa sofre tanto com ataques terroristas. Mas é possível entender o lado de Godard ao tentar mostrar isso como reação e não como ação. Daí o paralelo com movimentos revolucionários. 

Godard é um gênio. Muitas vezes incompreendido, muitas vezes visto como chato e de difícil entendimento. Mas seu cinema permanece vivo, instigante e prazeroso para os que aceitam o desafio de tentar decifrá-lo a cada trabalho. 

Cotação da Corneta: nota 7,5

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