O taxista nostálgico estava impossível naquela noite.
Ainda não engolira o passageiro que pegara uma hora antes e tentara humilhá-lo.
Era, nas palavras dele, “um típico playboy da Zona Sul querendo impressionar a
gatinha da vez que ele estava comendo”. Mas voltemos um pouco no tempo. O tempo
em que o operário das palavras encontrou o taxista nostálgico.
É madrugada na Lapa. Uma típica madrugada cheia de
cores e tipos diferentes nas imediações dos Arcos. As ruas e os bares estão
lotados. Ao deixar um show em mais um dia de trabalho, dores nas costas e o
olhar turvo de cansaço, o operário das palavras faz sinal em busca de um táxi.
É rejeitado por uns e ignorado por outros que consideram a corrida muito curta.
Mais uma típica noite no Rio de Janeiro. Quando já começava a refletir sarcasticamente
sobre a ideia de voltar para casa a pé, um motorista finalmente parou.
O boa noite protocolar se segue à indicação do
destino. Mas o silêncio não permaneceria muito tempo naquele carro. Afinal, um
taxista que não puxa assunto não é carioca. Mas ele queria mais do que criar
uma conexão com o seu passageiro. Desejava desabafar. Algo que o operário das
palavras só perceberia quando já estava mergulhado numa conversa que só teria
fim após o pagamento da corrida.
No rádio, Rita Lee exibe todo o seu talento numa
daquelas emissoras do gênero “good times”. O taxista aumenta o volume e começa
a cantar. "E nem só de cama vive a mulher/Por isso não provoque/É cor de
rosa choque".
Exibindo uma boca com sorriso largo que revelava a
ausência de laterais no sistema defensivo, o taxista do alto dos seus 50 e
muitos anos para a cantoria e resolve virar crítico musical:
- Isso é que é música! Rita Lee, parceiro! Não se
encontram mais cantoras como a Rita Lee. Quem é que seria capaz de fazer uma
poesia como essa hoje? Um funkeiro? Nada. Espera sentado. Vocês vivem na pior –
disse o protótipo de Nelson Motta.
- No meu tempo de jovem, na sexta-feira eu escolhia o
que eu ia ver no Circo Voador. Era Rita Lee, Cazuza, Raul Seixas... Eu conheci
todos eles. Para não falar na Legião Urbana. Renato Russo era demais. E o que
eu deixei de herança para vocês? Anitta! Hahahaha - gargalhou diabolicamente o
taxista.
O operário das palavras teve que se manifestar. Tudo
bem que infelizmente não era contemporâneo daqueles grandes nomes da música
brasileira, mas daí a dizer que era da mesma geração de Anitta era quase um
insulto.
- Alto lá! Anitta não é do meu tempo não! Isso aí é
para os mais jovens – argumentou, dando a senha para o taxista continuar
falando sem parar.
- Agora há pouco peguei um rapaz todo metidinho. Acho
que ele queria impressionar a mulherzinha que ele tava comendo e começou a
esculachar as músicas que eu tava ouvindo no rádio. Disse que era coisa de
velho, de gente ultrapassada, essas coisas – contava ele, frequentemente
tirando as duas mãos do volante para dar emoção à viagem. - Foi quando eu
comecei a acabar com ele em todas as áreas da vida.
A partir daí, o taxista nostálgico exibiu todo o museu
de grandes novidades de sua existência.
- Eu desfilei em escola de samba, sabe. Ai falei pra
ele. Cara, eu desfilava na avenida com a Pinah. O que você tem hoje? Claudia
Leitte! - vangloriou-se o taxista nostálgico, dando novas gargalhadas de lobo
mau que comeu os três porquinhos e gesticulando muito enquanto olhava para o
operário da escrita, afinal, o trânsito está sempre livre e os sinais estão
sempre abertos para o táxi.
- Acabei com ele em todas as áreas. Todas as áreas. Música?
Rita Lee, Legião, Cazuza. E você tem o que? Mr. Ca-tra? A-nit-ta? Fala sério -
completou ele, falando daquele jeitinho debochado e fazendo questão de separar
as sílabas dos artistas que desprezava.
O taxista nostálgico é o típico carioca. O léxico é
rico em gírias e palavrões intercalados pela construção dos pensamentos. Ele
tem ainda aquela fala malemolente, espécie de cruzamento de Evandro Mesquita
com Fernanda Abreu. E, claro, adora futebol, uma especialidade do brasileiro
médio. Flamenguista, o taxista faz uma revelação.
- Eu era da torcida do Flamengo. Naquele tempo, só
tinha craque. E a gente conhecia todo mundo de frequentar a casa. Zico, Júnior,
Leandro. Quando tinha aniversário, eles sempre chamavam a gente. E ai deles se
não chamassem - disse o taxista, revelando que as práticas
"carinhosas" das torcidas organizadas vêm de tempos imemoriais.
Vejam bem, o taxista nostálgico desfilou com a Pinah,
foi de torcida organizada, conhecia craques do futebol. O operário das palavras
não sabia como ele ainda não havia lançado uma biografia. Mas o taxista queria
mesmo era contar como achincalhou o playboy.
- Acabei com ele! Naquela época todo time tinha
craque. Zico, Roberto, o Fluminense tinha um jogador. Como era mesmo o nome?
- Romerito?
- Isso! Jogava demais o Romerito. O Vasco tinha um
timaço também. Nunca ganhava do Flamengo, mas era um timaço. Enquanto isso, o
rapazinho aqui tem que aguentar Lu-cas Mug-ni. Porra! Acabei com ele!
A viagem está chegando ao fim. Não sem antes o taxista
nostálgico simular lances do Zico tirando as mãos do volante e os pés da
embreagem e do acelerador. E revelar velhas práticas da torcida rubro-negra.
- A torcida do Flamengo era foda. Botava 60 mil
pessoas no Maracanã contra o Bonsucesso. Jogava junto. Mas também cobrava.
Quando tinha jogador na noite, a gente ia em cima deles. Qual é? Está fazendo o
que aqui? Tem jogo amanhã, parceiro. Por isso que o Zico tem toda a moral que
tem. Nunca foi para a noite. Foi aquela mulher, a Sandra, que deu um jeito na
vida dele.
Já o Marcelinho Carioca não gozou do mesmo prestígio.
- Isso era um filho da puta. Perdeu um pênalti contra
o Vasco. Uma vez teve uma festa na casa do Júnior Capacete e nós da torcida
fomos. Lá na festa juntamos ele. Se o Júnior não impedisse, a gente ia encher
ele de porrada. Saiu daqui correndo.
- Para brilhar no Corinthians - provocou o operário
das palavras.
Um breve silêncio de contrariedade tomou conta do
taxista nostálgico. Mas ele logo voltou a falar dos seus dias gloriosos de
mandachuva informal da Gávea. Eram bons tempos aqueles, mas hoje ele garante
estar sossegado. Ajeita os óculos de aro grosso e traça as linhas presentes de
sua biografia.
- É uma vida dura a de taxista. Trabalha sábado,
domingo, feriado... Mas eu não reclamo não. Eu vivi - disse ele, dando aquela
ênfase de quem sentiu a vida empiricamente.
Chegamos finalmente ao destino.
- É R$ 30, parceiro.
- Taí, amigo.
- Obrigado. E vai com Deus. Até a próxima.
Ao deixar o operário
das palavras, o taxista nostálgico volta a aumentar o som do rádio e segue
revigorado pelas ruas do Rio de Janeiro. De certa forma, naqueles minutos, ele
viajou no tempo para um Circo Voador e um Maracanã que não voltam mais.
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