sexta-feira, 12 de junho de 2015

O taxista nostálgico - Nova versão

O taxista nostálgico estava impossível naquela noite. Ainda não engolira o passageiro que pegara uma hora antes e tentara humilhá-lo. Era, nas palavras dele, “um típico playboy da Zona Sul querendo impressionar a gatinha da vez que ele estava comendo”. Mas voltemos um pouco no tempo. O tempo em que o operário das palavras encontrou o taxista nostálgico.

É madrugada na Lapa. Uma típica madrugada cheia de cores e tipos diferentes nas imediações dos Arcos. As ruas e os bares estão lotados. Ao deixar um show em mais um dia de trabalho, dores nas costas e o olhar turvo de cansaço, o operário das palavras faz sinal em busca de um táxi. É rejeitado por uns e ignorado por outros que consideram a corrida muito curta. Mais uma típica noite no Rio de Janeiro. Quando já começava a refletir sarcasticamente sobre a ideia de voltar para casa a pé, um motorista finalmente parou.

O boa noite protocolar se segue à indicação do destino. Mas o silêncio não permaneceria muito tempo naquele carro. Afinal, um taxista que não puxa assunto não é carioca. Mas ele queria mais do que criar uma conexão com o seu passageiro. Desejava desabafar. Algo que o operário das palavras só perceberia quando já estava mergulhado numa conversa que só teria fim após o pagamento da corrida.

No rádio, Rita Lee exibe todo o seu talento numa daquelas emissoras do gênero “good times”. O taxista aumenta o volume e começa a cantar. "E nem só de cama vive a mulher/Por isso não provoque/É cor de rosa choque".

Exibindo uma boca com sorriso largo que revelava a ausência de laterais no sistema defensivo, o taxista do alto dos seus 50 e muitos anos para a cantoria e resolve virar crítico musical:

- Isso é que é música! Rita Lee, parceiro! Não se encontram mais cantoras como a Rita Lee. Quem é que seria capaz de fazer uma poesia como essa hoje? Um funkeiro? Nada. Espera sentado. Vocês vivem na pior – disse o protótipo de Nelson Motta.

- No meu tempo de jovem, na sexta-feira eu escolhia o que eu ia ver no Circo Voador. Era Rita Lee, Cazuza, Raul Seixas... Eu conheci todos eles. Para não falar na Legião Urbana. Renato Russo era demais. E o que eu deixei de herança para vocês? Anitta! Hahahaha - gargalhou diabolicamente o taxista.

O operário das palavras teve que se manifestar. Tudo bem que infelizmente não era contemporâneo daqueles grandes nomes da música brasileira, mas daí a dizer que era da mesma geração de Anitta era quase um insulto.
- Alto lá! Anitta não é do meu tempo não! Isso aí é para os mais jovens – argumentou, dando a senha para o taxista continuar falando sem parar.

- Agora há pouco peguei um rapaz todo metidinho. Acho que ele queria impressionar a mulherzinha que ele tava comendo e começou a esculachar as músicas que eu tava ouvindo no rádio. Disse que era coisa de velho, de gente ultrapassada, essas coisas – contava ele, frequentemente tirando as duas mãos do volante para dar emoção à viagem. - Foi quando eu comecei a acabar com ele em todas as áreas da vida.

A partir daí, o taxista nostálgico exibiu todo o museu de grandes novidades de sua existência.

- Eu desfilei em escola de samba, sabe. Ai falei pra ele. Cara, eu desfilava na avenida com a Pinah. O que você tem hoje? Claudia Leitte! - vangloriou-se o taxista nostálgico, dando novas gargalhadas de lobo mau que comeu os três porquinhos e gesticulando muito enquanto olhava para o operário da escrita, afinal, o trânsito está sempre livre e os sinais estão sempre abertos para o táxi.

- Acabei com ele em todas as áreas. Todas as áreas. Música? Rita Lee, Legião, Cazuza. E você tem o que? Mr. Ca-tra? A-nit-ta? Fala sério - completou ele, falando daquele jeitinho debochado e fazendo questão de separar as sílabas dos artistas que desprezava.

O taxista nostálgico é o típico carioca. O léxico é rico em gírias e palavrões intercalados pela construção dos pensamentos. Ele tem ainda aquela fala malemolente, espécie de cruzamento de Evandro Mesquita com Fernanda Abreu. E, claro, adora futebol, uma especialidade do brasileiro médio. Flamenguista, o taxista faz uma revelação.

- Eu era da torcida do Flamengo. Naquele tempo, só tinha craque. E a gente conhecia todo mundo de frequentar a casa. Zico, Júnior, Leandro. Quando tinha aniversário, eles sempre chamavam a gente. E ai deles se não chamassem - disse o taxista, revelando que as práticas "carinhosas" das torcidas organizadas vêm de tempos imemoriais.

Vejam bem, o taxista nostálgico desfilou com a Pinah, foi de torcida organizada, conhecia craques do futebol. O operário das palavras não sabia como ele ainda não havia lançado uma biografia. Mas o taxista queria mesmo era contar como achincalhou o playboy.

- Acabei com ele! Naquela época todo time tinha craque. Zico, Roberto, o Fluminense tinha um jogador. Como era mesmo o nome?

- Romerito?

- Isso! Jogava demais o Romerito. O Vasco tinha um timaço também. Nunca ganhava do Flamengo, mas era um timaço. Enquanto isso, o rapazinho aqui tem que aguentar Lu-cas Mug-ni. Porra! Acabei com ele!

A viagem está chegando ao fim. Não sem antes o taxista nostálgico simular lances do Zico tirando as mãos do volante e os pés da embreagem e do acelerador. E revelar velhas práticas da torcida rubro-negra.

- A torcida do Flamengo era foda. Botava 60 mil pessoas no Maracanã contra o Bonsucesso. Jogava junto. Mas também cobrava. Quando tinha jogador na noite, a gente ia em cima deles. Qual é? Está fazendo o que aqui? Tem jogo amanhã, parceiro. Por isso que o Zico tem toda a moral que tem. Nunca foi para a noite. Foi aquela mulher, a Sandra, que deu um jeito na vida dele.

Já o Marcelinho Carioca não gozou do mesmo prestígio.

- Isso era um filho da puta. Perdeu um pênalti contra o Vasco. Uma vez teve uma festa na casa do Júnior Capacete e nós da torcida fomos. Lá na festa juntamos ele. Se o Júnior não impedisse, a gente ia encher ele de porrada. Saiu daqui correndo.

- Para brilhar no Corinthians - provocou o operário das palavras.

Um breve silêncio de contrariedade tomou conta do taxista nostálgico. Mas ele logo voltou a falar dos seus dias gloriosos de mandachuva informal da Gávea. Eram bons tempos aqueles, mas hoje ele garante estar sossegado. Ajeita os óculos de aro grosso e traça as linhas presentes de sua biografia.

- É uma vida dura a de taxista. Trabalha sábado, domingo, feriado... Mas eu não reclamo não. Eu vivi - disse ele, dando aquela ênfase de quem sentiu a vida empiricamente.

Chegamos finalmente ao destino.

- É R$ 30, parceiro.

- Taí, amigo.

- Obrigado. E vai com Deus. Até a próxima.


Ao deixar o operário das palavras, o taxista nostálgico volta a aumentar o som do rádio e segue revigorado pelas ruas do Rio de Janeiro. De certa forma, naqueles minutos, ele viajou no tempo para um Circo Voador e um Maracanã que não voltam mais.

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